Fim de festa no salão de baile
Na abertura do São Luiz, o palco transforma-se num salão onde se espraiam memórias ao ritmo de um musical. Baile, de Carla Maciel e Sara Carinhas, junta cinco actrizes/cantoras num ambiente fantasioso. Victor Hugo Pontes e Paulo Furtado também por ali andam.
A música é o motor – surge do nada como dispositivo de activação de cada uma dessas recordações. Desde essa entrada lenta, de olhares trocados num reconhecimento do espaço e dos outros, actrizes e músicos evocam O Baile, de Ettore Scola, mas aos poucos a referência é engolida por um encadeamento fantasioso de imagens que seguem a errância narrativa de um sonho. Nada se prolonga em demasia em Baile, uma criação de Sara Carinhas e Carla Maciel – estendida a Ana Brandão, Carla Galvão e Manuela Azevedo – em que pequenas histórias, canções e quadros reclamam um lugar para logo serem bruscamente tapados por outras pequenas histórias e canções, e por outros quadros, sem necessidade de especial nexo ou razão.
Quando o Ípsilon assiste a um ensaio no Jardim de Inverno do São Luiz no início de Agosto (depois de aqui estrear, a peça seguirá para o Teatro Municipal Rivoli, no Porto, onde se apresenta a 2 e 3 de Outubro), Victor Hugo Pontes vai trabalhando o movimento com as cinco intérpretes, ao mesmo tempo que Paulo Furtado (Legendary Tiger Man) ultima escolhas e adaptações do reportório que abastece um espectáculo desfiado ao ritmo de um musical e inspirado por uma cadência e uma luz cinematográficas. “Estava em Londres a fazer um workshop e foi uma daquelas alturas fora de casa em que se divaga”, conta Sara Carinhas da semente deste Baile que se estreia dia 9 de Setembro e faz a abertura de temporada no Teatro São Luiz, em Lisboa (onde Sara e Carla se conheceram nos bastidores de As You Like It, Shakespeare encenado por Beatriz Batarda). “Enviei uma mensagem à Carla [Maciel] a partilhar que gostava de fazer um espectáculo que envolvesse canções e que fosse um bocadinho mais leve – não é depreciativo – do que o que tínhamos andado a fazer. Ambas fizemos personagens com muito texto, protagonistas com muita carga, e sempre quis fazer algo que envolvesse música e dança e que fosse menos teatral nesse sentido do uso do texto.” O entusiasmo do outro lado foi imediato e em sintonia. Podia até não ter passado de um simpático reforço género “ai que giro, boa, faz isso que eu depois vou ver”, descreve Carinhas. Mas não. Na mensagem devolvida para Londres já estavam juntas em algo que ainda nem sabiam bem o que era.
No ensaio do Jardim de Inverno há, portanto, um "frigorífico" (parede branca) cheio de ideias organizadas por blocos – texto, canções, movimento, cenografia, etc. Entre fotografias que ajudam a dar o tom a algumas cenas, alguns papelinhos nomeiam coisas como “coreografia OK Go”, “dançar sem par só com um sapato”, “dança a tirar com a mão esquerda migalhas da anca esquerda”, “Hitchcok’s definition of happiness”, “conversas íntimas”, “cena azul”, “How deep is your love”, “Feiticeiro de Oz”, “dança tribal”… “A dança tribal és tu”, explica Sara Carinhas a Manuela Azevedo, vocalista dos Clã cuja proximidade artística com Victor Hugo Pontes trouxe até Baile. Num outro papel lê-se “espelhos”. E durante essa tarde de Agosto, as actrizes olham-se a um espelho imaginário, cada uma focada na sua história e no seu mundo, para logo a seguir se sentarem como se esperassem com o estômago tomado por borboletas por alguém que as seduza e as leve pela mão. Mas por ali não há senão miragens e são elas que se levantam como se levadas por um pretendente, mãos erguidas à volta de um pescoço que não está lá. A fantasia prolonga-se até que os braços caem desamparados ao longo do corpo, a imaginação esboroa-se, o sorriso fecha-se e não sobra mais do que a mesma cadeira vazia.
“Havia algo na própria ideia de baile que era bonito para nós, mesmo neste caso de um baile que não é possível porque elas não dançam com ninguém”, comenta Sara Carinhas. “Mas daí surgiram várias coisas relacionadas com a espera. E é bonito se este espaço também se abrir para qualquer coisa que pode ou não ser este salão, este sítio comum, em que há qualquer coisa que falha.” A falha é também, naturalmente, um atalho para o mundo de fantasia, para um ideal romântico de que o baile é uma imagem cravada desde a infância, enquanto bailam e se ouve um arremedo de How deep is your love, mais ainda no quadro rock’n’roll em que Ana Brandão canta Can’t take my eyes off you agarrada a uma urna de cinzas ou quando Carla Galvão canta Valsinha (Chico Buarque) em italiano e arrasta consigo uma Carla Maciel equilibrada num par de patins. Em tudo isto há também uma "falha" que é, antes de mais, uma perturbação da realidade.
Não há samba sem tristeza, canta-se pouco depois no Samba da bênção. E não há Baile sem alegria, apesar de abalada pelas intromissões frequentes da melancolia e da solidão. Assim, pelo meio do alinhamento que fornece o esboço de narrativa do espectáculo, emergem pequenas histórias de vincada cumplicidade feminina como aquelas em que Carinhas lembra quando, em criança, corria para o pai e era lançada ao ar, em que Manuela Azevedo recorda as tardes em que carregava a saia de cerejas e se sentava diante da televisão a comer interminavelmente, em que Ana Brandão recupera a ansiedade com que aguardava pelo final das matinées dançantes da sua adolescência, quando chegava a hora de se dançarem os slows. “Acabámos por descobrir que esta busca e esta espera é aquilo que todos procuramos, uma alegria e uma felicidade que são muito fugazes”, defende Carla Maciel. E a ideia pode ser apenas essa: a de que a felicidade pode durar apenas o tempo de uma dança. Em Baile, tudo se esfuma.
Uma ficção
Por trás destes quadros sonhados ou fantasiados está, naturalmente, e de uma forma intuída, o mundo em todo o seu esplendor de maldade, perversidade ou mera – passe o pleonasmo – mundanidade. Tendo partido de um imaginário de cabarés ou teatros como refúgio de cenários de guerra, o entretenimento é assumido como medida meio desesperada de manutenção de sanidade e fuga ao horror. É, por assim dizer, um lugar para a humanidade estar a salvo da humanidade. “E é mesmo uma ficção, como se entrar em palco fosse uma ficção”, diz Sara Carinhas. Tal observação pode soar óbvia para um grupo de actrizes/cantoras, mas a verdade é que pelo palco não se passeiam personagens. Cada uma delas é um retrato vago de um mulher que se denuncia pelas canções a que dá voz ou pela forma como se relaciona com as outras, e nenhum corpo se escuda no texto nem se coloca ao serviço de palavras alheias para contar uma história que não é a sua. Aqui a história, por mais fantasiada como fuga ao texto e ao exterior, acaba por pertencer-lhe. E a ficção está em acreditar ou seguir as pistas de um sonho.
Para Sara Carinhas, firme crente de que um/a actor/actriz não é um ser mumificado abaixo do pescoço, Baile é mais uma exploração de caminhos por onde o teatro pode aventurar-se sem controlar necessariamente a cena. E isso desde logo se percebe quando, sentados os músicos, Manuela Azevedo arranca com uma arrepiante e lânguida interpretação de Four women, de Nina Simone. Enquanto canta, os corpos das cinco são sacudidos por esse andamento sensual e lento, explicitando que quem manda no palco são as canções e as intérpretes apenas têm de lhes obedecer. A regra é apenas furada quando são as canções que se acomodam às intenções, como acontece na bela sequência em que Ana Brandão vai soltando pequenos vocalizos doridos sobre um arranjo de La Traviata, transformando Verdi num primo de Nino Rota, enquanto empurra uma carreta funerária repleta de comida e doçaria.
Cinco mulheres desatam, portanto, a comer, que as dores passam melhor de estômago cheio e mãos ocupadas. Assim como a vida em palco se passa melhor com esta promessa solar – mesmo nunca ignorando, lembra Carla Maciel, que o Outono está para chegar.
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A música é o motor – surge do nada como dispositivo de activação de cada uma dessas recordações. Desde essa entrada lenta, de olhares trocados num reconhecimento do espaço e dos outros, actrizes e músicos evocam O Baile, de Ettore Scola, mas aos poucos a referência é engolida por um encadeamento fantasioso de imagens que seguem a errância narrativa de um sonho. Nada se prolonga em demasia em Baile, uma criação de Sara Carinhas e Carla Maciel – estendida a Ana Brandão, Carla Galvão e Manuela Azevedo – em que pequenas histórias, canções e quadros reclamam um lugar para logo serem bruscamente tapados por outras pequenas histórias e canções, e por outros quadros, sem necessidade de especial nexo ou razão.
Quando o Ípsilon assiste a um ensaio no Jardim de Inverno do São Luiz no início de Agosto (depois de aqui estrear, a peça seguirá para o Teatro Municipal Rivoli, no Porto, onde se apresenta a 2 e 3 de Outubro), Victor Hugo Pontes vai trabalhando o movimento com as cinco intérpretes, ao mesmo tempo que Paulo Furtado (Legendary Tiger Man) ultima escolhas e adaptações do reportório que abastece um espectáculo desfiado ao ritmo de um musical e inspirado por uma cadência e uma luz cinematográficas. “Estava em Londres a fazer um workshop e foi uma daquelas alturas fora de casa em que se divaga”, conta Sara Carinhas da semente deste Baile que se estreia dia 9 de Setembro e faz a abertura de temporada no Teatro São Luiz, em Lisboa (onde Sara e Carla se conheceram nos bastidores de As You Like It, Shakespeare encenado por Beatriz Batarda). “Enviei uma mensagem à Carla [Maciel] a partilhar que gostava de fazer um espectáculo que envolvesse canções e que fosse um bocadinho mais leve – não é depreciativo – do que o que tínhamos andado a fazer. Ambas fizemos personagens com muito texto, protagonistas com muita carga, e sempre quis fazer algo que envolvesse música e dança e que fosse menos teatral nesse sentido do uso do texto.” O entusiasmo do outro lado foi imediato e em sintonia. Podia até não ter passado de um simpático reforço género “ai que giro, boa, faz isso que eu depois vou ver”, descreve Carinhas. Mas não. Na mensagem devolvida para Londres já estavam juntas em algo que ainda nem sabiam bem o que era.
No ensaio do Jardim de Inverno há, portanto, um "frigorífico" (parede branca) cheio de ideias organizadas por blocos – texto, canções, movimento, cenografia, etc. Entre fotografias que ajudam a dar o tom a algumas cenas, alguns papelinhos nomeiam coisas como “coreografia OK Go”, “dançar sem par só com um sapato”, “dança a tirar com a mão esquerda migalhas da anca esquerda”, “Hitchcok’s definition of happiness”, “conversas íntimas”, “cena azul”, “How deep is your love”, “Feiticeiro de Oz”, “dança tribal”… “A dança tribal és tu”, explica Sara Carinhas a Manuela Azevedo, vocalista dos Clã cuja proximidade artística com Victor Hugo Pontes trouxe até Baile. Num outro papel lê-se “espelhos”. E durante essa tarde de Agosto, as actrizes olham-se a um espelho imaginário, cada uma focada na sua história e no seu mundo, para logo a seguir se sentarem como se esperassem com o estômago tomado por borboletas por alguém que as seduza e as leve pela mão. Mas por ali não há senão miragens e são elas que se levantam como se levadas por um pretendente, mãos erguidas à volta de um pescoço que não está lá. A fantasia prolonga-se até que os braços caem desamparados ao longo do corpo, a imaginação esboroa-se, o sorriso fecha-se e não sobra mais do que a mesma cadeira vazia.
“Havia algo na própria ideia de baile que era bonito para nós, mesmo neste caso de um baile que não é possível porque elas não dançam com ninguém”, comenta Sara Carinhas. “Mas daí surgiram várias coisas relacionadas com a espera. E é bonito se este espaço também se abrir para qualquer coisa que pode ou não ser este salão, este sítio comum, em que há qualquer coisa que falha.” A falha é também, naturalmente, um atalho para o mundo de fantasia, para um ideal romântico de que o baile é uma imagem cravada desde a infância, enquanto bailam e se ouve um arremedo de How deep is your love, mais ainda no quadro rock’n’roll em que Ana Brandão canta Can’t take my eyes off you agarrada a uma urna de cinzas ou quando Carla Galvão canta Valsinha (Chico Buarque) em italiano e arrasta consigo uma Carla Maciel equilibrada num par de patins. Em tudo isto há também uma "falha" que é, antes de mais, uma perturbação da realidade.
Não há samba sem tristeza, canta-se pouco depois no Samba da bênção. E não há Baile sem alegria, apesar de abalada pelas intromissões frequentes da melancolia e da solidão. Assim, pelo meio do alinhamento que fornece o esboço de narrativa do espectáculo, emergem pequenas histórias de vincada cumplicidade feminina como aquelas em que Carinhas lembra quando, em criança, corria para o pai e era lançada ao ar, em que Manuela Azevedo recorda as tardes em que carregava a saia de cerejas e se sentava diante da televisão a comer interminavelmente, em que Ana Brandão recupera a ansiedade com que aguardava pelo final das matinées dançantes da sua adolescência, quando chegava a hora de se dançarem os slows. “Acabámos por descobrir que esta busca e esta espera é aquilo que todos procuramos, uma alegria e uma felicidade que são muito fugazes”, defende Carla Maciel. E a ideia pode ser apenas essa: a de que a felicidade pode durar apenas o tempo de uma dança. Em Baile, tudo se esfuma.
Uma ficção
Por trás destes quadros sonhados ou fantasiados está, naturalmente, e de uma forma intuída, o mundo em todo o seu esplendor de maldade, perversidade ou mera – passe o pleonasmo – mundanidade. Tendo partido de um imaginário de cabarés ou teatros como refúgio de cenários de guerra, o entretenimento é assumido como medida meio desesperada de manutenção de sanidade e fuga ao horror. É, por assim dizer, um lugar para a humanidade estar a salvo da humanidade. “E é mesmo uma ficção, como se entrar em palco fosse uma ficção”, diz Sara Carinhas. Tal observação pode soar óbvia para um grupo de actrizes/cantoras, mas a verdade é que pelo palco não se passeiam personagens. Cada uma delas é um retrato vago de um mulher que se denuncia pelas canções a que dá voz ou pela forma como se relaciona com as outras, e nenhum corpo se escuda no texto nem se coloca ao serviço de palavras alheias para contar uma história que não é a sua. Aqui a história, por mais fantasiada como fuga ao texto e ao exterior, acaba por pertencer-lhe. E a ficção está em acreditar ou seguir as pistas de um sonho.
Para Sara Carinhas, firme crente de que um/a actor/actriz não é um ser mumificado abaixo do pescoço, Baile é mais uma exploração de caminhos por onde o teatro pode aventurar-se sem controlar necessariamente a cena. E isso desde logo se percebe quando, sentados os músicos, Manuela Azevedo arranca com uma arrepiante e lânguida interpretação de Four women, de Nina Simone. Enquanto canta, os corpos das cinco são sacudidos por esse andamento sensual e lento, explicitando que quem manda no palco são as canções e as intérpretes apenas têm de lhes obedecer. A regra é apenas furada quando são as canções que se acomodam às intenções, como acontece na bela sequência em que Ana Brandão vai soltando pequenos vocalizos doridos sobre um arranjo de La Traviata, transformando Verdi num primo de Nino Rota, enquanto empurra uma carreta funerária repleta de comida e doçaria.
Cinco mulheres desatam, portanto, a comer, que as dores passam melhor de estômago cheio e mãos ocupadas. Assim como a vida em palco se passa melhor com esta promessa solar – mesmo nunca ignorando, lembra Carla Maciel, que o Outono está para chegar.