Sobre a Festa de Toiros: falemos de democracia
Para os aficionados, o toiro é um animal sagrado, que se teme e admira, que desperta paixão e amor.
Diz o Sr. Dr. Narciso Machado que o argumento dos taurinos em defesa da Festa é a tradição. E por isso contra-argumenta evocando antigas tradições anti-taurinas da Igreja Católica Apostólica Romana, cujo animal sagrado é o cordeiro. Mas omite que essa era a Igreja da Inquisição. A da intolerância. Não a das Misericórdias, proprietárias da maioria das praças de toiros. De resto, no mesmo sentido, poderia também ter evocado a invenção das leis de proteção dos animais, por parte do governo Nazi de Hitler. Não vale a pena ir por este caminho, que não nos leva senão a acusações mútuas sobre passados de que não somos responsáveis. Mas somos responsáveis por aprender com o passado. De facto, algumas das piores atrocidades contra os homens foram perpetradas por falsos “amigos dos animais”. E não aprendemos o que deveríamos, como parece mostrar a agenda da comunicação social e das redes sociais, dando mais importância a um leão assassinado ou a um cão mal tratado — ratos, melgas e muitos outros animais do tipo nunca aparecem como vítimas de maus tratos, sem que nada nos argumentos animalistas explique a descriminação — do que ao assassinato de um defensor do património humano como Palmira, destruída pelo Estado Islâmico, aos milhares de vítimas da crise dos refugiados e das guerras semeadas por todo o lado, ou pela pobreza que cresce mesmo nos países mais ricos e nos “remediados” como Portugal.
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Diz o Sr. Dr. Narciso Machado que o argumento dos taurinos em defesa da Festa é a tradição. E por isso contra-argumenta evocando antigas tradições anti-taurinas da Igreja Católica Apostólica Romana, cujo animal sagrado é o cordeiro. Mas omite que essa era a Igreja da Inquisição. A da intolerância. Não a das Misericórdias, proprietárias da maioria das praças de toiros. De resto, no mesmo sentido, poderia também ter evocado a invenção das leis de proteção dos animais, por parte do governo Nazi de Hitler. Não vale a pena ir por este caminho, que não nos leva senão a acusações mútuas sobre passados de que não somos responsáveis. Mas somos responsáveis por aprender com o passado. De facto, algumas das piores atrocidades contra os homens foram perpetradas por falsos “amigos dos animais”. E não aprendemos o que deveríamos, como parece mostrar a agenda da comunicação social e das redes sociais, dando mais importância a um leão assassinado ou a um cão mal tratado — ratos, melgas e muitos outros animais do tipo nunca aparecem como vítimas de maus tratos, sem que nada nos argumentos animalistas explique a descriminação — do que ao assassinato de um defensor do património humano como Palmira, destruída pelo Estado Islâmico, aos milhares de vítimas da crise dos refugiados e das guerras semeadas por todo o lado, ou pela pobreza que cresce mesmo nos países mais ricos e nos “remediados” como Portugal.
Ora, as tradições vão e vêm, inventam-se e recriam-se, renovam-se permanentemente, de tal modo que em cada momento são mencionadas como expressão de algo mais profundo, a identidade cultural. Esse sim, é o fator que justifica a persistência da Festa ao longo dos tempos.
Por que é que o Toiro de Lide constitui ainda hoje um símbolo com que se identificam comunidades de milhões de pessoas em Portugal, Espanha, França, México, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, EUA (Califórnia), e com outros afloramentos pelo menos no Brasil, na Índia e em Madagáscar?
Por masoquismo, barbárie e mero comprazer com o sofrimento de uma animal? Quem pode acreditar nisto? Para os aficionados, pelo contrário, o toiro é um animal sagrado, que se teme e admira, que desperta paixão e amor. As suas qualidades de poder, bravura (isto é, capacidade de luta, sem submissão, até ao último suspiro) fecundidade, fertilidade; a sua força telúrica com que o homem, usando a inteligência, tem a coragem de se enfrentar; a solidariedade entre os homens e as comunidades que formam; um modo de entender a vida, com as suas grandezas e o seu sofrimento, e a morte, o fim natural de todas as coisas, e que o toiro merece que lhe aconteça de forma digna e condizente com a sua natureza de bravo, eis o que, do ponto de vista os aficionados, dá sentido às Festas de Toiros.
Ninguém ama os toiros como os aficionados e, talvez, ninguém os compreenda tão bem como eles e, em particular, como os toureiros. Estranha forma de amar, pode-se dizer. Mas rejeitar sumariamente tudo o que é estranho, estigmatizar os comportamentos que não se compreendem, perseguir e acusar quem sente e pensa de forma diversa, não é disso que se faz a intolerância? Os taurinos não procuram o proselitismo, mas não aceitam catalogações que em nada se reveem, nem tentativas de os impedir de cumprir os rituais que expressam a sua identidade. Reclamam, pois, a democracia cultural e o respeito pela diversidade.
O totalitarismo dos anti-taurinos, manifesto na intolerância com que perseguem a Festa de Toiros, tem uma (ou mais) razão de ser. Ele resulta de uma rutura entre as sociedades humanas urbanizadas, e a natureza. Nessas sociedades, os animais são construídos como nossos iguais. No plano filosófico justifica-se essa igualdade deslocando a fronteira entre homens e animais da posse da razão (sem a qual não há direitos nem deveres), para a capacidade de sentir, que obviamente animais como o toiro, o cavalo, o cão ou o gato possuem, mas que também possuem outros animais que ficam fora do chapéu protetor dos animalistas. No plano cultural, a rutura assenta na disseminação, por parte das indústrias culturais, de uma imagem dos animais antropomorfizada. O estereótipo desse fenómeno são os animais Disney. São elas que fomentam as ideias erradas e anti-humanistas dos animalistas, fortemente financiadas, no plano da sua capacidade de ação, pelas “indústrias pet”, que beneficiam largamente da expansão de sensibilidades favoráveis ao consumo dos seus produtos, sem que se saiba que bem possam fazer, de facto, aos animais (pense-se, por exemplo, nos cães obrigados a viver em apartamentos totalmente desadequados em relação à sua natureza).
O Sr. Dr. Narciso Machado sabe que o estudo que refere sobre as preferências dos portugueses é uma fraude. Sabe também que há outros estudos que dizem, por um lado, que não existe nenhuma correlação entre a adesão à tauromaquia e os índices de criminalidade e de desenvolvimento concelhio e, por outro lado, que o fim das touradas é um tema indiferente para a larga maioria dos portugueses, sendo a parte que tem opinião contrária a esse objetivo. De resto, o que aconteceria se uma lei nascida de uma mente contrária à liberdade e à democracia cultural fosse aprovada? Quantos casos como o de Barrancos (onde hoje se matam os primeiros dois toiros durante as festas, podendo pois provar-se a partir de amanhã a “mágica” carne de toiro com tomate) se gerariam por esse país fora? Quantas pessoas prefeririam sacrificar a vida em defesa da identidade da sua comunidade?
Em nome da democracia e da tolerância, não nos pode passar uma coisa dessas pela cabeça.
Sociólogo, professor no ISCTE-IUL e investigador no CIES