No país dos sonsos
Paulo Rangel está cheio de razão: a partidarização da justiça existiu mesmo. E é uma pena, acrescento eu, se ela não vier a ser discutida na campanha eleitoral.
Não há dúvidas de que a provocação é uma joelhada eleitoralista, até porque se trata de uma declaração impossível de aferir. Universos paralelos só nos filmes da Marvel, e ninguém consegue adivinhar o que aconteceria a Sócrates se o governo fosse outro. No entanto, estando tudo o resto correcto, fazem pouco sentido as reacções ultrajadas das associações de magistratura e de socialistas como Francisco Assis, mas sobretudo de vários jornalistas e comentadores, unidos contra o terrível perigo da “partidarização da justiça” — que seria, de facto, um terrível perigo… se ela não tivesse já sido vergonhosamente partidarizada.
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Não há dúvidas de que a provocação é uma joelhada eleitoralista, até porque se trata de uma declaração impossível de aferir. Universos paralelos só nos filmes da Marvel, e ninguém consegue adivinhar o que aconteceria a Sócrates se o governo fosse outro. No entanto, estando tudo o resto correcto, fazem pouco sentido as reacções ultrajadas das associações de magistratura e de socialistas como Francisco Assis, mas sobretudo de vários jornalistas e comentadores, unidos contra o terrível perigo da “partidarização da justiça” — que seria, de facto, um terrível perigo… se ela não tivesse já sido vergonhosamente partidarizada.
É isso que me encanita. Compreendo muito mal que um jornalista tão estimável quanto Ricardo Costa afirme no Expresso que as declarações de Paulo Rangel (que, aliás, as explicou excelentemente no PÚBLICO de terça-feira) são “muito pouco inteligentes”, “erradas” e “perigosas”. E isto porquê? Porque “um político experiente tem a obrigação de saber que a questão, depois de se levantar, tem perna longa e faz ricochete”. Ou seja, Ricardo Costa aconselha Rangel a estar caladinho porque um dia a justiça ainda vai bater à porta do PSD. E aí somos obrigados a perguntar: e então? E se for? O que é que um jornalista tem a ver com isso? Acaso a função dos jornalistas é proteger as costas dos partidos do sistema? Não será que a sua primeira obrigação é lutar por uma sociedade mais justa e transparente? Aquilo que me interessa saber nas declarações de Paulo Rangel não é se são incómodas para o statu quo ou se podem vir a tramar o PSD. É se são verdadeiras.
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Ora, se alguém está em boa posição para responder a essa questão é o próprio Ricardo Costa, director do Expresso e um dos mais influentes jornalistas portugueses — porque ele sofreu os anos socráticos na pele. É ou não verdade, caro Ricardo, que o ar em Portugal é hoje mais respirável do que nos tempos de José Sócrates? É ou não verdade que, por muitos defeitos que Pedro Passos Coelho tenha, ao menos ele não andou a enfiar o nariz nas redacções e a berrar com jornalistas? É ou não verdade que a relação com a comunicação social nada tem a ver com a época 2005-2011? É ou não verdade, para citar o actual primeiro-ministro, que “há hoje uma percepção de que a justiça funciona melhor”?
Que os juízes não o possam admitir, eu até percebo. Mas nós, jornalistas, deveríamos reconhecer o óbvio — o ar está mesmo mais respirável —, em vez de andarmos a brincar às equidistâncias, que servem apenas para pôr em prática a velha não-inscrição de José Gil: fingimos que os acontecimentos nunca aconteceram para continuarmos a disfarçar as nossas profundas falhas políticas, sociais e de cidadania. Em vez de assumirmos os erros, optamos pelo silêncio. E, no entanto, Paulo Rangel está cheio de razão: a partidarização da justiça existiu mesmo. E é uma pena, acrescento eu, se ela não vier a ser discutida na campanha eleitoral.
Jornalista (jmtavares@outlook.com)