Hospital cobra conta a família de doente e acaba condenado por negligência

Cuf Descobertas condenado a pagar 248 mil euros de indemnização por “perda de chance” de sobrevivência de uma doente que ali morreu. Sentença é invulgar, se não mesmo inédita.

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O Hospital Cuf Descobertas, que pertence ao grupo Mello Saúde, “está a estudar a questão, mas vai recorrer desta decisão” Miguel Madeira

A “actuação negligente, falta de atenção” e de execução de exames que podiam ter permitido “um diagnóstico acertado” e atempado retiraram à doente, que morreu aos 49 anos, a oportunidade (chance) de sobreviver à doença, sustenta a juíza que assina a sentença do Tribunal Cível de Lisboa.

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A “actuação negligente, falta de atenção” e de execução de exames que podiam ter permitido “um diagnóstico acertado” e atempado retiraram à doente, que morreu aos 49 anos, a oportunidade (chance) de sobreviver à doença, sustenta a juíza que assina a sentença do Tribunal Cível de Lisboa.

Este caso é invulgar não só pela reviravolta gerada, mas sobretudo pela alegação em que esta juíza da 1.ª Secção do Tribunal de Lisboa fundamenta a condenação do hospital – a “perda de chance” de sobrevivência da doente. É uma sentença que pode fazer história, acredita a advogada da família, Elsa Sequeira Santos. O que aqui se defende é que a doente perdeu a oportunidade de ser curada e sobreviver, explica.

O hospital privado foi condenado a indemnizar a família em 248 mil euros, pagando o Cuf Descobertas mais de 124 mil euros e a seguradora Fidelidade o restante. A família pedia 600 mil euros. A juíza considerou que a probabilidade de sobrevivência de Tereza seria de 40%, pelo que estipulou aquele valor final. Elsa Sequeira Santos admite que ficou surpreendida: Em Portugal as indemnizações por morte são infelizmente muito baixas.”

O Hospital Cuf Descobertas, que pertence ao grupo Mello Saúde, “está a estudar a questão, mas vai recorrer desta decisão”, garantiu ao PÚBLICO o advogado Lourenço da Cunha. “Estamos a falar de uma interpretação que terá de ser ser sindicada pelo Tribunal da Relação”, acentuou.

Tereza Coelho, que foi jornalista de vários órgãos de comunicação social (incluindo o PÚBLICO) e era directora editorial da Dom Quixote quando morreu, não resistiu a uma septicemia (infecção generalizada) depois de, na primeira visita à urgência da Cuf  Descobertas, por volta das 2 horas da madrugada de 31 de Dezembro de 2008, lhe ter sido diagnosticada uma mera amigdalite. Queixava-se de dificuldades respiratórias e de um grande mal-estar, apesar de nos dias anteriores ter tomado um antibiótico por pensar que estava com uma infecção respiratória.

O especialista em medicina desportiva que a observou diagnosticou-lhe uma amigdalite e mandou-a embora uma hora depois, sem fazer exames, como uma radiografia ao tórax.

Tereza regressou à urgência sete horas depois. Os médicos que a atenderam consideraram então que o seu estado era muito grave. Foi entubada. Fizeram-lhe um electrocardiograma, raios x e análises ao sangue. Diagnosticaram-lhe uma pneumonia. O seu estado foi-se agravando. Teresa morreu em 17 de Janeiro de 2009  por choque séptico devido a pneumonia.

“Numa sépsis (infecção generalizada) grave diagnosticada na primeira hora, a probabilidade de sobrevivência é de quase 80%, percentagem que desce para cerca de 40% quando passam cerca de 3 horas, e ao fim de 12 horas apenas 20% dos doentes sobrevivem”, lê-se na sentença.

Para a juíza, a probabilidade de sobrevivência de Tereza Coelho foi desta forma “coarctada pela conduta” do hospital, que “tinha a obrigação de ter realizado determinados exames que lhe teriam permitido um diagnóstico certo e medicado a paciente em conformidade”.

“É possível que seja a primeira sentença em Portugal a alegar a perda de chance”, considerou a fundadora da Associação Lusófona do Direito da Saúde, Filomena Girão, em declarações à Visão. Pode até, disse, vir a fazer jurisprudência na área da negligência médica porque, “no campo da responsabilidade médica, é a primeira vez que se vê uma condenação apenas pela perda de chance”.

Lembrando que a doutrina portuguesa tem opiniões divergentes sobre esta matéria, Elsa Sequeira Santos prefere esperar que esta decisão possa funcionar como exemplo no futuro “e facilitar a tutela do direito dos cidadãos que têm dificuldades em ganhar processos” de negligência médica em tribunal. A decisão não gera jurisprudência, mas tem força persuasiva, até por provavelmente ser pioneira, frisa.

Em Portugal há casos parecidos, mas noutras áreas, como os que envolvem advogados que não cumprem os prazos para contestar, exemplifica a advogada, notando que esta figura jurídica da perda de chance surgiu nos tribunais franceses no final do século XIX.

O mais curioso é que este caso só chegou a tribunal porque a Cuf insistiu em cobrar a conta pelos cuidados médicos que não conseguiram salvar Tereza Coelho. A seguradora Multicare já tinha pago 20 mil euros, mas faltava saldar 11 mil. Teresa era mulher do escritor Rui Cardoso Martins (que publica crónicas semanais  no PÚBLICO) e mãe de duas crianças, com 8 e 10 anos na altura. A família nem sequer tinha pensado em processar o hospital por negligência, assegura Rui Cardoso Martins. “Eu não queria processo nenhum, só queria ser deixado em paz”, declara.