O prazer de estar ali, naquele desafio da natureza

João Dória Nóbrega está a dois dias de fazer 81 anos. É obstetra. Na medicina privada fez quase 2 mil partos. Na Maternidade Alfredo da Costa, onde trabalhou cerca de 30 anos, são incontáveis. É uma das pessoas que podem contar na primeira pessoa a história do planeamento familiar em Portugal.

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O Dória, o dr. Dória, é um médico que sabe esperar num tempo em que tudo é acelerado — até nascer. Decidiu, a partir de um episódio que a seguir se detalha, que ia ser obstetra. Estava em Angola, na guerra colonial. Reformou-se no ano passado. Entre um marco e outro, há a história da obstetrícia em Portugal que pode ser contada a partir do seu percurso. Houve um tempo em que ia pela província com um retroprojector a explicar o significado de planeamento familiar. Anos em que trabalhou numa comissão empenhada em fazer descer a taxa de mortalidade infantil. E milhares de partos. Um acontecimento único e surreal. “Pode magoar, pode estragar, pode partir.” E depois é o prazer de estar ali, naquele desafio da natureza.

João Dória Nóbrega não parece ter a idade que tem. Esteve doente, recuperou. O discurso tem a calma de um rio que nunca foi bravio mas que mantém a determinação. Tem umas mãos que não se consegue descrever. Numa tarde de Verão contou a sua história, depois mandou fotografias que a permitem ver de outra maneira.

Comecemos pelo seu parto. Não pode ter memória dele, mas decerto teve relatos.
A minha mãe contava que nasci antes do tempo. Nascer com oito meses era um mau prognóstico. Nasci em África, inesperadamente, em casa. Sou o exemplo vivo do que acontecia naquele tempo. O planeamento familiar não existia. A minha mãe engravidou quando a minha irmã tinha três meses. Tenho diferença da minha irmã de um ano e cinco dias. Nasci no dia 1 de Setembro de 1934.

Que idade tinha a sua mãe?
Tinha 24 anos. O meu pai era mais velho, nasceu em 1898. Teve um primeiro casamento, um filho, a mulher morreu. Casou com a minha mãe em 1932, por procuração, porque já estava em Moçambique. Era militar de carreira. Esteve na Primeira Guerra.

A guerra era uma coisa de que o seu pai falava?
Falava. Das trincheiras, dos ratos, da água, da humidade, das condições péssimas. E das mortes. Falava muito da protecção da Nossa Senhora de Santa Teresinha. Tinha uma devoção.
Fez carreira em Moçambique. Em 1942 viemos para a Madeira, de onde somos.

As duas famílias?
Sim. O avô da minha mãe era o caseiro do Monte, o célebre senhor que era analfabeto mas que esculpiu em madeira as figuras [do presépio] e montou a lapinha do caseiro. Há um livro sobre isso. Do lado da mãe da minha mãe, era o “bacalhau para baixo”. O meu bisavô era comerciante e quando vinha a Lisboa abastecer-se, com os copos do almoço, dizia: “Mais bacalhau para baixo” [risos]. Ficou a família do “bacalhau para baixo”. O meu pai é França Dória, tinha origem no Arco da Calheta, uma freguesia mais para o Sul da Madeira.

As suas memórias de infância estão, portanto, divididas entre África e a Madeira.
Vim fazer oito anos já na Madeira. Em Moçambique, vivíamos na Beira. Tenho uma imagem da casa onde vivíamos, uma casa colonial com uma varanda à roda, fechada com rede por causa dos mosquitos.

Disse que nasceu inesperadamente em casa...
Nasci em Vila Manique, na fronteira com a antiga Rodésia do Sul, agora Zimbabwe. Havia lá um hospital, mas não houve tempo de ir para o hospital. Mesmo em Lisboa, era o tempo em que o doutor ia a casa fazer o parto.

Quando se tratava de uma família de classe alta.
Sim. Ia o médico, a sua enfermeira. Ia-se buscar a roupa esterilizada e o conjunto de instrumentos ao Instituto Pasteur na Rua Nova do Almada [em Lisboa]. Quando era preciso usar fórceps, a senhora era posta na mesa da cozinha. Uma superfície lisa e dura. Com os pés na borda das cadeiras, para ficar na posição correcta para fazer um parto com manobras.

Parece que estamos a falar de um tempo longínquo.
Nos anos 60 ainda era assim. Quando vim de África [depois do serviço militar], em 1965, e fui para a Caixa de Previdência, havia um serviço de parteiras ao domicílio. A taxa de partos no hospital era baixa. Lisboa esteve 40 anos sem aumentar uma única cama para nascer. Durante esses 40 anos, o hábito de ir nascer ao hospital aumentou. Nascer no hospital, antigamente, era para as classes baixas e passou a ser para as classes média e alta.

Sempre quis ser médico?
No liceu queria ser agrónomo. Só na última metade do 7.º ano é que resolvi ir para Medicina. Na minha família, havia um médico conhecido, irmão da minha avó paterna. Era amigo do Francisco Gentil, fundador do IPO. Emigrou para Moçambique e nunca mais foi visto.
Na Madeira, quando se pensa em médico, pensa-se em Coimbra. Lá vim eu para Coimbra. Parei em Lisboa algum tempo porque a minha avó estava cá. Vinha com o enxoval, os baús.

O que é que fazia parte do enxoval?
Os lençóis, as almofadas, os cobertores. Não era como [o enxoval] de uma noiva, mas era o preparo para um rapaz sobreviver sozinho. A minha avó materna disse-me assim: “Amanhã vamos à Ericeira ver os tios e os primos que lá estão a passar férias.” A minha tia apresentou-me a uma menina que estudava Medicina, e a minha vida deu uma cambalhota de 180 graus: “Vai para Coimbra fazer o quê se tem cá família?” E eu, como estava com uma impressão má dentro de mim, ir para Coimbra e ser submetido à praxe… Sou antipraxe o mais possível.

O que é que o incomodava tanto, a humilhação?
Era isso. Peguei naquele argumento, escrevi uma carta aos meus pais: “Não vou para Coimbra, fico em Lisboa.” Se tivesse ido para Coimbra, não estávamos aqui os dois, de certeza. Não teria seguido o trajecto que segui.

Porquê?
A maior parte dos que vão para Coimbra regressam à base, à Madeira. É raro o que se “destribaliza”. Em Lisboa, são mais os que ficam do que os que regressam.

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Formou-se em que ano?
Em 1961. Fui para Angola em 1962.

Imagino que nessa altura tenha pensado no seu pai na Primeira Guerra.
Pensava nas coisas por que ele tinha passado, mas sabia que era uma guerra diferente. Não era uma guerra de trincheira, era uma guerra de guerrilha. Estive lá 27 meses. Mas distribuídos. Onze meses no Norte, um em Luanda, e o resto no Saliente do Cazombo.

Como é que foi a sua vida lá? O que é que aprendeu?
Aprendi muito. Chegámos no dia 9 de Dezembro. Em Março de 1963, tivemos a informação de que havia um quartel de guerrilheiros entre duas estradas, uma que ia para norte e uma que ia para oeste. Demos com esse quartel. Quando viram a tropa, aproximar-se, puseram-se em fuga, houve uns tiros.
[Ficou escondida] uma mulher, casada com um guerrilheiro que tinha tuberculose. Ele morreu da doença, ela tinha um filho e ficou sozinha, a amamentá-lo. Aguentou o tempo que foi possível. Até que um dia foi para a estrada. Magra, esquálida, ela e o filho. Passou um jipe da nossa companhia que a trouxe para o quartel onde eu estava. Os soldados, os furriéis, o capitão, todos impressionados com aquilo, queriam dar de comer à mulher. Eu disse: “Alto! Esta mulher não se pode realimentar com comida feita à nossa maneira.” Ia ser um distúrbio muito grande. A senhora e o bebé foram para a casa de uma das autoridades locais. A nossa contribuição era o leite em pó da tropa. Eu a ler os livros de alimentação dos bebés e pensar: “Como é que vai ser?” Ia lá e ela estava a dar-lhe colherinhas de leite. Entretanto, fui de férias para a metrópole e quando voltei encontrei uma mãe e um bebé... Está a ver a imagem dos pneus Michelin, cheios de curvas? As perninhas dele eram assim redondas [risos].

Disse que pegou nos livros e foi à procura. O que é que levou consigo para África?
Tudo, tudo. Levei um baú cheio de livros, um de cada especialidade.

Havia alguma pela qual tinha uma especial inclinação?
Gostava de Dermatologia. Era mais um entusiasmo. Fiz uma tese de licenciatura em Cardiologia. Em África, quando fomos para o Leste de Angola, uma noite chamaram da missão protestante. Era fundada por um escocês, tinha uma enfermeira irlandesa, faziam homeopatia. Chego lá e vejo uma mulher em trabalho de parto, com uma grande barriga. Não sabíamos o que era e, quando nasceram, os bebés eram três. Com aquela descompressão brusca — eram bebés de 32, 33 semanas —, ela entrou em pré-choque. Pensei: “Estou tramado.” Peguei no jipe, fui buscar um saco de plástico de soro, com plasma, para lhe meter qualquer coisa na veia e recuperar daquela baixa tensional. Quando a pessoa está em choque não tem veias, e então fiz um desbridamento no dorso do pé. Cortar a pele, ir à procura da veia, meter a agulha, à luz da vela... Quando o sol nasceu, a mulher já estava safa. Este facto marcou-me para vir para Obstetrícia.

Já tinha feito partos?
Antes de ir para África, aproveitei o tempo de espera e fui para a [Maternidade] Alfredo da Costa ver os partos. A aflição que se tem é como é que se faz um parto.

Porquê?
Porque o parto é assim uma coisa surreal. É tudo diferente. Pode magoar, pode estragar, pode partir.

Não tinha filhos?
Ainda não. Durante a licenciatura, vimos um parto ou dois, em Santa Maria.

E o básico de um parto tem que ver com o manejar da mão?
É sobretudo o que é que se faz com as mãos e o que é que não se deve fazer. Se nascer um bebé de rabo não se deve mexer nele. Mas uma pessoa que não sabe está sempre a mexer nele com medo que caia no chão. Até colegas médicos, que não são da especialidade, quando vêem um parto, ficam nervosos.

Por causa da ideia da fragilidade do bebé? E com o milagre da vida a acontecer ali.
Cada parto é um acontecimento único para toda a gente. A interacção da mulher, do médico, do marido, é muito importante. Valorizo muito.

Como é que em África lidava com o medo, a urgência, a aflição? Ou não havia tempo para pensar nisso porque se impunha a realidade?
Havia sítios que estavam permanentemente a ser massacrados. E havia sítios onde nem sempre estávamos a ser massacrados. Uma vez foram buscar um pelotão que não era da minha companhia. Morreu um por uma questão estúpida. O soldado metia as granadas com as cavilhas no cinto, quando se senta, a cavilha abre. Aquilo rebentou e esventrou-o.

Como é que fazia para comunicar com casa?
Tínhamos os aerogramas.

Casou imediatamente antes de ir?
Sim. Conheci a minha mulher quando estava no 2.º ano e comecei a namorá-la. Estava a estudar a cadeira de Bacteriologia. Namorámos até ao último ano. Ela ajudou-me bastante a não sair do carreiro.

Por ser mais velha? Tinha de crescer para estar à altura dela?
E não só. Para ela, primeiro estavam as obrigações, depois é que vinham as diversões. Casámos em 1960 e, naquele anseio de ter um filho, o que não acontecia, fui para África sem ela estar grávida.

Porquê esse anseio de ter um filho?
Com medo de morrer na guerra e não deixar cá descendência. Quando vamos, pensamos que podemos levar um tiro. A primeira vez que vim de férias, ficou [grávida]. O meu filho nasceu em 1964.

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Seria estranho se não tivesse filhos?
Talvez. Se não conseguisse tê-los, não havia solução para isso. Naquela altura, era: “Se Deus quiser.” Agora há um motivo, uma situação estudada e, na maior parte dos casos, solução.
Depois, quando o filho estava com três anos, frente a uma montra de brinquedos na Rua do Ouro, começou: “Quero isto, quero aquilo!” Virei-me para a minha mulher: “Ele está mas é a precisar de ter irmãos para partilhar.” E vieram as gémeas. Dentro do tempo regulamentar, saudável, entre o primeiro e as gémeas.

Que tempo é?
Está demonstrado cientificamente que a mulher tem de recuperar para entrar numa nova gravidez, tendo em conta que o que está em causa é a saúde dos bebés que hão-de vir e a saúde da mãe. O intervalo da gravidez, hoje, é mais importante que o número. Quando uma mulher diz que quer ter dez filhos, pode ter, mas tem de manter um intervalo entre eles.
O tempo de recuperação de uma mulher que teve um bebé e deu de mamar é, no mínimo, oito meses.

Retomando o seu percurso: voltou em 1965 e foi fazer a especialidade.
Em Obstetrícia, na Maternidade Alfredo da Costa. Passado um tempo, em 1969, houve uma greve de zelo dos médicos. Queríamos que fossem instituídas carreiras médicas, que tudo fosse organizado de uma maneira diferente. Ganhávamos 900 escudos.

Não tenho noção do que eram 900 escudos. Para que é que dava?
Uma renda de casa (chamada limitada) era de 1110 escudos. Na maternidade, o director conseguiu 1000 escudos de subsídio, não sei de que maneira. Levávamos para casa 1900. Eram 1100 para a renda, ficavam 800 para o resto. Mas queríamos pertencer a uma unidade hospitalar com nome e poder escrever no papel de receita “interno da Maternidade Alfredo da Costa”.

Era o prestígio?
Era. Ser interno dos hospitais civis, ou interno da Maternidade Alfredo da Costa, era uma garantia de que se era bom.

Como é que politicamente se situava antes do 25 de Abril?
Vivíamos à esquerda. No café estávamos sempre a olhar, a ver quem é que estava a ouvir o que dizíamos. Era o tempo dos delatores, da PIDE. Nunca fui preso nem nunca tive grandes intervenções.

Tinha cartão?
Não. Era só simpatizante da esquerda, que naquela altura era o PCP. Depois veio o PS.

A partir da sua história podemos ter a história da Obstetrícia em Portugal. Quando é que começa a haver uma ideia de planeamento familiar, de cuidado com a saúde da mãe e do bebé? É tudo pós-25 de Abril?
Não, um bocadinho antes já havia. O professor Arnaldo Sampaio, pai do Jorge Sampaio, foi a pessoa que marcou, quando era director-geral de Saúde, os centros de saúde, que [passaram a ser] só para mães e bebés. Havia os postos clínicos da Caixa de Previdência que tinham a especialidade de Obstetrícia, onde as grávidas acorriam. Em relação ao Planeamento Familiar, vivia-se a época em que era proibido receitar a pílula para evitar gravidezes.

Estava escrito?
Sim. Métodos hormonais para evitar gravidez, não. A pílula entrou em Portugal em 1962.

Começou a ser comercializada; contudo, era proibido receitá-la como contraceptivo.
A pílula era usada para regularizar ciclos menstruais. O dr. Albino Aroso, antes de fazer o célebre decreto de 16 de Março de 1976, na consulta pública no hospital, para mulheres que queriam tomar a pílula, ou que ele achava que deviam tomar a pílula, escrevia na ficha: “Irregularidades menstruais.”

Vale a pena detalhar o que dizia o famoso decreto.
Ele era subsecretário de Estado da Saúde. Dizia que em todos os sítios onde se prestassem cuidados de saúde, sempre que possível, devia fazer-se uma consulta de planeamento familiar.
Antes do 25 de Abril, havia a Associação para o Planeamento da Família, fundado pelo dr. Neves e Castro e outras pessoas ligadas à Igreja, progressistas, que tentavam melhorar as condições do controlo da natalidade, dos métodos contraceptivos modernos e antigos.

Quando se falava de planeamento familiar, nos anos 70, estava subentendido que se falava de um controlo da natalidade?
A expressão “planeamento familiar” era subversiva. E quando na Alfredo da Costa dizia ao meu director, o dr. Jorge Morais: “Devíamos fazer uma consulta de planeamento familiar”, em voz alta, no corredor, ele via se estava alguém a ouvir e dizia-me: “Fala mais baixo, rapazinho.” A palavra “planeamento” lembrava o planeamento dos vermelhos, atrás da cortina de ferro.

Tinha essa conotação política ou era, sobretudo, uma forma de ir contra as leis de Deus (que decide quando os filhos vêm)?
Era um pouco esse conjunto. Depois desse decreto [de Albino Aroso], é que tudo se arranjou. A dra. Purificação Araújo convidou-me para ir para a Direcção-Geral de Saúde com ela, Divisão de Saúde Materna e Planeamento Familiar. O nosso trabalho foi formação.

Formação de quem?
Fizemos formação em planeamento familiar de médicos e enfermeiros. Era uma matéria que nem na faculdade nem nas escolas de enfermagem se dava. Começámos a dizer que o planeamento familiar é uma coisa que tem a ver com a saúde da mulher, com o intervalo entre os filhos. O planeamento era para não ter e para ter [filhos]. Ter quando a mulher está disposta e com saúde para isso. E não ter quando não quer ou não está preparada (com saúde) para isso.

Esbarraram em que tipo de resistências?
A seguir ao 25 de Abril já não houve resistências. O problema é que a Igreja fazia o seu papel e defendia os seus métodos.

A pílula não era uma questão simples para a Igreja.
Pois não. Agora, depende de cada um, cada pessoa está livre de escolher. Na doença, o técnico está cá em cima e a pessoa está lá em baixo. O doente olha para cima para ver a salvação. Quando falamos de planeamento familiar, estamos ao mesmo nível. O técnico nunca tem de dizer à pessoa se a pílula faz dores de cabeça. Tem de dizer que existem os métodos tal e tal, que os efeitos são estes, as contra-indicações são estas. Tem de ser impessoal, neutro. Não é altura de o técnico incutir no outro uma opinião.
Foi esse tipo de ensinamento que começámos a propagandear. Aos fins-de-semana, saíamos de Lisboa com um retroprojector e uma extensão de corrente. Tudo isto começou em 1977. No Sul, no Norte e no Centro. Também fui à Madeira.

As pessoas, muito curiosas, imagino.
Sim, sim. Ensinámos a muita gente, que depois não aplicou [estes pressupostos]. A noção que tinham era: “Meter-me na vida das pessoas não é o meu papel.”

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A ideia de que estamos a meter-nos na vida de alguém persistiu durante muito tempo, até nos problemas de violência doméstica. “Entre marido e mulher não se mete a colher.” Era preciso trabalhar com os médicos no sentido de dizer: “Não, a saúde da mulher é connosco também”?
Foi o nosso trabalho nos anos 80, mudar a mentalidade das outras especialidades médicas.

Como é que se conseguiu o milagre de baixar a taxa da mortalidade infantil depois da revolução?
Fui um privilegiado. Estava no centro do problema. Estávamos todos. O esforço que fazíamos todos os dias para que melhorasse alguma coisa e não melhorava... Era um problema de organização. Em 1980, tive uma bolsa da Organização Mundial de Saúde para ir ver o que é que os suecos tinham feito. A questão era tão simples que quando vim fiz um esquema gráfico, que preguei durante sete anos. Nós tínhamos duas direcções-gerais, a dos Hospitais e a da Saúde. A primeira tinha os hospitais distritais e centrais. A Direcção-Geral de Saúde tinha os postos de saúde. A população vivia entre dois muros, a dar cabeçadas na parede. Havia duas direcções-gerais, cada uma a puxar para o seu lado, a proibir os seus técnicos de ir ao outro lado. A Direcção-Geral de Saúde já andava a tentar mudar as coisas, fazia uns grupos para estudar os cuidados primários. Mas tinha de ser uma mudança de fundo.

A mudança de fundo aconteceu quando?
Doze anos depois do 25 de Abril, quando para o Ministério da Saúde foi uma mulher, Leonor Beleza. As mulheres portuguesas têm muito a agradecer a duas mulheres. A Leonor Beleza, que viu a coisa no geral. E a Maria José Nogueira Pinto, que foi directora da maternidade durante algum tempo e fez uma reviravolta naquilo.
Foi nomeada uma comissão para fazer um levantamento e análise dos problemas da saúde materna e infantil. O documento foi apresentado na Assembleia. Os deputados ficaram horrorizados e votaram 300 mil contos para fazer obras, [resolver] insuficiências que foram detectadas nesse levantamento. Fizeram-se as obras. Mas um pediatra do Porto, o dr. Octávio Cunha, deputado do PRD, escreveu uma carta a Leonor Beleza a dizer: “Não basta umas obras para resolver o problema, é preciso fazer um plano completo.” Propunha que fosse nomeada uma comissão com dois vogais do Norte, dois do Centro e dois do Sul. Esta comissão prometeu que, se o que fosse decidido não fosse cumprido, a comissão autodestruía-se. Entretanto, o dr. Albino Aroso foi para ministro da Saúde.

Com a alteração no ministério, o plano manteve-se?
Sim. E demonstrámos que era uma incongruência haver duas direcções-gerais, que a pirâmide devia ser uma coisa só encabeçada pela Direcção-Geral da Saúde. Cá em baixo estavam os centros de saúde, os hospitais concelhios, os hospitais distritais e os hospitais centrais. Com isto definimos 45 lugares onde se nascia de maneira segura. O parto seguro tem a ver com as condições em que acontece o parto. Se está em funcionamento a anestesia, se está em funcionamento o serviço de sangue, tudo o que de um momento para o outro pode ser necessário.

Eu nasci em 1971, em casa. Quando é que passou a ser uma coisa evidente, constante, as crianças nascerem nos hospitais?
Foi ao longo da década de 70 e de 80 que isso foi subindo, subindo. Ainda me lembro de estar na maternidade e de as parteiras trazerem doentes que estavam a assistir em casa delas para lá.

Definiu-se o parto seguro, definiram-se 45 lugares onde se nascia em segurança. E nos restantes locais?
Os outros fecharam e as pessoas não reclamaram.

Como é que, em dez anos, uma população que não tinha ideia alguma do que era planeamento familiar (expressões como “saúde materna” não se usavam), bem como médicos e enfermeiros, aderiram ao projecto e mudaram hábitos?
Toda a acção que uma pessoa faça nesta matéria, 40 semanas depois tem o resultado. A existência de consultas disponíveis de saúde materna, toda a legislação apoiando a mulher, tudo isto contribuiu para uma adesão perfeita. As pessoas perceberam que o seu bebé ia ser bem vigiado.
Nos anos 60, tínhamos 40 bebés que morriam em cada 1000 que nasciam. Com o 25 de Abril, o facto de terem ido médicos recém-formados para a periferia alterou muita coisa. Eles detectavam as gravidezes com mais risco e mandavam-nas para os centros. O nosso objectivo, como país da Europa, que se dizia que era, era ter um dígito em mortalidade. Esse objectivo foi cumprido de 1992 para 1993. E de 1993 para 1994 foi a perinatal, a que engloba os bebés que nascem mortos, [que baixou].

Apanhou a fase anterior a estes números que nos orgulham, em que viu crianças morrer. O duro que deve ter sido... Como é que se conseguia lidar com isso?
Temos de pensar no caso individual e no caso geral. Um facto que não seja evitável temos de o aceitar. Quando alguma coisa acontece e aquela morte podia ter sido evitada, ficamos muito amargurados. Em 1987, era responsável pela urgência na maternidade. Em Maio, dei-me conta de que havia um determinado número de mortos intrapartos. (O bebé entrou vivo, mas morreu durante o trabalho de parto. Há bebés que têm fragilidades e o trabalho de parto pode desencadear a sua morte.) Peguei nesses casos que tinha seleccionado e levei-os a uma reunião. Nessa altura tínhamos 12 mil partos por ano. Os aparelhos andavam a estremecer de um lado para o outro. Depois dessa reunião, na segunda metade daquele ano, só morreram metade, em relação à primeira [metade]. E sem melhorar as condições. Só a atenção das pessoas. O volume é tão grande que a atenção também se dispersa.

Anos mais tarde, as cesarianas e a epidural começaram a ser banalizadas.
Na Alfredo da Costa, sempre quisemos estar na vanguarda das mudanças. E conseguimos. Em relação à dor, no princípio dos anos 90, anestesistas novos foram à Bélgica aprender a usar a epidural. Quando saí da maternidade, em 1996, 30% dos partos eram feitos com epidural.

Não faz sentido nenhum a mãe sofrer horrores, pois não?
A mãe é que tem de dizer se quer. Quando as grávidas me perguntavam: “Acha que devo fazer epidural?”, eu dizia: “Eu cá não acho nada. A senhora só tem de saber que existe a epidural. E quando chegar a altura, se dá um grito e diz que não aguenta mais, nós damos-lha.” A epidural não é uma coisa que se imponha, é uma coisa que se pede. Antigamente, dávamos injecções intramusculares, morfina.

Agora estão na moda os partos em casa, os partos na água e até não vacinar as crianças. Que lhe parece?
São modas que aparecem sempre. E há pessoas que querem seguir a moda sem senso nenhum. Querem imitar os outros. As minhas doentes no consultório estão informadas, esclarecidas. Algumas vêm com ideias feitas e perdem-nas porque demonstro que não vale a pena ter aquelas ideias feitas. Umas querem partos maravilhosos e têm-nos, outras querem partos maravilhosos e não os têm porque a natureza delas não vai lá.
O parto na água é uma coisa que serve para aliviar a dor da mãe. O bebé nascer dentro de água não tem relevância. Há descrições de casos em que o bebé sofreu com isso e outras em que não.

E sobre a vacinação das crianças, que pensa?
Não sei quais são os fundamentos científicos em que se baseiam para dizer que não vale a pena vacinar. Há sempre riscos, mas o que está em causa é o resultado final.

Aborto. Também há uma mudança nos últimos 30 anos em relação à maneira como ele é praticado, como está legalmente contextualizado e como é percepcionado pela opinião pública.
Estive muito tempo ligado ao aborto espontâneo. Estive muito tempo ligado ao insucesso da gravidez de mulheres que queriam ter um filho. Engravidavam mas abortavam, repetidamente. Felizmente que desde 1989 temos na maternidade uma consulta para resolver estes casos. As primeiras mulheres que chegaram a essa consulta tinham nas suas gravidezes 95% de insucessos. E com o nosso estudo, com o nosso tratamento, invertemos a tendência e passaram a ter 85% de sucesso. A definição de aborto espontâneo vai até às 22 semanas de gravidez, aos 500 gramas de peso, aos 25 centímetros de comprimento.
Em relação à mulher que não quer a gravidez por qualquer razão, por um motivo que é dela, é preciso reconhecer que ela tem esse direito. [O reconhecimento desse direito] aconteceu com a lei votada.

Está a referir-se à lei que descriminaliza o aborto até às dez semanas, votada em 2007?
Sim. Sempre defendi que a mulher tem o direito de fazer a escolha. Não vamos incutir nela os nossos princípios morais. E o Estado tem de dar essa hipótese. Ser obrigada a ir para um círculo clandestino… Assim como falamos em parto seguro, também falamos em aborto seguro. Para além disso, é um problema de consciência de cada um, da grávida e do técnico. O aborto seguro traz complicações inferiores à amigdalectomia.

É, mais do que tudo, um problema moral?
Sim.

No começo do Verão discutiu-se [e foi aprovada no Parlamento, numa data posterior à entrevista] o pagamento de uma taxa moderadora, a obrigatoriedade de consultas de aconselhamento onde podem estar médicos objectores de consciência; foi também esboçada a intenção de fazer a mãe ver a ecografia do feto antes de abortar.
Isso não tem interesse. Nem vai induzir mudança de atitude. Toda a gente sabe que ela vai ver o coração bater. Não é por ver que vai alterar o desejo [de abortar].

E a taxa moderadora?
Tem uma razão de ser nas mulheres que repetem o aborto e que o fazem como se fosse um método contraceptivo. Havendo essas mulheres, elas têm de ser ensinadas ou chamadas à razão de outra maneira. Mas isto não é uma coisa que se faça de ânimo leve.

Como é que foi o seu último parto do ano passado?
Era uma senhora a quem fiz a terceira cesariana. Ah, mas o anterior foi um parto muito bonito, como sempre nessa senhora.

O que é um parto muito bonito?
Aquele parto em que quase não mexemos em nada. E em que o trabalho de parto foi bom, rápido. Acontece naturalmente. Só ajudamos o bebé a nascer.

Fez quantos?
Ao fim de 1890, resolvi parar. Na privada.

Na maternidade, não tem ideia?
Não. Ultimamente, só fazia cesarianas.

Porque é que parou?
Tinha prometido à família que com 80 anos ia parar. E porque já não ia para o parto com aquele prazer com que ia antes.

O prazer era o de ver uma vida nascer?
Era, era. O prazer de estar ali, naquele desafio da natureza. Sempre lutei para que a mulher percebesse o que é que estava a acontecer dentro dela. E muito especialmente durante a gravidez. Preparo as minhas grávidas para o parto de uma maneira natural.

Procura saber ouvir, saber ver a natureza e auxiliá-la?
É. E não pôr as coisas à frente. Nunca tive pressa. Se está tudo dentro do normal, para que é que vou acelerar aquilo?

Assistiu ao parto dos seus filhos?
Das filhas, vi. Foi um parto complicado, que hoje não se teria feito. A primeira bebé estava de rabo e a segunda estava transversa.

Teria sido cesariana.
De caras. Mas em 67 não era assim. O dr. Amâncio Rocha fez uma manobra que já ninguém sabe fazer: versão interna seguida de grande extracção pélvica. Meteu a mão, agarrou-lhe os pés, fez assim à cabeça… A primeira, 2,950 quilos, a segunda, 3,450. Eram seis quilos e tal de fetos [risos].