Metro e meio de contestação, teatro e garra

Há quatro anos, António Costa e Catarina Martins não eram líderes partidários. Passos Coelho prometia não cortar salários. Paulo Portas foi a votos sozinho. Jerónimo de Sousa foi a Havana falar com Raúl Castro. Este é o primeiro artigo da série "Quatro anos que mudaram a vida deles (e a nossa)."

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Catarina Martins quis esvaziar a polémica Miguel Manso

"O habitante do número 667 daquela rua era um homem absolutamente normal: pai de família, bom profissional, empreendedor. Apenas uma coisa perturbava o doce correr dos seus dias: a estranheza que emanava da casa ao lado, o aspecto bizarro e as movimentações suspeitas do seu vizinho. Este vizinho do lado transforma-se lentamente na personificação de todo o mal.” A sinopse da peça 667, O Vizinho da Besta, de que Catarina Martins é co-autora, foi à cena no Rivoli, em 2003, mas diz muito sobre o que se passa hoje. A porta-voz do Bloco de Esquerda, que também a interpretou e encenou na companhia Visões Úteis, escolhe-a para personificar os últimos quatro anos políticos em Portugal e na Europa.

“O pai passa a vida a olhar para a janela e a fazer especulações; e com medo do que há-de vir lá de fora deixa deteriorar completamente a vida dentro de casa e desfazer-se a família. O medo contamina todas as decisões, normalmente as piores decisões. Isso lembra a forma como a Europa se está a comportar”, descreve Catarina. Deixou o teatro em 2009, quando foi eleita pela primeira vez deputada do Bloco, mas é actriz que ainda se sente.

A passagem entre os dois mundos não foi assim tão estranha, afinal, “teatro é política”. “Há alguma coisa mais política do que as pessoas estarem juntas numa sala a ver uma parte ou uma leitura do que é a vida colectiva, a reflectir sobre o momento de uma forma colectiva? Não há nada mais político do que isso!” E a Visões Úteis, que ajudou a fundar em 1994, no Porto, é uma companhia com uma “visão política e de esquerda e ‘dos de baixo’, tanto pelo tipo de reflexão e de autores, como pelo tipo de trabalho” — em teatros mas também no espaço público, incluindo aldeias do interior transmontano, do Alentejo ou das Beiras, prisões, bairros sociais, mas também na Galiza, descreve Catarina. No palco como na política, por muita companhia e generosidade que se tenha em volta, “há um momento em que se está sozinha frente à responsabilidade”.

Foi o teatro que a levou para a política formal. E demorou quatro vezes mais tempo a tornar-se militante do que a chegar à liderança do partido. O espírito de contestação de Catarina Martins já vinha desde a malograda PGA, a prova geral de acesso obrigatória para o 12.º ano no arranque da década de 90. Continuou na luta contra as propinas, em Coimbra; acompanhou-a até ao Porto, onde fundou uma associação teatral com forte pendor social. Andou perto do PSR, mas nada de orgânico, e aproximou-se do Bloco de Esquerda nos primórdios do partido.

Lembra-se de enviar por email, em 2002, uma ficha de inscrição de militante no Bloco, que terá acabado perdida no buraco sem fundo em que a Internet parece às vezes transformar-se. E nunca mais se preocupou com isso. Nem mesmo quando em 2009 redigiu boa parte do capítulo sobre cultura do programa eleitoral bloquista. “Só não era militante por acidente”, desvaloriza, encolhendo os ombros. Em 2010, já com o cartão de deputada do BE à Assembleia da República no bolso, decide que não faz sentido continuar como independente, sem fazer parte da discussão política em estruturas como a comissão política ou a mesa nacional, quando a sua intervenção era já tamanha. E alistou-se. Apenas dois anos depois era indicada por Francisco Louçã, o carismático líder bloquista, para lhe suceder numa coordenação paritária com João Semedo. Agora, integra a comissão permanente (de seis dirigentes) e é a porta-voz do partido. Contas feitas, está à frente do partido há três anos — talvez os mais complicados da vida do Bloco. Mas já lá vamos.

Lá por casa, em Aveiro, os corredores sempre respiraram política. À esquerda, bem à esquerda. O pai e o irmão até estiveram na fundação do Bloco, mas Catarina garante que não foi isso que a influenciou — aliás, nem se chegaram a cruzar no partido porque quando ela entrou o pai já não estava no activo. A jovem estudante que aos 18 anos seguiu para Direito em Coimbra e no 3.º ano se perdeu de amores pelo teatro diz ter feito sozinha as suas opções políticas. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas — o ideal para seguir dramaturgia —, fez mestrado em Linguística e tem um doutoramento suspenso (falta a tese) sobre Linguagem e Envelhecimento.

Catarina e João paritários

Quem a levou para o partido foi o sociólogo e então deputado João Teixeira Lopes. Já a conhecia das andanças culturais no Porto quando a convidou para número dois da sua lista à autarquia portuense, em 2005. Não foi eleito, mas a ligação não mais se quebrou. “Espero que o marido e as filhas um dia me perdoem por a ter roubado para a política”, ri-se o antigo deputado. Conhecia Catarina da Visões Úteis mas também da Plateia — Associação de Profissionais das Artes Cénicas, onde ela tinha funções directivas. Foi essa polivalência que o impressionou.

“Fez-se um click quando li algumas peças que escreveu. Porque ela era dramaturga, actriz, encenadora, produtora cultural e gestora. É muito difícil encontrar alguém que faça a ponte entre a parte programática da gestão e a criatividade e tenha a capacidade de liderança que ela mostrava. Quem está nos activismos sabe que estes são perfis especializados e que nem sempre comunicam entre si.”

Desafiou-a para a lista do BE pelo Porto em 2009, atrás de João Semedo e José Soeiro, dizendo que podia partilhar a vida entre Lisboa e Porto. Catarina diz rindo que “sabia que estava a ser enganada” e demorou apenas um dia a acertar a resposta com a família. Foi eleita e teve de mudar parte da sua vida para Lisboa — ela, o marido e as duas filhas (Pedro Carreira continua a ter trabalho no Porto e a família anda constantemente em viagem, “temos sempre o Alfa Pendular”). Deixou a gerência e passou para a sogra a quota maioritária de uma sociedade de turismo rural em Gaia (ficou com apenas 4%) e encerrou a actividade como actriz. No Parlamento, acompanhava sobretudo as áreas sociais, culturais e educação. O que se seguiu foi um percurso “rápido mas natural”, considera Teixeira Lopes. “Nunca teve nenhum tipo de apoio aparelhístico nem apadrinhamento. Impôs-se pelo seu talento e trabalho.”

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Os últimos quatro anos foram os mais atribulados na curta vida de década e meia do Bloco de Esquerda. Depois do máximo histórico de 16 deputados em 2009, as legislativas antecipadas de Junho de 2011 foram um desastre, elegendo apenas oito. Não conseguiram chegar ao Parlamento nomes fortes como José Manuel Pureza, José Gusmão, Helena Pinto (que entraria para substituir Louçã) ou José Soeiro (o terceiro pelo Porto, que substituiu depois João Semedo). O partido teve “os votos que o povo entendeu que merecia”, assumiu Francisco Louçã. A sua demissão não estava em cima da mesa, assegurou. Acabaria por sair um ano e três meses depois, já com a sucessão pensada: uma coordenação paritária de Semedo e Martins — uma solução, diz Louçã à Revista 2, não de sua autoria, mas de Miguel Portas, que importou um modelo que funciona na Alemanha e na Suécia para aligeirar a carga pesada que tem a figuração única na liderança de um partido e acentuar a participação igual de homens e mulheres.

A expressão vai integrar a lista de termos endógenos do Dicionário do Bloco de Esquerda que será lançado dentro de duas semanas — depois, seguir-se-ão os dicionários dos outros partidos. “Tem uma entrada para ‘coordenação paritária’, com o historial do processo no Bloco, explicando que surgiu com o intuito de estabelecer alguma novidade no panorama político nacional, mas também admite que não fomos bem-sucedidos, embora na teoria tenha sido um bom modelo”, conta João Teixeira Lopes, que coordena a obra com José Soeiro.

Foi uma “tentativa de modernizar a política” que não resultou, admite Louçã e espeta a agulha: às críticas internas e externas, os bloquistas respondem com as “vistas curtas” que Portugal ainda tem nestes assuntos. Houve um problema comunicacional, reconhece a eurodeputada Marisa Matias; a envolvente política não ajudou, acrescenta Fernando Rosas. A que se somou a doença de João Semedo, que o obrigaria a retirar-se do Parlamento. A ideia de serem precisas duas pessoas para substituir Louçã dava uma imagem de incompetência.

Em Novembro de 2012, Catarina e João não receberam uma herança fácil. Louçã tinha uma liderança “afirmada e carismática”, reconhece Rosas. E os tempos eram de “derrota para as esquerdas na Europa, com a imposição de programas de austeridade em vários países, e um refluxo social e político das posições antiausteridade que se reflectiram mais no Bloco do que no PCP”. Houve uma “relativa incapacidade de reagir”, admite o historiador e fundador do BE. Mas era uma mudança de liderança necessária — “Os partidos de esquerda não podem passar a vida a dizer que é preciso mudar e depois não o fazerem. Mas ninguém abandona as causas nem o partido”, assegura Rosas.

“Caminho das pedras”

O processo da sucessão levantou celeuma entre as várias facções que compõem o Bloco (PSR, Política XXI e UDP). Ainda antes, em Junho de 2011, Rui Tavares e Louçã desentenderam-se nas redes sociais por causa dos nomes dos fundadores do Bloco — o eurodeputado deixou a delegação do partido no Parlamento Europeu e mudou-se para os Verdes. E em Abril de 2012 o partido ficou órfão de um dos fundadores, com a morte de Miguel Portas. O “caminho das pedras” ficou ainda mais difícil quando o Bloco perdeu também força nas autárquicas e mais ainda nas europeias de 2014, elegendo apenas Marisa Matias. Além de Tavares, foram saindo do partido nomes como Joana Amaral Dias, Ana Drago, Daniel Oliveira ou Gil Garcia. João Semedo resume: “Desde o desaire eleitoral de 2011, o Bloco esteve debaixo de fogo dos adversários, que não perderam a oportunidade de tentar apagar-nos do mapa político, promover a divisão e estimular a formação de outras forças para enfraquecer o campo da esquerda. Tudo serviu para atacar o Bloco.” Tavares e os quatro últimos envolveram-se na criação de movimentos e partidos à esquerda, parte deles defendia um rumo de aproximação do Bloco ao PS, que Catarina sempre recusou — “Não fazemos parte do pântano, do rotativismo. Nascemos para romper o bipartidarismo.”

Este é o reduto do Bloco, aponta precisamente o marketeer Pedro Bidarra. “Ninguém espera que o BE vá governar; é um partido de contestação. Catarina Martins é uma óptima actriz que veste a personagem dos movimentos e com ela o Bloco ainda triunfou mais nessa linha do teatro da contestação. Ela encarna muito bem essa esquerda que só luta: tem a energia, o espírito e o histerismo contestatário. Só lhe falta a boina basca.” Bidarra realça que os movimentos se fazem “à volta de um líder e um grupo de fanáticos iniciais que traçam uma linha na areia para dizer ‘nós somos isto e nunca vamos passar para o lado de lá’”. Por isso, quando apareceram no Bloco militantes a defender uma aproximação ao PS, foram apontados como os traidores à matriz original do Bloco. E a solução foi a saída, acrescenta o especialista em marketing.

Sobre as saídas de alguns militantes, Catarina Martins não se alonga. Diz não ter privado com Rui Tavares, mas era próxima de Ana Drago. Profissionalmente, entenda-se, porque o seu círculo de amizades “não se confunde com o Bloco” nem estimula as relações pessoais no partido. Não se zangaram, mas afastaram-se. De quem se aproximou foi de Marisa Matias, que antes fora crítica da coordenação dupla. Não fazem vida social nem trocam prendas, mas partilham ideias sobre livros.

Olhando para os últimos quatro anos, Louçã encontra explicação para as dificuldades do Bloco não só interna como externamente. “Foram tempos terríveis para Portugal, ficámos numa situação de grande vulnerabilidade social e com um sistema político incapaz para dar respostas aos problemas”, que acentuou a desmoralização e aumentou a divisão à esquerda, numa pulverização de movimentos que não ultrapassarão o 1% nas eleições. Apesar de tudo, Semedo continua a acreditar que a coordenação a dois foi uma decisão acertada, tal como também o foi, em Novembro de 2014, na última convenção, mudar o modelo de representação. Perante o impasse com uma votação empatada entre a sua lista e a de Pedro Filipe Soares, o médico propôs o modelo que está em vigor: uma nova direcção com seis nomes, representando todas as sensibilidades, Catarina como porta-voz e Pedro Filipe Soares na presidência da bancada. Paz, finalmente?

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“Decisões acertadas não quer dizer que não tenham tido ou trazido problemas. Mas tudo isso é passado, o saldo é francamente positivo: o Bloco tem uma direcção eficaz, unida e muito activa. E a Catarina Martins, vencendo o marialvismo que há na política portuguesa, tem afirmado muito bem o projecto e a proposta do Bloco, seja sobre o país, seja sobre a política da União Europeia”, realça João Semedo. Rosas, Louçã, Marisa Matias e Teixeira Lopes são unânimes nos elogios rasgados a Catarina Martins e no que representa para a recuperação do Bloco. Dela dizem que tem aprendido e afinado bem o discurso, é clara, prepara-se bem e tem nervos de aço. Prova disso foi o desgaste e a pressão de que Catarina e Semedo foram alvo durante a liderança paritária. E na passagem para o novo modelo, como porta-voz, ela foi capaz de “sarar algumas feridas”, “estabelecer pontes e comunicação entre as várias sensibilidades do Bloco”, unir os dirigentes, apresentando-se como alguém que dialoga com todos, mas que tem firmeza e que “tem uma visão do campo de esquerda”. Isso já se nota nas sondagens, com o partido numa tendência sistemática de subida, destacam os bloquistas. Louçã realça a contribuição de Catarina para a emergência de novos dirigentes e a ajuda da “rock star” Mariana Mortágua.

“Foi tudo bom, foi tudo perfeito? Claro que não, mas julgo que o Bloco esteve muito bem naquilo que conta: defender as pessoas da austeridade e da pobreza, combater os credores, os mercados, a troika e o Governo”, resume Semedo.

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O entusiasmo com o Syriza

Com um Bloco em 2015 tão diferente do de 2011, não foram só os nomes que foram mudando. O pensamento do partido também. Se Catarina Martins não defende a saída do euro e prefere centrar a questão na renegociação da dívida, Louçã defende que Portugal “não tem alternativa que não seja preparar-se sistemática e competentemente” para a saída da moeda única. Porque “o tempo corre contra nós” e se a Grécia tivesse tomado essa iniciativa há meio ano teria mais possibilidades de enfrentar Angela Merkel.

O Bloco sempre olhou com enlevo para o percurso do Syriza, é o seu “partido irmão”, tomou-lhe a alegria das vitórias e as dores das derrotas. Enchia os discursos dentro e fora do Parlamento com a coragem helénica quando Atenas se rebelou contra o plano de austeridade no dia a seguir à vitória de Alexis Tsipras. Afinal, havia outro caminho, gritaram insistentemente Catarina, Marisa e outros bloquistas que foram repetentes em manifestações de apoio ao Syriza na Grécia. Louçã concorda que “não procurar uma aliança [do Bloco ao Syriza] era uma forma de cobardia política que não tem sentido na Europa, porque são precisas ideias novas à esquerda, soluções europeias”, e subscreve a aposta do Bloco em como a Grécia poderia ajudar Portugal a enfrentar a questão da dívida, servindo de candeia.

Ainda assim, Louçã e Semedo, contidos, defendem que a posição bloquista devia ter sido “menos efusiva”, sobretudo no referendo. O fundador do Bloco e a porta-voz admitem a desilusão quando Tsipras, mesmo depois do redondo “não”, aceitou o novo resgate em troca de mais austeridade. Entre os bloquistas, recusa-se a ideia de “capitulação”; Marisa diz que a opção era entre a peste e a fome e que o Syriza subestimou a vontade real da Europa de não negociar.

Agora que boa parte da chama se apagou em Atenas e até Tsipras se demitiu, o megafone no Bloco foi-se calando. Catarina diz que não gostou que o chefe do Governo grego aceitasse o resgate e muito menos que se demitisse. “O Syriza foi confiante demais. Devemos ter prudência”, disse à Revista 2 poucas horas depois de se saber da demissão.

Sem as bandeiras do casamento entre pessoas do mesmo sexo ou o aborto e com a co-adopção metida na gaveta pela direita, o Bloco conseguiu ainda assim algumas vitórias. Catarina, Marisa e Semedo lembram os pedidos de inconstitucionalidade de normas dos orçamentos que o tribunal foi aprovando, que o Bloco começou sozinho arregimentando alguns deputados socialistas. Mas também houve, por sua iniciativa, avanços na criminalização da violência doméstica, trabalho reconhecido em comissões de inquérito como as dos submarinos, PPP [parcerias público-privadas], estaleiros de Viana e sobretudo do GES/BES. Apresentou uma moção de censura e votou a favor das outras cinco. E o que foi o pior? “Não conseguir travar a austeridade.” Marisa Matias recusa a perda de bandeiras e de espaço de influência do partido.

“O Bloco foi o partido que se empenhou fortemente em todos os espaços de luta contra a austeridade, a troika e o Governo PSD-CDS, sem qualquer sectarismo ou controleirismo. Estivemos na Auditoria Cidadã à Dívida, no Congresso das Alternativas, nas gigantescas manifestações do Que se Lixe a Troika, nas Aulas Magnas, nas greves gerais e outras lutas sindicais, nos movimentos sociais e populares contra as privatizações, os ataques à escola pública e ao SNS [Sistema Nacional de Saúde], contra os cortes nos salários, nas reformas e nos apoios sociais. O Bloco esteve na rua e no Parlamento, tanto na luta como na proposta alternativa, no protesto mas também no projecto de esquerda”, descreve João Semedo.

O trabalho parlamentar é planeado na reunião semanal dos coordenadores e deputados; as intervenções de Catarina Martins no plenário são trabalhadas com os assessores Catarina Oliveira e Pedro Sales. Trocam-se ideias, informações sobre os temas quentes e os que o Bloco suscita. E tenta pensar-se fora da caixa, com acções diferentes, como quando a bloquista criticou o executivo por governar constantemente contra a Constituição e, em pleno debate quinzenal, ofereceu a Passos Coelho uma edição em miniatura da Lei Fundamental que o Parlamento estava a oferecer aos alunos que o visitavam. Para ver se o primeiro-ministro finalmente a lia e compreendia, justifica Catarina. Ou quando os deputados bloquistas, há semanas, empunharam cartazes de apoio à Grécia.

Mas a linguagem forte, crítica e directa é preparada apenas pela porta-voz. Admite que escolhe um tipo de discurso e cadência da linguagem consoante a situação — e os debates quinzenais, transmitidos em directo na rádio e TV, alvo de análise pelos comentadores e com repetição certa nos ecrãs, valem pelas frases bombásticas, pelos dedos em riste, pelos trocadilhos que agradam ao povo. Já chamou mentiroso a Passos Coelho sob diversas formas. Uma delas provocou celeuma. Disse-lhe que a sua palavra não valia nada e colocou-lhe uma questão. Na volta, o primeiro-ministro disse-lhe que se o que dizia não valia nada então não lhe respondia. Os deputados bloquistas protestaram, abandonaram a sala e pediram uma conferência de líderes especial sobre a condução dos debates. A presidente do Parlamento rejeitou.

Vida na rede

Sorriso largo, ar de miúda num corpo que faz 42 anos de amanhã a uma semana. Com uns olhos verdes brilhantes que a escassa maquilhagem diária não realça, é apenas nas idas à televisão que Catarina Martins tem ido variando o estilo. Ora um cabelo mais armado que lhe dá um ar mais conservador, ora um penteado escorrido que lhe dá uma aparência moderna. No gabinete da caracterização dos canais de televisão, lá vai mudando o estilo, mas depois de sair do ar Catarina Martins mete os dedos nos cabelos, vira a cabeça para baixo, e lá os vai puxando, amachucando, soltando a laca para tentar voltar ao seu estilo descontraído. Das mãos da maquilhadora, porém, sai sempre com os olhos verdes realçados a lápis e rímel. Apesar da sua aparente despreocupação com a aparência, uma vista de olhos pelas fotografias revela, por exemplo, que passou a pintar os cabelos brancos que já pontuavam sobretudo a franja, e deixou de aparecer em público com um pequeno rabo-de-cavalo apanhado de forma descuidada. Mas manteve a regra de acompanhar a blusa com um colar de artesanato. Vestidos ou saias são peças raras, aparece de botas de cano alto no Inverno, e no Verão permite-se sandálias de salto largo.

Pensar que pode ser questionada sobre a sua vida pessoal deixa-a de pé atrás. Tem uma actividade profícua nas redes sociais, sobretudo no Twitter, Facebook e Instagram. Por ali coloca fotos da sua vida extra-Bloco, sempre sem identificar as duas filhas, de 13 e 9 anos, outras pessoas com quem esteja ou até os locais. Também aparece Carlier, uma das personagens de A Frente do Progresso, de Joseph Conrad, que Catarina traduziu e adaptou para a Visões Úteis — e de que o marido, Pedro Carreira, foi um dos intérpretes. O pequeno boneco recortado em papel ora se encosta a um ferro de engomar antigo ou a um avião de Lego, ora acompanha a caveira do esqueleto Jeremias, a quem já falta um dente.

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Nas férias, publicava imagens de uma lagoa, um pinhal, uma praia, um castelo, e a resposta a quem perguntava onde era acabava por ser evasiva. Há também imagens das duas gatas — a Gema adora colares como a dona — e até uma de Catarina a pintar um portão de ferro trabalhado, junto a um muro de granito, no último dia de férias deste ano, antes da maratona de comícios nocturnos no Algarve nestas duas semanas. Terá sido no Sabugal, a terra do marido. E fotografou um livro que levou para férias: La Coca, de Rentes de Carvalho — dono de uma escrita que é em simultâneo simples e muito densa, justifica.

As filhas já têm noção do trabalho da mãe. Não falam muito do assunto, mas isso não significa que estejam distraídas. Há tempos, a mais velha ralhou com a mãe porque num debate com Passos Coelho falou em tudo menos nos exames que estavam a decorrer e que puseram de pantanas as rotinas dos alunos. Catarina Martins tenta compensar de manhã as chegadas tardias a casa: é ela quem as levanta, tomam o pequeno-almoço juntas e leva-as à escola. E se os fins-de-semana com o partido se acumulam, o calendário na parede da sede do Bloco, na Rua da Palma, ao Martim Moniz, passa a ter uns dias a vermelho à frente do seu nome — e são intocáveis. Há pouco tempo criaram uma rotina: pais e filhas escolhem à vez um filme. Os primeiros escolhem obras antigas como O Feiticeiro de Oz original ou Roger Rabbit; elas iniciaram-nos nos Mínimos e nos musicais infantis como Annie (a nova versão).

Na televisão vê informação e séries, como se percebeu em Fevereiro num debate quinzenal em que se referiu à série dinamarquesa Borgen — que retrata um governo de coligação de três partidos e um quarto que os apoia no Parlamento, um exemplo extremo de cordialidade governativa, portanto. Catarina pretendia aconselhar Passos a escolher melhor os aliados de Portugal na Europa.

O calendário à frente do Bloco secou o tempo para as artes e as viagens. É quando se lhe pede que recorde uma última “saída” que percebe que foi ao teatro pela última vez em Abril para ver O Fim das Especialidades, encenado por Fernando Mora Ramos. Também recorda com agrado O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão, pelo Teatro Meridional, no ano passado.

Quase todas as manhãs coloca nas redes sociais um “bom dia” acompanhado por uma música, uma fotografia ou a imagem de um quadro. Guarda as críticas políticas para quando “linka” alguma notícia da TV ou imprensa ou sobre as actividades do Bloco. Nas páginas do Facebook ou no Twitter estão também fotos suas em comícios, arruadas, congressos, conferências, visitas a hospitais, mercados, pescadores, e também há ligações para vídeos de entrevistas nos vários canais de televisão, ou reportagens como as realizadas em Atenas.

Analisando o perfil comunicacional de Catarina Martins, o marketeer Carlos Coelho faz uma analogia com a gestão de uma marca. Transforma as iniciais da deputada em “Cara de Mãe”. “É uma actriz política a desempenhar o papel de mãe de um partido que ficou sem pai. É um C de colectivo, tem um papel difícil de cara agregadora, desbloqueadora dos conflitos, e com um estilo executive freak: ora maternal, ora acutilante, mas de uma forma doce.” Coelho considera que ela “tem muito o sentido da performance, ao contrário do radicalismo de Louçã. Sabe que importa tanto o que diz como a forma como o diz. Ela é uma esquerda serena, intelectualmente honesta, uma marca mais madura que Louçã (que era muito radical na forma), mas mais contemporânea que João Semedo (que é mais ‘jurássico’)”. Em comparação com 2011, “está um pouco menos freak, mais madura, mais organizada no seu pensamento e na forma como se veste. Sabe que não pode aparecer a dizer que quer ser primeira-ministra com muitos colares de madeira”.

Catarina Martins diz que na rua ouve cada vez mais incentivos e palavras amigas, embora ainda apareçam os pouco agradáveis “vai p’ra casa” ou “são todos iguais, querem é tacho”, gritados aqui ou além. Mantendo a tradição de ter mulheres bonitas na bancada bloquista, há quem faça confusão com os nomes das mulheres do partido, conta Catarina rindo, referindo-se às vezes em que tem aparecido ao lado de Marisa Matias — e para a qual perde atenções: “Pudera, apareço eu de metro e meio e ela altíssima ao meu lado…” Tenta passar a ideia de não ser dada a ciúmes, como quando se pergunta se Mariana Mortágua não lhe tirou protagonismo pela forma como brilhou na comissão de inquérito ao BES. Responde ao lado — que é bom o partido ter várias caras, pessoas variadas capacitadas nos assuntos, que possam brilhar nos diversos palcos, e, vinca, a Mariana fez um excelente trabalho na comissão.

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