Já tinham morrido refugiados na Europa, mas nunca sufocados dentro de um camião
Sufocaram, as 71 pessoas encontradas mortas num camião na Áustria. O tráfico de seres humanos aumenta e adensa a tragédia dos refugiados que querem chegar à UE, que não encontra um solução unida para a crise. Cada país age por sua conta: militarizando-se ou pedindo que o espaço europeu seja blindado
O camião, revelou a polícia, saiu de Budapeste, a capital húngara, cedo na manhã de quarta-feira. Às nove da noite passou a fronteira e entrou na Áustria. Quase 24 horas depois, foi encontrado parado, numa área de descanso numa auto-estrada em Burgenland, não longe da fronteira.
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O camião, revelou a polícia, saiu de Budapeste, a capital húngara, cedo na manhã de quarta-feira. Às nove da noite passou a fronteira e entrou na Áustria. Quase 24 horas depois, foi encontrado parado, numa área de descanso numa auto-estrada em Burgenland, não longe da fronteira.
Hans Peter Doskozil, chefe de polícia de Burgenland, disse na conferência de imprensa, que não se sabe ainda quem são os mortos. Há, neste crime, informações que são certas e outras que têm que ser suposições. Certo, é que os 71 refugiados podiam estar já mortos quando os motoristas arrancaram com o camião em Budapeste. “As mortes aconteceram há algum tempo. Não podemos dizer ao certo o que as provocou. Podemos presumir, porém, que se tratam de refugiados”, disse Doskozil. Presume-se também que sejam sírios — pelo documento de identificação encontrado entre os corpos em decomposição.
O camião pertenceu a uma empresa de derivados de frango até 2011, foi então vendido e está agora registado no nome de um cidadão romeno. Foi o ponto de partida para o início das investigações, que juntaram a polícia húngara e austríaca, e que levaram à detenção de três húngaros e de um afegão (dois deles os motoristas, um deles, disse a polícia, sugeriu no interrogatório que os passageiros sufocaram). Nenhum deles pertence à chefia da rede de tráfico que assassinou estas 71 pessoas, avisou Hans Peter Doskozil; disse que são meros operacionais, mas podem ajudar a desmantelar a estrutura. “Esperamos que [estes detidos] nos levem a outros criminosos”, disse Hans Peter Doskozil. Vinte pessoas começaram a ser interrogadas e realizaram-se buscas em residências.
Em Viena, o Ministério do Interior revelava dados a mostrar que o Governo austríaco está atento ao tráfico de seres humanos (oito suspeitos presos entre 1 de Julho a 1 de Agosto, elevando o total de detidos para 278, e 800 investigações abertas) desde o início do Verão, quando subiu o número de pessoas em trânsito na chamada Rota das Balcãs, que leva para o Norte da União Europeia - via Grécia, Macedónia, Sérvia e Hungria - a massa humana que foge de países africanos, asiáticos e do Médio Oriente para escapar à guerra e à perseguição político-religiosa (a maior parte) ou à pobreza extrema.
Não foi a primeira vez que morreram refugiados na Europa. Nove morreram este ano ao tentarem passar de França para o Reino Unido, através do túnel de Calais — o último, um homem sudanês, foi atropelado ao tentar alcançar um camião. Em Março, dois iraquianos morreram de frio na fronteira entre a Bulgária e a Turquia. Em Abril, 14 somalis e afegãos foram mortos quando o comboio de alta velocidade os colheu na Macedónia; iam a pé pela linha em direcção à Hungria. Em Novembro do ano passado, morreram colhidos na mesma linha um bebé de 45 dias e o pai que o levava ao colo. São dados da Human Rights Watch.
Sabia-se desde o primeiro momento que o tráfico humano não acaba no Mediterrâneo, onde as tragédias são diárias com os barcos apinhados de gente que partem da Líbia e da Turquia, sobretudo. Na quarta-feira, mais uma embarcação foi resgatada do mar, ao largo de Itália, com 51 pessoas mortas no porão. Nas embarcações maiores que cruzam este mar, viajam no porão os que pagam menos - os traficantes impedem-nos de subir para apanhar ar, trancam-nos e vendem caro cada momento de ar fresco. Outras vezes é feita uma escolha arbitrária: quando não cabe mais ninguém no convés, parte dos passageiros são mandados para baixo. “Nós não queríamos ir para baixo, mas eles bateram-nos com paus”, disse Abdel, 25, citado nos testemunhos divulgados esta sexta-feira pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). “Não tínhamos ar, tentámos respirar através da frechas, dos buracos, no tecto. Mas os passageiros lá em cima também nos empurravam para baixo por terem medo que o barco se voltasse”.
Estes são os testemunhos dos que chegam com vida até meio do caminho e são resgatados na operação de salvamento criada por alguns países da União Europeia. Quantos se fazem ao mar, em barcos de madeira ou pneumáticos, apinhados, e morrem nas primeiras milhas, não se sabe. Na quinta-feira, também, e numa notícia rara, soube-se que dezenas de corpos estavam a dar à costa numa praia da Líbia. Um porta-voz do Crescente Vermelho disse que deram à costa 82 corpos. “Mas mais cem pessoas estão desaparecidas”, disse à Reuters Ibrahim al-Attoushi.
A Europa está cercada de corpos e está cheia de corpos. A carrinha cheia de gente morta veio expor a extensão das redes de tráfico e a incapacidade dos governos individualmente e da União Europeia como um bloco de travar a tragédia.
Quando os corpos em decomposição foram encontrados, realizava-se em Viena a Cimeira das Balcãs, onde a chanceler alemã, Angela Merkel, falou em “vergonha”. Exigiu à Macedónia e à Sérvia um controlo eficaz das suas fronteiras. E mais nada.
A cimeira encerrou sem debater como deve a Europa responder à chegada de uma massa humana sem paralelo. Acresce a esta aparente inacção o desentendimento entre os Vinte e Oito: não estão de acordo sobre o que fazer, boicotam iniciativas uns dos outros, agem por conta própria (a Hungria construiu um muro e militarizou as fronteiras e anunciou leis punitivas para refugiados e imigrantes indocumentados) e acusam-se mutuamente.
Um dos vice-primeiro-ministros checo, Andrej Babis, citado pelo jornal Pravo, defendeu que a solução para a crise é blindar a fronteira externa. Na sua opinião, mais importante do que solucionar o problema dos refugiados, é salvar o espaço de livre circulação na UE e propõe que se recorra aos militares (à NATO). “Devemos fechar imediatamente o espaço Schengen externo, temos que o defender”, disse.
Os chefes da diplomacia da Macedónia e da Sérvia, aproveitaram a cimeira de Viena para acusarem Bruxelas de nunca ter reagido aos seus alertas e pedidos de ajuda para travar o tráfico. “Se não tivermos uma resposta para este problema não devemos ter a ilusão de que ele terá solução”, disse o ministro macedónio, Nikola Poposki. Na Macedónia estão a entrar entre mil e dois mil refugiados por dia, espera-se que o número chegue aos três mil muito em breve. Na Hungria, a cada dia que passa, alcança-se mais um recorde de entrada de refugiados: uma média de três mil por dia esta semana.
Angela Merkel disse ontem que não haverá nova cimeira sobre a crise (realizou-se uma em Abril, depois de terem morrido mais de 900 pessoas num dia no Mediterrâneo, e uma segunda em Junho; tomaram-se decisões que, de vinculativas passaram a opcionais). Defendeu que tem que haver “uma mudança rápida no sistema de asilo” e que antes de outras decisões os ministros do Interior devem entender-se sobre esta matéria — nove ministros do Interior e dos Transportes reúnem hoje em Paris para falarem de segurança nos comboios que cruzam fronteiras.
A maior parte dos analistas sublinham que a estratégia “cada país por sua conta” só faz aumentar o tráfico — e as mortes. O jornal The New York Times, que falou com responsáveis de organizações governamentais que trabalham no terreno, dava um exemplo: a Hungria está a transportar para Budapeste, em comboios, muitos refugiados que “apanha” na fronteira com a Sérvia. Adverte-os a não prosseguir viagem para a Áustria. Na semana passada, o Governo mandou parar um comboio saído de Budapeste para retirar (e enviar para um centro de acolhimento) 175 refugiados “desobedientes” que tinham Viena como destino — quis fazer deles um exemplo. Este tipo de acções, disseram os responsáveis, encoraja as viagens clandestinas.