As “invasões bárbaras” ao espelho de nós mesmos
As populações não são estáticas. Movem-se. E na Europa sempre foi assim.
Ao longo dos séculos, muitas têm sido as leituras e as interpretações desse que ficou como um dos topoi mais importantes da nossa cultura: a decadência e queda do Império Romano, as chamadas invasões bárbaras, num sentido que torna externo o factor fulminante desse império que parecia eterno e modelar em tudo, seja na arte, na literatura, no pensamento, ou no direito.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Ao longo dos séculos, muitas têm sido as leituras e as interpretações desse que ficou como um dos topoi mais importantes da nossa cultura: a decadência e queda do Império Romano, as chamadas invasões bárbaras, num sentido que torna externo o factor fulminante desse império que parecia eterno e modelar em tudo, seja na arte, na literatura, no pensamento, ou no direito.
Mas o marco tremendo, o trauma teve um ponto alto, um acto marcante. Corria o ano de 410 e Agostinho de Hipona, um muito famoso cidadão romano nascido no Norte de África, que passaria à História como um dos teólogos mais importantes do Cristianismo, debatia-se psicologicamente com o que era inevitável: Roma fora invadida e saqueada por Alarico. Ainda havia um Imperador, mas a velha ordem, o antigo império centrado na sua Cidade Eterna, era já um monte destroços às mãos dos ditos Bárbaros.
Agostinho, como um ventre de todo o Ocidente Latino, faria uma longa digestão dos eventos traumatizantes através da sua Cidade de Deus, a fuga teológica para um tempo em que o Cristianismo manter-se-ia para sempre romano — até hoje — mas olharia para os ditos bárbaros como potenciais cristãos, remetendo, ainda, toda a ideia de eternidade apenas para a dimensão celeste e escatológica, a dita Cidade de Deus, e nunca mais uma Cidade dos Homens. Acabava uma Europa e começava outra, a nossa — tudo o que é mundano é pecaminoso.
Fora doloroso o vislumbre do fim de um império que formulara o mundo com punho férreo. Mas esse poder tremendo antigo nada foi contra as muitas vezes frustes, desorganizadas hordas de gentes que viam nesse vasto e rico território uma oportunidade de futuro depois de atravessar a s longas estepes e os terrenos agrestes do interior do continente euro-asiático.
Contudo, a leitura não é assim tão simples, sob o risco de se tornar simplista. Obviamente, é-nos sempre muito mais cómodo colocar um inimigo externo como responsável da queda do que queremos ser, do que julgamos ter sido, do que gostamos de ver como nosso.
Depois de Gibbon, muito se investigou e escreveu sobre as efectivas causas da queda do Império Romano. Hoje sabemos que muito aconteceu na movimentação das populações, na economia, nos hábitos, na religião e até no clima! O Império teria sempre caído, tivesse Alarico invadido Roma, ou não. Os sintomas de fim de um modelo, de fim de uma hegemonia estavam já patentes há mais de dois séculos. Alarico e os povos bárbaros “apenas” vieram atestar e passar a certidão de um óbito que apenas os nobres de Roma ainda não tinham dado conta, como Gibbon nos diz na frase com que abro esta reflexão.
De resto, o continente europeu é um dos mais enraizados mitos com pés de barro. O que é a Europa? Gostamos de nos afirmar como herdeiros do Mundo Clássico, o perfeito, o modelo, aquele que quisemos imitar e recriar no Renascimento e nos vários neoclassicismos que fomos recriando.
Mas a ideia de modelo é altamente perigosa e goza de um aliado que a confirma como garante de tudo, a História, as narrativas que sobre o passado vamos repetindo, quase sempre prenhes de mitos ou mesmo de erros. Seria Roma um modelo? Os escravos, os direitos das mulheres, o circo, a morte como diversão, ou a forma de encarar o “outro”, a célebre Pax Romana, que era a eficácia de uma paz que resultava, de facto, através da plena aniquilação do inimigo.
Ora, também nós hoje nos gostamos de afirmar no mundo com uma imagem que não condiz com as práticas, redesenhando uma Europa, já não com o Império Romano, mas com uma visão dele muito herdeira, pelo menos na forma egocentrada de ver o mundo.
Há bem pouco tempo, a forma como se deu atenção a algumas poucas vítimas europeias e americanas do Ébola, em contraste com o pouco que se fez pelas vítimas em África, em tudo é imagem do que aconteceu com o tempo de antena dado às notícias sobre um jornalista ocidental decapitado pelo pretenso Estado Islâmico, e o nada feito pelos milhares de mortos locais.
Hoje, mais de 1500 anos depois de Alarico ter entrado em Roma, voltamos a construir muralhas como os romanos faziam no limes, na esperança vã de que elas fossem eficazes na contenção dos povos que cirandavam em busca de um futuro melhor.
Hoje, somos essencialmente filhos e descendentes desses bárbaros que nos invadiram. Somos esse emaranhado de gentes que lutou por um espaço aqui, nesta Europa. Somos todos imigrantes vindos de um além mais ou menos distante, desde que o Homo Sapiens Sapiens saiu de África e colonizou um território que não era seu, que já era habitado pelo Homo Neandertalensis.
É que as populações não são estáticas. Movem-se. E na Europa sempre foi assim. E sempre foi assim de fora para dentro, invadidos, mas também ao contrário, da Europa para fora, buscando novas vidas nas Américas, em África, ou ainda mais longe.
A frase de Gibbon colocada como epígrafe neste texto não termina onde citação encerra. Diz, concluindo, numa sabedoria que nos deveria dar olhos para ver e ouvidos para ouvir: Mas a arrogância deles [dos romanos] não tardou a ceder ao infortúnio […]. Sim, Roma foi conquistada por Alarico nesse ano de 410. Pouco depois cairia o Império.
Mas, tal como a Europa de hoje, mesmo sem Alarico, o Império teria caído devido às feridas que estavam abertas no seu interior. Sim, mas é sempre mais cómodo ter um inimigo externo, nem que seja um grupo desorganizado, indefeso e nada perigoso de “bárbaros” á porta do túnel da mancha.
Director da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona