Começa oficialmente o "jogo arriscado" de Erdogan na Turquia
Agora cumpridas as exigências constitucionais, o Presidente turco convocou novas eleições na Turquia. Aposta nelas o seu presidencialismo, mas pode sair a perder.
O Presidente turco agendou também um encontro para terça-feira com o actual primeiro-ministro turco, a quem deve entregar o mandato para formar um Governo interino. O executivo provisório tem de estar constituído até ao final do mês e o processo pode revelar-se difícil: o partido pró-curdo HDP, o mesmo que "roubou" nas eleições de Junho a maioria absoluta ao AKP de Erdogan, tem direito a três lugares ministeriais.
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O Presidente turco agendou também um encontro para terça-feira com o actual primeiro-ministro turco, a quem deve entregar o mandato para formar um Governo interino. O executivo provisório tem de estar constituído até ao final do mês e o processo pode revelar-se difícil: o partido pró-curdo HDP, o mesmo que "roubou" nas eleições de Junho a maioria absoluta ao AKP de Erdogan, tem direito a três lugares ministeriais.
Há muito em jogo nestas eleições antecipadas. O AKP quer prolongar o seu poder incontestado no Parlamento, interrompido pela primeira vez desde 2002, e o Presidente turco não abre mão do seu projecto presidencialista. O fundador do AKP quer aproximar o sistema político turco a um semelhante ao dos Estados Unidos ou França, o que o transformaria na figura máxima do país. O único obstáculo é a Constituição e, para a alterar, são necessários três quintos dos votos no Parlamento.
Para lá chegarem, AKP e Erdogan procuram capitalizar o ambiente de confusão que se instaurou no país depois das eleições de Junho. Mais do que a economia a meio-gás, o que está fundamentalmente em causa é um cenário de uma guerra civil entre Istambul e separatistas curdos: o exército recomeçou a bombardear posições do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) na sua ofensiva “sem distinção” contra grupos separatistas e ao autoproclamado Estado Islâmico. Uma decisão que acabou com a trégua que vigorava há dois anos e arrisca reacender um conflito que, ao longo de três décadas, matou cerca de 40 mil pessoas. Desde que a ofensiva começou, no final de Julho, já morreram 812 membros do PKK e 56 soldados turcos, nas contas do Governo.
“É um jogo arriscado”, diz à AFP o jornalista e politólogo Serkan Demirtas. “Se o AKP não conseguir uma maioria absoluta pela segunda vez consecutiva, podemos assistir ao declínio do partido.” A aposta é clara: o AKP faz-se passar pelo partido da “mão pesada” contra os separatistas, nas palavras do analista Mustafa Akyol, e, ao mesmo tempo, cola o movimento armado à imagem do HDP.
O clima de guerra, militar e política, é inegável. Nesta segunda-feira morreram mais dois soldados turcos numa emboscada de combatentes do PKK. Outros três ficaram feridos. O líder do HDP, que apelou domingo a que os separatistas curdos parassem os ataques, viu o seu pedido recusado nesta segunda. Além disto, o Governo classificou já mais de 100 localidades como “zonas temporárias de segurança militar”, a maioria delas em áreas de maioria curda. Domingo foram também emitidas ordens de dentenção contra cinco presidentes de Câmara, curdos e próximos do HDP, por “quererem destruir a unidade nacional”, como noticia a France 24.
Mas há também sinais de que a táctica do AKP pode fracassar. Têm-se multiplicado críticas ao Governo e a Erdogan em funerais de soldados turcos, que frequentemente juntam milhares de pessoas. Os principais jornais não alinhados com o Governo abriram nesta segunda-feira com a imagem de um tenente-coronel turco que, durante o funeral de um seu irmão militar, se revoltou contra as figuras do AKP que se tentaram pôr na linha da frente do funeral. Não foi o único a fazê-lo. Os protestos da multidão de cerca de 25 mil pessoas fizeram com que os deputados do AKP abandonassem o funeral dos soldados, na descrição do jornal turco Hürriyet.
“Porque é que aqueles que proclamavam ‘solução’ ontem, dizem agora ‘guerra’?”, gritou Mehmet Alkan, diante as câmaras e agarrado ao caixão do irmão. Referia-se ao “processo de solução”, uma plataforma de negociações entre Governo e PKK com vista a uma trégua definitiva. Um projecto que Erdogan apoiou durante anos, mas que abandonou nos últimos meses. As sondagens, incertas, dão sensivelmente a mesma tendência de voto para o partido de Erdogan e HDP que se registou nas eleições de Junho. Umas mais, outras menos.
Coligação falhada
O cenário de um Governo de coligação parece nunca ter sido considerado com seriedade. Pelo menos por Erdogan. Mesmo à medida que o Governo cessante negociava com os rivais no Parlamento, o Presidente turco continuava discursos públicos em que defendia a via presidencialista. No domingo, foi a vez do ministro cessante da Saúde o dizer: “O caos existe porque a Turquia não é governada num sistema presidencialista”.
Além disso, Erdogan deu menos de uma semana aos centristas do CHP para formarem Governo, na qualidade de segundo partido no Parlamento. Um cenário tão improvável que o próprio Presidente turco anunciou a data das eleições antecipadas mesmo antes da semana acabar – um prazo que Erdogan poderia até ter prolongado. “Estamos perante um golpe de Estado civil”, disse no domingo o líder do CHP, Kemal Kiliçdaroglu.
Os objectivos do AKP e de Erdogan só podem ser atingidos por eleições antecipadas. Para ambos, aliás, é o processo natural a seguir. Mustafa Akyol escreve-o no Hürriyet. “Para Erdogan e sua equipa, os resultados de Junho significam que o eleitorado cometeu um erro grave, que teria de ser corrigido em pouco tempo […] e a única maneira de corrigir esta anomalia é através de ‘eleições renovadas’”. Uma outra tese no AKP, como a que foi usada domingo pelo ministro da Saúde, é a de que os resultados de Junho foram “um alerta” do eleitorado ao partido do poder – Erdogan já se referiu às novas eleições como uma “segunda volta”.