Identificada a forma como os priões passam dos intestinos para o cérebro
Para as encefalopatias espongiformes, como a doença de Creutzfeldt-Jakob, não há ainda cura. Mas o mecanismo que a doença usa para invadir o cérebro foi agora revelado por uma equipa de cientistas, que pretende que estes dados contribuam para o desenvolvimento de uma terapia.
Após a ingestão de alimentos contaminados, os priões acumulam-se nos intestinos, passando depois para o baço e os nódulos linfáticos, onde podem permanecer durante vários anos, o período estimado para a incubação da doença. Investigadores das universidades de Edimburgo e de Manchester, no Reino Unido, apontam agora o intestino delgado como a porta de entrada dos priões até ao sistema nervoso central, local onde irão destruir as células cerebrais e formar vacúolos, que dão ao cérebro o aspecto esponjoso típico das encefalopatias espongiformes.
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Após a ingestão de alimentos contaminados, os priões acumulam-se nos intestinos, passando depois para o baço e os nódulos linfáticos, onde podem permanecer durante vários anos, o período estimado para a incubação da doença. Investigadores das universidades de Edimburgo e de Manchester, no Reino Unido, apontam agora o intestino delgado como a porta de entrada dos priões até ao sistema nervoso central, local onde irão destruir as células cerebrais e formar vacúolos, que dão ao cérebro o aspecto esponjoso típico das encefalopatias espongiformes.
Visto de perto, o que acontece é o seguinte: os priões acumulam-se no intestino delgado, o primeiro local onde se vão concentrar, e replicam-se nas chamadas “placas de Peyer” – a parte principal do tecido linfóide associado ao intestino, tecido que por sua vez é um componente do sistema imunitário presente nas paredes deste órgão. As placas de Peyer foram descritas pela primeira vez pelo anatomista suíço Johann Conrad Peyer, no século XVII.
Mais concretamente, é em determinadas células do sistema imunitário – as células dendríticas foliculares –, que se encontram nas placas de Peyer, que os priões se replicam. Depois disso, é através de outras células também do sistema imunitário – as células M, ou micropregas, também presentes nas placas de Peyer – que passam para o sistema nervoso periférico, de onde seguirão o seu caminho rumo ao cérebro.
Na verdade, os priões servem-se do próprio sistema imunitário do indivíduo para chegar ao cérebro e infectá-lo. As células dendríticas foliculares têm a função de recolher substâncias (antigénios) de agentes agressores, como vírus ou bactérias presentes no organismo, e de as apresentar a outras células imunitárias, para serem destruídas. Já as células M transportam os antigénios através das paredes dos intestinos até outras células imunitárias.
Para provar que os priões se aproveitam do sistema imunitário, os investigadores usaram ratinhos sem células dendríticas foliculares e sem células M no seu intestino delgado criados em laboratório, mas que continham essas células no intestino grosso. A seguir expuseram-nos aos priões. E o que se verificou foi que, nessas condições, os priões não foram capazes de se acumular no intestino, nem de se replicarem e atravessarem as suas paredes até ao sistema nervoso periférico. Portanto, os ratinhos não manifestaram a doença. O intestino delgado é então a porta de entrada principal dos priões para a neuro-invasão.
E por que razão os priões usam o intestino delgado para invadir o cérebro e não o intestino grosso? A explicação encontrada pelos cientistas baseia-se na grande abundância de células M no intestino delgado e na sua fraca concentração no intestino grosso, facto que o torna menos eficiente para o transporte dos antigénios através do seu epitélio, que se encontra ainda coberto por uma camada de muco isolante. Nos ratinhos mais velhos, a susceptibilidade à doença mostrou-se também menor, devido ao número reduzido de células M nas placas de Peyer do intestino delgado.
A equipa de Neil Mabbott, da Universidade de Edimburgo, que coordenou este estudo, concluiu ainda que a invasão do sistema nervoso periférico acontece antes de os priões serem detectados no intestino grosso, o que sugere que este órgão não seja um sítio importante para a neuro-invasão.
Os novos resultados sobre os priões e o intestino delgado indicam que se deverá mudar as formas de diagnóstico em estados pré-clínicos da doença. “Nos últimos anos em Inglaterra, amostras de apêndices recolhidas em cirurgias de rotina têm sido usadas para, retrospectivamente, estimar a prevalência da doença provocada pelos priões, a variante da doença de Creutzfeldt-Jakob na população britânica”, diz ao PÚBLICO Neil Mabbott. “No entanto, os resultados do nosso estudo mostraram que enquanto os priões se concentram nas placas de Peyer do intestino delgado logo após a contaminação, o tecido linfóide do intestino grosso não mostrou sinais da presença de priões até bastante tempo depois.”
As conclusões do estudo vieram assim alertar para possíveis erros nas estimativas da prevalência da variante da doença de Creutzfeldt-Jakob – provocada pela ingestão de alimentos contaminados com priões –, devido a um diagnóstico prévio não muito rigoroso. “Os nossos dados sugerem que os testes de diagnóstico em humanos e animais que usam amostras de apêndice obtidas em biópsias podem estar a deixar escapar indivíduos que estão ainda numa fase inicial da infecção, subestimando-se significativamente a prevalência da doença”, sublinha ainda Neil Mabbott.
Como fazer uma biópsia às placas de Peyer do intestino delgado é um procedimento demasiado invasivo, um simples teste de sangue será o método ideal, ainda a desenvolver, para detectar a doença na sua fase inicial, segundo a equipa de investigadores.
Para a doença de Creutzfeldt-Jakob, descrita em 1920 pelos neurologistas alemães Hans Gerhard Creutzfeldt e Alfons Maria Jakob, não existe ainda qualquer terapêutica. Há três versões diferentes da infecção: a esporádica, que aparece entre os 40 e os 70 anos e não tem uma causa atribuída; a familiar, que surge por predisposição genética; e a variante, que está relacionada com a ingestão de tecidos contaminados por priões, nomeadamente produtos de vaca, e que geralmente surge em pessoas jovens. Todas estas versões levam à demência progressiva e consequente morte da pessoa infectada.
A ligação dos priões às encefalopatias espongiformes, como a doença de Creutzfeldt-Jakob, foi proposta em 1982 por Stanley Prusiner, da Universidade da Califórnia em São Francisco, nos Estados Unidos, quando associou estas doenças a uma causa infecciosa que não era nem bactérias nem vírus. Eram, antes, partículas infecciosas compostas por proteínas capazes de se replicarem, mesmo sem terem material genético, a que chamou priões, de proteinaceous infectious particles.
Stanley Prusiner mostrou que os priões de uma determinada proteína no cérebro (a PrP) eram capazes de converter a sua congénere normal e originar infecções – as encefalopatias espongiformes. Durante muitos anos, o cientista viu a sua proposta recusada pela comunidade científica, mas em 1997 a descoberta valeu-lhe o Prémio Nobel da Medicina.
História de uma doença
Em 1996, o primeiro caso mundial no Reino Unido veio estabelecer a relação entre a variante da Creutzfeldt-Jakob e a ingestão de produtos bovinos com priões. Este país foi o que teve mais casos de vacas com encefalopatia espongiforme (BSE, na sigla em inglês), atingindo os 37.280 casos em 1992. A contaminação das vacas deveu-se principalmente ao uso de farinhas contaminadas com priões, fabricadas com carcaças de outros animais que, por estarem doentes, não eram consumidos por humanos. Desde que surgiu o primeiro caso da variante da Creutzfeldt-Jakob no Reino Unido, registaram-se até agora 177 mortes de pessoas infectadas, sendo os casos mais raros nos últimos anos.
Em Portugal, os primeiros casos de vacas loucas foram identificados em 1990, por Alexandre Galo, então investigador do Laboratório Nacional de Investigação Veterinária (agora Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária). Durante três anos, lutou para que o governo português admitisse a existência de vacas loucas, mas os relatórios que enviava para o Ministério da Agricultura, dirigido pelo social-democrata Arlindo Cunha, não saíam da gaveta. A situação real da BSE chegou ao público em 1993, pelo deputado socialista António Campos. O pico de casos atingiu-se no final dos anos 90 e inícios de 2000, com 159 vacas com BSE em 1999.
Actualmente, Portugal é considerado pela Organização Mundial para a Saúde Animal um país de risco negligenciável de BSE. Em 2013, não se registou nenhum caso e em 2014 só houve um. “O último caso positivo foi confirmado em Novembro de 2014, num bovino macho de trabalho, de raça minhota, com 16 anos de idade”, informa o gabinete de imprensa do Ministério da Agricultura e do Mar.
Segundo dados da Direcção-Geral da Saúde, entre 2010 e 2013 houve 26 casos confirmados de Creutzfeldt-Jakob, incluindo-se nestes números, no entanto, as três variantes da doença. O doente mais jovem estava na faixa etária dos 15 aos 24 anos, o que se enquadra num diagnóstico da variante da Creutzfeldt-Jakob.
Mais de uma década depois dos primeiros casos de transmissão dos priões para as pessoas, como é que Portugal está a fazer o controlo da doença nas vacas? “Desde 1994 que a utilização de proteínas de origem animal em alimentação de ruminantes foi legalmente interdita em Portugal, pese embora a União Europeia só tenha aprovado essa interdição a nível comunitário a partir de 2001”, responde ao PÚBLICO o gabinete de imprensa do Ministério da Agricultura e do Mar. Desde 1996 programas de vigilância, controlo e erradicação da BSE, aprovados pela Comissão Europeia, têm também sido aplicados. Por exemplo, faz-se a “separação nos matadouros dos materiais de risco específico e sua subsequente destruição, bem como medidas que visam assegurar o cumprimento da proibição da incorporação de proteínas animais nas rações usadas na alimentação das espécies pecuárias”, acrescenta-se.
Ainda que não haja tratamentos específicos para a doença de Creutzfeldt-Jakob, o objectivo da equipa de Neil Mabbott é contribuir para se encontrar uma forma de travar ou evitar a doença. “Tem havido várias tentativas para se desenvolver uma vacina. Esperamos que a nossa investigação traga avanços na compreensão dos factores que aumentam o risco de transmissão da doença, melhore o diagnóstico pré-clínico e ajude a identificar novos alvos para uma intervenção profiláctica e terapêutica.”
Texto editado por Teresa Firmino