Quando todos os caminhos foram dar a Charles Bradley
No penúltimo dia do Vodafone Paredes de Coura tivemos direito a um concerto imenso de um soul man desarmante. Perante ele, tudo o resto empalideceu.
Da dança festiva ao arrepio, do sorriso à comoção. Bradley abre os braços em agradecimento sincero à plateia cheia que o recebeu. Já a sua banda abandonou o palco, já as luzes de palco se desligaram, já este começa a ser preparado para os The War On Drugs e Bradley, 66 anos de vida, meia dúzia deles cumpridos desde que lhe descobriram uma carreira, continua, comovido, junto do público que tanto o aplaudiu e tanto dançou com ele. Todos o querem abraçar. Como não querer?
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Da dança festiva ao arrepio, do sorriso à comoção. Bradley abre os braços em agradecimento sincero à plateia cheia que o recebeu. Já a sua banda abandonou o palco, já as luzes de palco se desligaram, já este começa a ser preparado para os The War On Drugs e Bradley, 66 anos de vida, meia dúzia deles cumpridos desde que lhe descobriram uma carreira, continua, comovido, junto do público que tanto o aplaudiu e tanto dançou com ele. Todos o querem abraçar. Como não querer?
Quando o gospel desceu à terra das planuras celestiais para cantar a vida de todos os dias, com as suas glórias e as suas misérias, tal como o blues a cantava há meio século, nasceu essa dádiva à humanidade chamada soul. Charles Bradley “é” a soul. O concerto que nos ofereceu no esgotado Paredes de Coura, ainda que a vastidão de público que a vista alcançava não fosse tão vasta quanto quinta-feira, dia da passagem dos Tame Impala pelo festival, foi uma lição de história, de saber e de intuição musical.
Tão impoluta quanto os fatos vestidos pelos elegantíssimos Extraordinaires, super banda onde encontramos elementos dos Dap Kings, da Budos Band ou da Menahan Street Band. Tão vibrante quanto o instrumental com metais em rebuliço, órgão a fervilhar e baixo a swingar à volta do groove da guitarra que irrompeu a meio do concerto para que Bradley pudesse trocar o fato com que surgira inicialmente em palco, por um outro, de reflexos dourados, que trouxe para a segunda metade.
O baterista feito mestre-de-cerimónias pedirá calor ao público para chamar Bradley de volta. E Bradley regressa. Passos à James Brown, o seu herói, o homem que homenageava em concertos discretos em bares nova-iorquinos nos anos 1990, grito enrouquecido quando as palavras servem pouco para exprimir o que nos quer dizer, e a banda que sabe tudo, mas mesmo tudo, sobre os arranjos da Motown, sobre a classe inabalável da Stax, sobre o que é necessário para que a soul seja soul verdadeiramente.
É sábado de manhã e o céu está cinzento, a ameaçar a chuva que cairá forte sobre todos horas depois – e nós que nos julgávamos protegidos, tendo em conta o calor dos dias anteriores. Algum povo campista decide não correr riscos e lá o vemos carregando tendas e mochilas estrada acima. Os Ratatat preparam o som da viagem intergaláctica que encerrará o festival e o anfiteatro natural ainda despido de gente mostra os efeitos da passagem de dezenas de milhares de pés sobre a relva, o que resultou na inédita aparição de nuvens de pó em Paredes de Coura. Preparamo-nos para os Temples, os Fuzz, Lykke Li, os Woods ou a Natalie Prass que comporão o cartaz da despedida, mas ainda estamos sob o efeito da noite de sexta-feira.
Assombrar um deserto imaginário
Na ressaca de um dia preenchidíssimo, o da celebração dos Tame Impala, o do concerto infernal de Legendary Tigerman e da aparição do impagável Father John Misty, vimos os X-Wife abrirem o palco principal para mostrar que a sua música continua bem viva, vimos os Allah Las mostrarem-se como a banda certa para animar bailes frequentados por fãs do psicadelismo da década de 1960 (o rigor na recriação sonora e estética, dos Byrds aos Velvet, impressiona tanto quanto os limita), vimos Mark Lanegan assombrar um deserto imaginário com a sua voz (bem) envelhecida em whiskey e tabaco, e, mão sobre o microfone, corpo imóvel, estragar tudo quando trocou os mistérios nocturnos da Americana pelos sons de um pós-punk britânico (versão de Atmosphere, dos Joy Division, incluída) que quebrou instantaneamente o feitiço.
Vimo-los como se vira durante a tarde que os Ornatos Violeta são um fenómeno que se renova ano após ano – Peixe, o antigo guitarrista da banda, ofereceu Chaga ao público que a queria ouvir na tarde descontraída no Jazz na relva; Pedro Mexia e Carlos Vaz Marques, duas das Vozes na Escrita que se ouviram por estes dias ao início de tarde no relvado junto ao rio Coura, testemunharam o apreço geral pela banda ao verem a sua leitura de uma letra de Manel Cruz ser a mais aplaudida entre todas as lidas ao público.
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Performer irresistível
Viu-se tudo isso antes de Charles Bradley e viu-se depois deles os The War on Drugs investirem noite fora por aquela música, a de Slave Ambient e de Lost in The Dream, que ambiciona ser sonho escapista de um Bruce Springsteen, o dos anos 1980, em road-trip pela América das auto-estradas sem fim.
A banda de Adam Granduciel era a cabeça-de-cartaz e tudo parecia correcto no seu concerto: ao vivo, perdem-se as camadas de som que, em disco, nos envolvem totalmente, sem hipótese de fuga (e não queremos fugir daquele som), e ganha-se um tom épico de concerto à antiga, com a guitarra a atravessar em solos prolongados canções como Baby missiles, In reverse, Your love is calling my name, Red eyes ou Under the pressure, com solos de sax a lembrar-nos a E Street Band (e, muito a propósito, o lenço na cabeça do baixista a remeter-nos para Steve Van Zandt), com esta capacidade alquímica de Granduciel e restante banda, fenómeno de popularidade cimentada com o último, e óptimo, Lost in the Dream, em transformar sinais exteriores da pompa azeiteira do rock de estádio dos anos 1980 em música expansiva, sonhadora, libertadora.
Lembramo-nos disto porque, coisas da profissão, temos um bloco de notas preenchido com apontamentos sobre o concerto que encerrou, na sexta-feira, o palco principal. Só por isso. Porque, na verdade, tanto nós, como, de resto, os The War On Drugs, temos a consciência de que seria difícil que aquele concerto deixasse uma marca duradoura na memória. Sim, sabiam-no certamente. Sabiam o que tinha acontecido antes de entrarem em palco.
Há as canções, canções alerta como The world (is going up in flames), do álbum de estreia No time for dreaming, canções com a leveza de Marvin aye em dueto com Tammi Terrell (You put the flame on it, do segundo álbum, Victim of Love), baladas de uma ternura inescapável (Lovin’ you, baby) e funk activista para emparelhar com a War de Edwin Star: a convulsiva Confusion, envolta em eco para que se exprima melhor o que nela se canta – “We gotta change the world and make it right”, exorta Bradley, que sabe muita coisa sobre os males do mundo. Há as canções, dizíamos, e há tudo o resto.
No documentário Soul Of America, que o segue nas semanas antecedentes ao concerto de apresentação do seu álbum de estreia, acompanhando-o no bairro degradado que habitava, mostrando-o a cuidar da mãe inválida, a coser apliques no fato que usaria em palco ou a recordar as imensas dificuldades que atravessou até conseguir o que ambicionava desde os 14 anos, viver da sua imensa voz e do seu talento, há um momento em que, depois de receber um telefonema desagradável que o põe a fazer mais contas à vida, ao dinheiro que não estica para que consiga pagar a renda e o apoio necessário para a mãe, Bradley quebra. Caem-lhe lágrimas pelo rosto enquanto suspira: “Por vezes penso: ‘Deus, chama-me!’ Todos os dias luto e luto para manter a honestidade e dignidade enquanto ser humano neste planeta. Não me vão mudar. Amo Deus. Amo toda a gente”.
Quatro anos depois, Charles Bradley chegou ao Vodafone Paredes de Coura para dizer que não mudou e que é mesmo verdade que ama toda a gente. Curvou-se perante o tanto público que conquistou com a sua voz, com a sua música, com a sua humanidade, e agradeceu. Nós, que o vimos ser performer irresistível, que o vimos, bem-humorado, arrojar-se no chão e nele cantar num momento intimista entre dezenas de milhar, nós que tivemos o privilégio de ter connosco um músico desta dimensão, é que agradecemos tudo o que nos deu. Houve muita música no penúltimo dia de Paredes de Coura, mas toda ela empalidece perante o senhor de 66 anos que subiu a palco às 23h15. O seu nome, Charles Bradley.