Uma sombra colorida e melancólica sobre o papel
Seis ilustradores portugueses fizeram cartazes para os seis filmes de Jaques Tati. Um reencontro que desperta associações, histórias partilhadas e uma conversa, que permanece viva, entre a ilustração infantil e juvenil e o imaginário do cineasta.
São posters originais que “ilustram” os filmes do cineasta francês, com as cores e os estilos de seis autores portugueses: Catarina Sobral, Madalena Matoso, João Fazenda, André Letria, Marta Monteiro e Sara-a-Dias. A iniciativa partiu da distribuidora Leopardo Filmes que endereçou os convites, mas é mais do que uma boa ideia. Recupera o diálogo entre o imaginário de Tati e as artes gráficas, entre a bidimensionalidade característica do seu cinema e a linguagem da certa ilustração. E anima os ecos coloridos, ternos e lúdicos que o seu cinema deixou no universo das artes visuais.
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São posters originais que “ilustram” os filmes do cineasta francês, com as cores e os estilos de seis autores portugueses: Catarina Sobral, Madalena Matoso, João Fazenda, André Letria, Marta Monteiro e Sara-a-Dias. A iniciativa partiu da distribuidora Leopardo Filmes que endereçou os convites, mas é mais do que uma boa ideia. Recupera o diálogo entre o imaginário de Tati e as artes gráficas, entre a bidimensionalidade característica do seu cinema e a linguagem da certa ilustração. E anima os ecos coloridos, ternos e lúdicos que o seu cinema deixou no universo das artes visuais.
Catarina Sobral (Coimbra, 1985), ilustradora premiada e autora do cartaz de O Meu Tio (1958), admite a influência do filme na sua obra. “Marcou-me muito. Inspirei-me nesse filme para O Meu Avô [livro de ilustração editado pela Orfeu Negro]. O avô é parecido com o Sr. Hulot e há um contraponto entre ele e o seu vizinho que está sempre ocupado. O vizinho, que se chama Dr. Sebastião, personifica um pouco a vida moderna, a Casa Arpel, a Paris do Playtime. Essa ironia sobre vida moderna está no livro, existe como conceito”.
Fundadora da editora Planeta Tangerina, Madalena Matoso (Lisboa, 1974) fala de uma referência que se tornou mais presente depois do reencontro com alguns filmes, nos anos 90, nas salas dos Cinemas King. “Existem afinidades em termos gráficos, mas também nos olhares sobre a realidade”, reflecte a ilustradora. “Por exemplo, em alguma ilustração surgem personagens que parecem viver fora do mundo, que são estranhos a hábitos que os adultos já vêem como óbvios, já interiorizaram. Creio que isso atravessa O Meu Tio e Playtime [1967]. São filmes que nos dão espelhos onde nos podemos rever e confrontar com absurdo da vida quotidiana”.
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Dos livros de Madalena Matoso, que ilustrou Parade (1974), aquele que mais abraça o humor, a geometria e as cores da obra do realizador francês, tem o nome de Andar Por Aí (2009), e nele participam um avô, um neto e as suas deambulações divertidas e deslumbradas pela cidade. Também na obra de Marta Monteiro (Penafiel, 1973) se destaca como um livro tocado por Tati, Sombras (2013). “Apesar de gostar dos filmes dele”, nota a artista, “é o humor negro e surreal que mais me atrai. Gosto muito do carácter subversivo, da crítica social dos filmes de Chaplin e da loucura sem regras dos irmãos Marx. Mas, curiosamente, nesse livro penso mais no Tati. Não tem palavras, é quase mudo como os seus filmes. E tem um protagonista que sustenta a narrativa. Está na origem das situações cómicas mas actua como um observador, tem um papel passivo”.
Uma tradição gráfica
Uma conclusão parece legítima: a sombra benigna de Tati projecta-se sobre os trabalhos destas ilustradoras, estendendo-se, igualmente, na condição de influência indirecta, inconsciente, aos desenhos de André Letria e de João Fazenda. De onde vem? Como explicá-la? Para a contextualizar, Pedro Moura, crítico de BD e ilustração, evoca histórias partilhadas pelas artes gráficas e o cinema. “Os filmes do Tati tiveram originalmente cartazes lindíssimos, pelo Pierre Étaix ou outros autores. Eram magistrais e representavam novas linguagens gráficas, embora integradas numa tradição de estilização que encontra as suas raízes nos anos 1920, no Construtivismo russo. Em muitos aspectos, essa família gráfica é a mais perseguida por muitos dos ilustradores portugueses contemporâneos de maior sucesso crítico, entre os quais aqueles que participam nestes novos posters”.
A maioria dos ilustradores mostrou-se sensível à existência dos posters originais e desenhou a figura esguia de Sr. Hulot, sem dispensar o cachimbo e a gabardine. “Quis manter a relação com o primeiro cartaz e por isso recortei a silhueta, dando aqueles sombreados”, esclarece Catarina Sobral. “Com o uso do vermelho e do azul pude evocar as artes gráficas dos anos 50 e 60. Nesse período, por razões económicas, usavam-se uma ou duas cores para fazer os cartazes. Quis recuperar essa estética”.
João Fazenda também não resistiu à dimensão icónica de Sr. Hulot. “Pensei logo em usar a sua figura e a ideia de usar os chapéus com os carros pendurados foi imediata. A primeira cena de que me lembrei foi a do carrossel de carros na rotunda, no fim de Playtime ”. Como os seus pares, André Letria, autor do cartaz de Trafic (1971) consultou as imagens preexistente, mas ao fazê-lo “moveu-se” para outros lugares. “Ainda cheguei a pensei em desenhar a personagem, diz, “mas não só uma das versões do cartaz original não conta com ela, como não me pareceu necessário para a ideia que quis transmitir. Um cartaz de cinema deve ser contido naquilo que revela da história”. E com efeito, à primeira vista, Hulot e os seus companheiros viajam anónimos até ao salão de automóveis de Amesterdão. Para os encontrar é preciso olhar com atenção para os desenhos. “Pareceu-me interessante esta ideia genérica de caos, que pode tornar-se também uma experiência lúdica, se quisermos identificar as formas dos carros do filme naqueles que desenhei ou até contá-los.” A mancha de carros cita a ironia dos planos de Traffic em que o espectador, mesmo já não sabendo distinguir a ficção do documental, se reconhece como membro das sociedades modernas. “Os carros vão-se amontoado do lado direito da imagem, à medida que o lado esquerdo vai sendo ocupado por outros veículos que se vão juntando à amálgama de condutores infelizes. Onde estão os protagonistas? No meio da confusão, um pouco mais à frente? Não terão entrado ainda na imagem? Fica muito por descobrir num primeiro olhar e é isto que me parece interessante”.
No circo, somo todos palhaços
Descobrir num segundo olhar é um gesto que tanto a ilustração destes autores como o cinema de Tati pedem aos leitores e espectadores. Quem se esqueceu do modo como o cineasta redesenha o quotidiano em Playtime? Da betoneira de um camião que é transformada, por instantes, na cobertura colorida de um circo? De uma escultura vertical que na rotunda "decora" o carro dos gelados que passa? Do néon que pousa como um halo sobre a cabeça do padre? Dos olhos vigilante da Casa Arpel, deixando a animação entrar no cinema?
“Há algo que o Tati partilha com a ilustração, que é essa representação dos desencontros, das interferências, dos gags e piadas visuais. Ele tem uma relação muito forte com a imagem desenhada. Os seus filmes muito gráficos”, observa João Fazenda. “Em cada plano passa-se tanta coisa. Lembro-me do avião que derrete no bar de ‘Playtime’. É algo muito visual, que não dá para contar, ou se contado não tem piada, perde força, como as imagens ou situações que se encontram nos melhores livros de ilustração”.
O humor, a ironia desajeitada de Tati têm em muito do seu cinema um conjunto identificado de alvos: a vida urbana, a tecnologia, os gadgets, o consumo, o modernismo, mas o cineasta não partilha a distanciamento solene em que Jean-Luc Godard envolve uma das frases de Masculino-Feminino (1966): “Há cada vez mais interferências da imagem e da linguagem. E podemos dizer, afinal, que viver em sociedade, hoje é quase viver numa enorme banda desenhada". Ou partilha? Já lá vamos. Aproveite-se a menção à BD para um desvio: será desproporcionada a intuição de que existem paralelismos, quem sabe até, um encontro por conhecer, entre a banda desenhada franco-belga e Tati? “Essa associação não é mal-pensada, é até precisa. A era do Franquin nas histórias Spirou dá entrada ao ‘estilo Atome’, que dava uma grande atenção ao design dos objectos, às linhas dinâmicas dos transportes, à tecnologia. Esse é o epítome da época. ‘O Meu Tio’ é o filme que introduz na filmografia do Tati essas temáticas, até pela própria introdução da cor. Qual a ordem de influência parece-me difícil de destrinçar, e quero acreditar que se trataria de um diálogo em ambas as direcções”.
Mas como descrever a atitude de Tati face um mundo que se americanizava à velocidade dos simulacros e da reprodução técnica das imagens? “Creio que ela fazia uma crítica melancólica”, responde João Fazenda. “Por vezes, parece fascinado, mas mantém sempre uma reserva irónica. Ao mesmo tempo, adapta-se às coisas, reinterpreta-as à sua maneira, dá-lhes a volta. Tenta ser lúdico na forma como aborda o mundo e vive na cidade”.
Dos seis cartazes, há um que parece negar ou pelo menos rejeitar esta interpretação. É o que Madalena Matoso realizou para Parade (1974), o último filme de Tati. A figura do realizador surge evocada num palhaço mudo, com traços cubistas. “Não quis fugir totalmente da sua figura, não quis que ela fosse irreconhecível. Tem um ar de artista de circo, o que remete para o filme, mas não é uma caricatura e tem até uma certa tristeza. Ri-me muito com Parade, mas encontro nele muita desilusão. Vemos uma sucessão de números de circo, mas verdade são todos números cómicos. Naquele circo todos parecem palhaços”.