O ilusionista que trabalhava sem as mãos
Tudo o que Tati deixou, incluindo as curtas que realizou e/ou interpretou, nos seus primórdios ou mais tarde de permeio entre longas, e projectos abandonados e depois concluídos por outro. Um Verão sorridente, a partir de 20 de Agosto.
Estávamos em 1958, a electrónica ainda não era uma presença avassaladora nas vidas quotidianas, mas começava a entrar nelas. Tati viu, tão cedo quanto essa data, o mundo que se desenhava, e filmou-o pondo-o logo do avesso – ou será do direito: os seres humanos reféns, prisioneiros mesmo, da grande “garagem electrónica”, submetidos à sua ordem, dependentes do sopro “selvagem”, aleatório, anárquico, dos animais, sempre as criaturas mais livres do cinema de Tati. Ou as crianças. Ou o Senhor Hulot.
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Estávamos em 1958, a electrónica ainda não era uma presença avassaladora nas vidas quotidianas, mas começava a entrar nelas. Tati viu, tão cedo quanto essa data, o mundo que se desenhava, e filmou-o pondo-o logo do avesso – ou será do direito: os seres humanos reféns, prisioneiros mesmo, da grande “garagem electrónica”, submetidos à sua ordem, dependentes do sopro “selvagem”, aleatório, anárquico, dos animais, sempre as criaturas mais livres do cinema de Tati. Ou as crianças. Ou o Senhor Hulot.
Um Verão com Tati é a designação genérica da operação, organizada pela Leopardo Filmes, que traz de novo as salas a obra integral de Jacques Tati, incluindo as curtas que realizou e/ou interpretou, nos seus primórdios ou mais tarde de permeio entre longas, em cópias anunciadas como correspondentes a “versões digitais restauradas” – a partir de 20 de Agosto no Nimas em Lisboa, e a partir de 1 de Setembro noTeatro do Campo Alegre no Porto.
Testemunhas
Jacques Tati, nascido Jacques Tatischeff em Paris em 1907, neto de um general da Rússia imperial, foi o maior cómico do cinema europeu do pós-II Guerra, e porventura o único europeu que nesse período estabeleceu um vínculo com a grande tradição do burlesco cinematográfico mudo e os seus grandes expoentes americanos, Chaplin ou Buster Keaton. É fácil, pela relação com a tecnologia e com os objectos, estabelecer uma continuidade com Keaton; mas é a Chaplin a vénia mais explicitamente contida nalgum filme de Tati, através do combate de boxe “bailado” (como o de Luzes da Cidade) que o realizador filmou na curta-metragem de 1936, Cuida do teu Gancho Esquerdo, a que acrescem alguns gestos (com o chapéu, por exemplo), obviamente “importados” de Chaplin. Podemos ver o Senhor Hulot como o Charlot de Tati, figura reconhecível a passar de filme a filme, como intervenientes mas também – e no caso de Hulot, sobretudo – como testemunhas, de uma época e de um mundo. Possivelmente é a melhor palavra para caracterizar o cinema de Tati e o papel de Hulot nele: são testemunhas.
Testemunhas de quê? De um mundo a mudar, lentamente, inexoravelmente, de um modo de vida a deslocar gradualmente o seu centro de gravidade. Há Festa na Aldeia, a sua primeira longa-metragem, estreada em 1949 no período que ainda era o do imediato pós-II Guerra, é um filme que se alimenta por completo do pitoresco rural, da tipologia da pequena aldeia e dos seus habitantes, trabalhando clichés com a gentileza suficiente para não os destruir, mesmo se todo o filme exala a consciência da sua condição de clichés, ou idealizações.
A seguir, nas Férias do Senhor Hulot (1953), estamos ainda no campo (ou na praia, no à beira-mar) mas a cidade irrompe: são as hordas de veraneantes citadinos que vêm ocupar a terreola, o início da “idade do turismo” que forçosamente implica a conversão da terreola em “estância balnear”, e que sociologicamente exprime ainda, porventura, o primeiro momento em que os franceses puderam realmente começar a gozar de uma das mais célebres instituições criadas pelo governo da Frente Popular nos anos 30, as “férias pagas”.
Depois, n’O Meu Tio, entra-se de facto na cidade, uma cidade em transformação, ainda em parte aldeia e “bairro popular” e em parte urbanidade estrita e “bairro moderno”, antes de, em Playtime (1968), a urbanidade se tornar o nec plus ultra, o espaço total e totalizante, a remeter para esquinas (inclusivamente para as “esquinas” dos planos) os resquícios da ruralidade - a sessão de dia 26, às 21h30, será apresentada pelo arquitecto Manuel Graça Dias, às 21h30.
Finalmente, e porque Parade (de 1974, o último filme de Tati), é outra coisa, a que já voltaremos, Trafic, de 1971, é um filme sobre a mobilidade, sobre o modo como a cidade e o mundo moderno (por exemplo através das auto-estradas e das omnipresentes televisões a transmitirem a chegada do homem à lua) se espalham e se disseminam, tomando conta de tudo - é o filme de abertura da retrospectiva, a 20 de Agosto, apresentado por Jorge Silva Melo,
Este olhar sobre o avanço do mundo moderno sempre gerou alguma desconfiança, não faltou nem falta quem diga que a perspectiva de Tati era “reaccionária”. É um dos assuntos que abordamos em conversa com François Ede, actualmente um dos maiores conhecedores de Tati e do seu espólio. Ede trabalhou, entre outros, com Sophie Tatischeff (filha de Jacques), na versão colorida de Há Festa na Aldeia, estreada nos anos 90 (assim tentando recompor o projecto inicial de Tati, na altura não concretizado, embora tenham circulado cópias pintadas à mão, como os pouchoirs do princípio do século), e depois esteve envolvido igualmente no trabalho de restauro de Playtime, tentando reconstituir a visão original de Tati, que cortou, ele próprio, cerca de vinte minutos à versão que durante décadas mais circulou. Para além disso, Ede realizou um episódio para uma das mais célebres séries televisivas francesas votadas ao cinema (a Cinéma Cinémas dirigida por Claude Ventura), relatando aí o processo de restauro de Playtime, e deixou em livro a saga da “cor reencontrada” (La Couleur Retrouvée, é o título) de Há Festa na Aldeia.
Não há maniqueísmo
Para Ede a questão do “reaccionarismo” de Tati é um exagero. Concorda evidentemente com a ideia de que o movimento da obra de Tati é feito em direcção à cidade, mas “o que ele mostra, numa perspectiva mais melancólica e poética do que política, é o desaparecimento do campo, a transformação de um modo de vida”. Não há maniqueísmo em Tati, não há o elogio de um mundo “bom” contra um mundo “mau”, assim como não há “maldade” no seu cinema (uma das coisas, aliás, que o mais “tatiano” dos cineastas em actividade, o georgiano Otar Iosseliani, partilha com ele): tudo e todos são dignos do mesmo afecto, tudo e todos estão sujeitos ao mesmo embaraço. Ede acrescenta que, por certo, Tati “não era especialmente progressista”, mas era “alguém muito interessado pelos temas da sociologia e da antropologia, e aliás era muito amigo de Edgar Morin, com conversava muito partilhava afinidades no modo de ver a sociedade”.
Não se pode descurar, de resto, o fascínio que mundo moderno e tecnológico exercia sobre Tati. Nos anos 20, Fritz Lang começou a sonhar com Metropolis quando, na sua primeira visita à América, ficou hipnotizado, estava o navio em que seguia a chegar a Nova Iorque, pela silhueta nocturna de Manhattan. Com Tati passou-se algo semelhante. O Meu Tio, conta Ede, foi o primeiro grande sucesso de Tati no mercado norte-americano. Sucesso suficiente para que o distribuidor lhe tenha pago uma viagem para ir a Nova Iorque e outras cidades apresentar algumas sessões com o filme. Essa descoberta das grandes cidades americanas esteve na raiz do que viria a ser Playtime: no arquivo de Tati, a que Ede teve acesso e que trabalhou, o dossier da preparação de Playtime tem “incontáveis” fotografias tiradas em Manhattan.
Mas passaram dez anos entre O Meu Tio e Playtime, o maior interregno entre dois filmes na obra de uma cineasta que nunca foi especialmente rápido a estrear cada novo projecto. “Ele era, de facto, muito lento a maturar os projectos, coisas que se explica por várias razões”, diz Ede. Por um lado “era um perfeccionista, que não se contentava com menos do que uma precisão diabólica, se vir o argumento de Playtime tal como ele o deixou é uma coisa impressionante, o filme já lá está todo visto, todo previsto”. Acresce que o seu método de trabalho na preparação dos filmes era bastante peculiar: “Não escrevia uma linha, não desenhava um rabisco”. No seu arquivo “praticamente não há uma nota escrita pela mão dele, nem uma imagem que tenha rabiscado”. Reunia-se de uma equipa de colaboradores, com quem falava e discutia abundantemente, uma espécie de pequena orquestra que conduzia em direcção ao que queria. E acresce ainda que, neste caso particular de Playtime, o que Tati tinha previsto filmar a seguir era O Ilusionista, projecto que veio a ser recuperado e realizado, em animação muitos anos depois, por Sylvain Chomet (a talhe de foice, Ede diz-nos que não achou que o filme de Chomet tenha resultado bem, e não podemos deixar de concordar com ele). E desistiu de O Ilusionista por duas razões, primeiro porque a visão de Playtime não parava de crescer dentro dele, e depois porque O Ilusionista, tratando de um prestidigitador, implicava grande precisão no trabalho com as mãos e Tati, diz Ede, “não se sentia nada confortável a trabalhar com as mãos, achava-se péssimo” (provavelmente, pensamos nós, a mesma razão que o impedia de escrever ou desenhar).
Playtime é também o momento em que o Sr Hulot praticamente desaparece, nem que seja pela multiplicação de Hulots, e se torna definitivamente uma “testemunha” de uma dinâmica que lhe escapa. “É mesmo o momento da grande ruptura no seu cinema”, diz Ede, “Tati já não tinha grande gosto por representar, queria concentrar-se na tarefa de realizador, e a sua ideia para esse filme era fazer tábua rasa do passado, libertar-se de Hulot”. Que no entanto voltaria, em Trafic e, numa tábua rasa de outro tipo, em Parade – dois filmes feitos com ajuda do estrangeiro, o primeiro na Holanda com Bert Haanstra, o segundo por encomenda da televisão sueca. Tati tinha ficado endividado, não porque Playtime tenha sido um fracasso absoluto (mais de um milhão de entradas), mas porque não recuperou o colossal investimento que nele Tati empatara. Tati não pensou em Parade – concebido como longo número de variedades, uma espécie de “desnudamento” em que Tati regressa aos fundamentos do seu cómico, a cultura do music hall em que se formou (como Chaplin, aliás) – como o seu último filme, depois dele ainda trabalhou num projecto chamado Confusion onde entrava no mundo da comunicação e das “redes”, um projecto “bastante espantoso”, assegura Ede. Mas, ficando como último filme, a sua redução ao essencial, depois da extraordinária complexidade a que o seu cinema tinha chegado, configura uma espécie de fecho de círculo que, poeticamente, é um final justíssimo para a sua obra. “Mas mesmo assim não deixou de experimentar”, atira ainda Ede: “’Parade foi rodado numa mistura incrível de formatos, 35mm, 16mm e vídeo tudo ao mesmo tempo, nunca ninguém tinha feito nada assim.”
É esta obra, ainda hoje palpitante, e cada vez mais, que este Verão regressa às salas, numa operação que integra tudo o que Tati deixou, incluindo as curtas que realizou e/ou interpretou, nos seus primórdios ou mais tarde de permeio entre longas, e projectos abandonados e depois concluídos por outros, como o de “Forza Bastia!”, sobre a saga do homónimo clube corso na Taça UEFA de 1977-78, que veio a ser terminado pela sua filha Sophie. Um Verão sorridente.