Lisboa, turistas e fado
Tempos houve nos quais ir a um restaurante de fados em Alfama era privilégio apenas ao alcance de meia dúzia de eleitos
Tempos houve nos quais ir a um restaurante de fados em Alfama era privilégio apenas ao alcance de meia dúzia de eleitos. Ainda o é, mas desta feita não dos mesmos, não das elites outrora dominantes e petulantes (porque a crise toca a todos), mas dos turistas, esses estrangeiros endinheirados os quais, nos dias que correm, preenchem Lisboa. Entramos num restaurante de fados, algures no coração de Alfama. Procuramos aquele ambiente soturno, mas ao mesmo tempo acolhedor, onde do escuro irrompem as vozes e os lamentos de todo um povo e do seu fado. E se de facto encontramos as vozes, nem por isso encontramos o povo, porque para além de nós e para além dos fadistas, não sobra vivalma de quem se diga português. “Vocês falam português?“, pergunta o empregado de mesa, “Falamos, falamos.“, respondemos em coro enquanto sorrimos, mas nem sempre, e nem por isso todos os dias, e não fosse o facto de residirmos no estrangeiro e talvez não estivéssemos aqui entre franceses, espanhóis, nórdicos, brasileiros e eslavos.
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Tempos houve nos quais ir a um restaurante de fados em Alfama era privilégio apenas ao alcance de meia dúzia de eleitos. Ainda o é, mas desta feita não dos mesmos, não das elites outrora dominantes e petulantes (porque a crise toca a todos), mas dos turistas, esses estrangeiros endinheirados os quais, nos dias que correm, preenchem Lisboa. Entramos num restaurante de fados, algures no coração de Alfama. Procuramos aquele ambiente soturno, mas ao mesmo tempo acolhedor, onde do escuro irrompem as vozes e os lamentos de todo um povo e do seu fado. E se de facto encontramos as vozes, nem por isso encontramos o povo, porque para além de nós e para além dos fadistas, não sobra vivalma de quem se diga português. “Vocês falam português?“, pergunta o empregado de mesa, “Falamos, falamos.“, respondemos em coro enquanto sorrimos, mas nem sempre, e nem por isso todos os dias, e não fosse o facto de residirmos no estrangeiro e talvez não estivéssemos aqui entre franceses, espanhóis, nórdicos, brasileiros e eslavos.
As fadistas são duas: uma não tem mais de 22 anos, trazendo nos gestos e nas mãos graves a voz profunda de quem ainda acredita ser o mundo um desafio e o fado a sua arena, a sua lança e a sua dança. E se por um lado canta como poucos, é difícil compreender quanto conta e quanto canta, pois é pobre na dicção e toda a força vem da voz, ao contrário da segunda fadista, a qual, não menos bonita, não menos sedutora, por debaixo de um xaile e quase quarenta anos de idade, vem chorar a bom chorar os desafios perdidos contra um mundo que um dia lhe coube na palma da mão. E talvez seja isto o fado, as chagas na pele feitas clamor na voz enquanto se entoam as histórias de uma vida. Por isso os cigarros, consecutivos enquanto não canta, por isso o telemóvel enquanto os dedos deslizam pelos ecrãs de outros mundos que não este, outros sonhos, mas não este, porque um dia foi possível acreditar e hoje já não é.
Tempos houve nos quais ir a um restaurante de fados em Alfama era privilégio apenas ao alcance de meia dúzia de eleitos. Hoje seria meu desejo serem os próprios fadistas esses eleitos. Afinal, se Lisboa está cheia de turistas, se o desemprego baixou para os doze por cento e se a economia cresceu um vírgula cinco por cento, porque não é mais alegre este meu fado? Talvez porque se o fosse, não seria fado.