Jeremy Corbyn: um “Podemos” na Inglaterra?
O que estes jovens apreciam em Corbyn não é o carisma, que ele não tem, mas a “autenticidade” e a recusa de adaptar os seus princípios de sempre às exigências das vitórias eleitorais. O jornalista John Carlin chama-lhe “O Quixote inglês”. Corbyn responde “ao anseio de muitos, especialmente jovens, se identificarem com uma causa que julgam autêntica, justa e nobre”, escreveu no El País.
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O que estes jovens apreciam em Corbyn não é o carisma, que ele não tem, mas a “autenticidade” e a recusa de adaptar os seus princípios de sempre às exigências das vitórias eleitorais. O jornalista John Carlin chama-lhe “O Quixote inglês”. Corbyn responde “ao anseio de muitos, especialmente jovens, se identificarem com uma causa que julgam autêntica, justa e nobre”, escreveu no El País.
Jonathan Freedland, no Guardian, analisa a febre dos jovens trabalhistas. Há um dado surpreendente e que é a chave do sucesso de Corbyn: apenas 10% dos seus apoiantes consideram importante que o líder do partido ‘compreenda o que é necessário para vencer uma eleição’” — os apoiantes dos outros três concorrentes dizem o contrário.
Querem o partido e não querem o poder? Explica Freedland: “Escolher um líder do partido nada tem a ver com a construção de uma maioria governamental, com a conquista do poder ou até com uma mudança na sociedade. O que está em causa é a identidade. Serem verdadeiros consigo mesmos.” Os fracassos trabalhistas de há 30 anos são para eles uma história longínqua. “Olham a paisagem de hoje, o Partido Nacional Escocês, o Syriza ou o Podemos e pensam: por que não? (...) Absorveram a lição de que talvez o poder não seja essencial se tudo a que leva são privatizações, Iraque ou uma City mais voraz.”
A actual geração dirigente foi marcada pelos desastres do Labour na era Thatcher, escreve Andrew Rawnsley no Observer. “A jovem geração foi marcada pela experiência do New Labour e pelo fracasso de Miliband em desalojar os tories. (...) Muitos membros do partido parecem estar a retirar-se para uma política de protesto em vez de visar o poder.” O que enfurece os dirigentes trabalhistas: “O Labour quer simplesmente denunciar os tories ou está interessado em os bater? Está-se nas tintas em ser competitivo nas próximas eleições?”
2. Passemos a Corbyn. Partindo quase do zero e apenas aspirando ser a voz da antiga esquerda, teve uma ascensão fulminante e lançou o pânico no establishment trabalhista. A sua vitória teria um impacto devastador na paisagem política britânica, já desestabilizada à direita pelo UKIP, de Nigel Farage. O Labour deixaria de ser um partido de governo para se tornar num movimento de protesto parlamentar e extra-parlamentar.
Alguns prevêem uma cisão.
A sondagem (YouGov) de terça-feira dava a Corbyn 53% das intenções de voto, largamente maioritário entre militantes, sindicalistas e registados para votar (mediante três libras e uma declaração de apoio ao partido). Em Maio, o Labour tinha 200 mil militantes; desde então inscreveram-se mais 79 mil pessoas e registaram-se para votar 145 mil. Prudência: a votação só acaba a 10 de Setembro e até lá os “estados de espírito” podem mudar. Serão três semanas de batalha sem quartel.
A imprensa internacional foi fascinada por Corbyn, o “socialista à antiga”. Comentadores e políticos britânicos atacam os seus “os anacrónicos valores socialistas”. Promete renacionalizar a grande indústria, os caminhos-de-ferro, o gás e a electricidade, subir os impostos dos ricos, um plano maciço de investimento nas infra-estruturas, a restauração dos direitos perdidos pelos trabalhadores, a gratuidade das universidades e, sobretudo, o aumento da despesa pública e o fim da política de austeridade. Propõe também o cancelamento do nuclear militar britânico e a saída da NATO, tal como a revisão do estatuto britânico na UE. Paul Krugman deu a bêncão ao seu programa económico.
É um anti-americano visceral. Foi admirador de Chávez, apoiou Putin no conflito ucraniano, elogia o Hamas e o Hezbollah. Um dirigente sindical diz que ele é o “melhor antídoto contra o vírus do blairismo.”
Por aqui passa muita retórica. Vêm à memória as eleições de 1983. Depois da derrota de 1979 perante Thatcher, em grande medida provocada pela exasperação perante as sucessivas greves do carvão, o Labour elegeu um venerando líder radical, Michael Foot, que se apresentou às eleições com um programa maximalista. Ao lê-lo, o trabalhista Gerald Kaufman qualificou-o como “a mais longa carta de suicídio da História”. O Labour foi esmagado. Foi um trauma que permitiu a futura ascensão de Tony Blair. Interrogado sobre 1983, respondeu há dias Corbyn: “Que é que há de errado no manifesto de 1983?”
Aos que dizem que as “eleições se ganham ao centro” — coisa que Tsipras, Iglesias ou Marine Le Pen percebem — a sua candidatura responde que os próximos cinco anos com Cameron farão os britânicos mudar de opinião. “Estive na Grécia e estive em Espanha. É interessante ver que os partidos sociais-democratas que aceitaram a austeridade e a praticaram acabaram por perder numerosos membros e apoios”, declarou Corbyn ao Daily Mail.
3. O caso do Labour é uma surpresa mas também o reflexo de uma grande mudança. A crise provocou uma recomposição política, que se traduziu no reforço ideológico dos conservadores, no impasse da social-democracia, no crescimento dos populismos de direita e em fenómenos como o Syriza e o Podemos. Mas também permitiu a ressurreição das “velhas esquerdas” que continuam a pensar o mundo como há 30 ou 40 anos e que, portanto, lhe respondem com velhas receitas que fracassaram. Este é o mundo de Corbyn.
O desafio da social-democracia ou do Labour não se resume às alianças e a ganhar as eleições ao centro. O que ainda não conseguiram dizer é o que será uma “resposta de esquerda”.
Explodiu a globalização, que, ao lado das mudanças tecnológicas, reduziu e fragmentou a classe operária. Desfez-se a coligação histórica entre a classe operária e as novas classes médias de empregados assalariados, em que a antiga social-democracia assentava. Como governar? O envelhecimento da população e a extensão das prestações sociais exigem impostos mais altos. Uma fiscalidade excessiva ameaça a competitividade. E o recurso ao endividamento deixa os governos à mercê dos mercados financeiros.
Grande parte da esquerda tem tendência a negar a realidade. “A esquerda europeia necessita de um pensamento radical para enfrentar o futuro (...) e esse pensamento político radical tem de ser trazido para o âmbito do centro-esquerda”, escreve o jornalista britânico John Lloyd.
Mais do que Corbyn, importam o Labour e os seus jovens. Não têm um novo horizonte político. Recuam da política para o moralismo. Fica uma interrogação inquietante: que se seguirá a uma previsível decepção, ganhe ou perca Corbyn a liderança do partido?