O que da vida nos olha no olhar
José Manuel Teixeira da Silva é um poeta que urge ser lido; o seu novo livro é um ponto de partida.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Pequeno livro, três partes, cada uma encabeçada por uma epígrafe que sumariza o conjunto de poemas aí aglutinados: “a beleza que não é só minha/ que também passa sozinha”, de Vinicius de Moraes; “numa pura suspensão de/ cristais revelo a minha vida”, de Carlos de Oliveira; “Aqui estão flores mudas e vozes apagadas/ ambas vivendo de novo o reencontro”, de Fiama Hasse Pais Brandão. Sublinhem-se, respectivamente, a “beleza” que se impessoaliza, a ideia de “suspensão” e o “reencontro”, visto como reacendimento: temos assim a chave de leitura dos poemas de Música de Anónimo.
Paralelamente, os dispositivos mentais da fotografia, de configurar o campo e de capturar poeticamente uma imagem, marcam esta poesia, assim como a sobreposição e a sucessão de imagens de grande visualidade. Se há um sentido literalmente dominante, será o da visão; se há um instrumento reforçado, será o dos olhos — são consecutivas aparições, textualmente transpostas ao longo de todo o livro. São os olhos que mergulham no mundo, sacando dele um ponto, marcando na hora um tempo único, fulminante, um ponto de partida, que, todavia, ao ser relançado, introduz a sensação de salto para a permanência, de contínuo — a dimensão de tempo e do movimento. Ao levantar-se a cabeça para a extensão do mundo, delineia-se um espaço visual, pictórico. Luz, luminosidade, sombra, olhar — os olhos que olham e que fixam no texto, engendrando espaço — são os alicerces destes poemas. As suas peças: as praias, o fogo, o mar, as ondas, o anoitecer.
Ao primeiro poema, um crepúsculo, um mar de chamas: “os incêndios cercam as praias/ brilhos e olhos mergulhados no mundo// Não sabemos como respirar/ se nadas entre cinzas/ e encadeias os limites do dia// É apenas um mar de chamas/ dizes, enquanto descansas/ nos braços do ar// Ardem nuvens e nuvens e palavras/ na consumida aparição da noite.” A luz e o fogo incendeiam o ar, acendem a vibração poética: ardem nuvens (e nuvens) e ardem palavras. Esta repetição estende a imagem e o verso, num processo recorrente: “de estrela em estrela”; nuvens de nuvens, outras nuvens”; “sombra de sombras de sombras”; “lágrimas que destilam as lágrimas”; “silêncio tombando sobre silencioso silêncio”; “a luz ilumina toda a/ luz, luminosamente”.
Há focagens e desfocagens. Efeitos de movimento. Deformações, reformulações. Este processo cria em simultâneo a expansão (cenário, espaço, horizontalidade) e o aprofundamento (intensidade, tempo, verticalidade) — “um dia inteiro sustenta os olhos/ afunda as figuras que adivinhas/ tanto persistem, sempre mais remotas” —, materializados até na quase ausência de pontuação e no ficar em aberto do verso e/ou do poema.
Olha-se o mundo que nos olha e por esse olhar do mundo fica-se cativado. Fica o poeta suspenso: o seu estado de alma é o da passagem, o viajar da própria viagem, avançando até encontrar um interlocutor, um lugar. Evola-se uma efabulação poética, uma quase narrativa, um ethos particular a partir, por exemplo, da Rapariga do Brinco de Pérola de Vermeer, da sombra de Alma na cabana junto ao lago de Gustav Mahler. O escritor cruza campos artísticos distintos na origem e nos media: da pintura, criam-se pontos de fuga a partir de detalhes em esboços de Turner (“também nos inspira/ a sonâmbula pesca à linha/ quase esquecendo as trutas viscosas”) e de fotografias mais ou menos conhecidas de grandes fotógrafos (de Josef Sudek a Walker Evans). A música, a mais imaterial e mais abstracta das artes, é repetidas vezes convocada como modus operandi ideal caminhando para a invisibilidade, o insubstancial — por exemplo em Música de anónimo do século XVII (cravo de 1758): Recebe a música de cada vez anónima/ nos dedos que fogem e duram fulminantes/ ou descansam de leve no instrumento etéreo/ que chegou de um século seguinte// A vastidão do dia afina-se no embalo das vidas/ são correntes de um ar que nos transporta/ repercutido silêncio exposto/ mas só agora plenamente alheio”. Também a música é mote ou pretexto para um dos mais belos poemas do livro: Catálogo de Pássaros de O. Messiaen.
Apesar de pouco mediático, José Manuel Teixeira da Silva é um dos poetas mais interessantes da nossa contemporaneidade. Possui um estilo singular, reconhecível; manuseia a língua e as diversas figuras com destreza e elegância até no extremo; transfigura a construção sintáctica mais comum, aproxima elementos antitéticos. Um poeta simultaneamente da atenção (minuciosa) e da imaginação (fulgurante) que urge ser lido.