O mundo é lixado
Da Argentina e do Irão, duas meditações sobre os nossos dias com resultados distintos.
O “movimento” do título é uma espécie de utopia, uma solução mágica para devolver ao país a pureza primordial da sociedade perfeita – que, como todos sabemos, nunca existiu, mas que nunca impediu os ambiciosos de usar como bandeira para reunir gente à sua volta. El Movimiento, o filme, acompanha um fervente evangelizador de falinhas mansas (Pablo Cedrón) que percorre as pampas em busca de apoiantes para devolver a Argentina a tempos melhores. Naishtat filma-o (a preto e branco e écrã quadrado) em constante dúvida: é um sincero devoto de um país melhor ou um simples charlatão que quer enriquecer às custas de camponeses que já não têm mais nada para sobreviver?
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O “movimento” do título é uma espécie de utopia, uma solução mágica para devolver ao país a pureza primordial da sociedade perfeita – que, como todos sabemos, nunca existiu, mas que nunca impediu os ambiciosos de usar como bandeira para reunir gente à sua volta. El Movimiento, o filme, acompanha um fervente evangelizador de falinhas mansas (Pablo Cedrón) que percorre as pampas em busca de apoiantes para devolver a Argentina a tempos melhores. Naishtat filma-o (a preto e branco e écrã quadrado) em constante dúvida: é um sincero devoto de um país melhor ou um simples charlatão que quer enriquecer às custas de camponeses que já não têm mais nada para sobreviver?
Claro que o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente, e Naishtat quer mostrar que haverá sempre gente disposta a tudo para lá chegar e gente crédula o suficiente para facilitar. O realizador argentino tem jeito para filmar o mal-estar apocalíptico – fê-lo na sua estreia, o mais abstracto Historia del Miedo (estreado a concurso em Berlim 2014 e mostrado nesse mesmo ano no IndieLisboa), volta a fazê-lo em El Movimiento. Mas o novo filme, realizado no âmbito do programa de produção do festival sul-coreano de Jeonju e produzido em tempo recorde, tem uma dimensão mais espontânea e urgente que revela uma outra e igualmente interessante faceta de Naishtat, confirmando-o como cineasta a seguir.
O mesmo, para já, não se pode dizer do segundo realizador estreante do Concurso Internacional depois de Josh Mond, o iraniano radicado na Alemanha Sina Ataeian Dena. Paradise, a sua primeira longa-metragem de ficção, foi rodada sem autorização no Irão ao longo de três anos, com uma equipa semi-clandestina, e fala de um tema recorrente no cinema da República Islâmica: o estatuto de “cidadã de segunda classe” do sexo feminino, manietado por um sem-número de regras estritas de “moral e bons costumes”. Esse estatuto é-nos mostrado através de Hanieh (Dorna Dibraj), uma jovem professora primária, órfã de pais, que se sente aprisionada num sistema quase kafkiano onde é presa por ter cão e presa por não ter.
Mas Paradise nunca explica realmente ao que vem; a sua história de uma jovem moderna que o sistema obriga a ceder para sobreviver não tem princípio nem fim, não tem urgência nem embalo, e a sua personagem principal é, literalmente, uma mulher que não está lá, uma incógnita que nunca se revela nem se explica, uma presença ausente – e Dorna Dibraj não é capaz de transcender um certo ar de enfado burguês que funciona a contra-corrente do filme. Nem o apadrinhamento de Yousef Panahi, irmão mais novo de Jafar, aqui produtor (e igualmente actor num pequeno papel secundário), consegue tornar Paradise em algo mais do que um simples repisar de temas que já foram mais consistentemente e mais bem tratados no cinema iraniano.