A grande obra de arte dos Açores são as pessoas
No festival Walk&Talk a cultura e os saberes da população dos Açores atribuem sentido às visões artísticas contemporâneas.
No início, Jesse James e Diana Sousa, os fundadores do acontecimento, sentiam que a arte contemporânea estava dissociada da vida na região. O que fazer? Se as pessoas não tinham curiosidade por arte, talvez se levassem directamente a arte até elas a sua sensibilidade se transformasse. Dito e feito.
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No início, Jesse James e Diana Sousa, os fundadores do acontecimento, sentiam que a arte contemporânea estava dissociada da vida na região. O que fazer? Se as pessoas não tinham curiosidade por arte, talvez se levassem directamente a arte até elas a sua sensibilidade se transformasse. Dito e feito.
Nos primeiros anos o Walk&Talk ganhou visibilidade pelos convites a artistas que transformaram a região de Ponta Delgada, e zonas adjacentes, numa galeria a céu aberto. Hoje qualquer pessoa visita a área e descobre um circuito de arte pública, com mais de 80 obras, entre murais, instalações e esculturas, pertencentes a artistas como Vhils, Clemens Behr ou Mark Jenkis.
Mas o acontecimento não podia ficar por ali. Havia que envolver mais a comunidade e fazer participar os que vêm de fora (artistas, designers, músicos, jornalistas, público) na vida da ilha, estimulando a troca de experiências, fazendo sobressair a cultura e a memória como projecção de futuro, o estilo de vida humanizado, o papel das relações de proximidade, o ambiente de autenticidade ou o saber expresso em técnicas que se foram tornando raras.
O Walk&Talk é isso. Recebe, envolve, cria comunidade, promove exposições, residências artísticas, concertos, palestras – olhos nos olhos, ao longo de duas ou mais semanas. Percebe que o futuro se cria com histórias de vida. Que o diga Alexandre Farto, ou seja Vhils, presença habitual no festival desde o início.
No ano passado tinha estado em Rabo de Peixe, recolhendo narrativas de pescadores, retratando-os e criando a partir daí uma série de murais. Este ano fomos encontrá-lo num estaleiro a criar uma peça a partir de um barco que ia para abate. Cravada na madeira, lá temos inscrita a memória do lugar, da existência do próprio barco e das muitas pessoas que com ele foram lidando.
“Parte deste trabalho é a continuação do que havia feito no ano passado, a partir de retratos que fiz, numa homenagem à vida de alguns pessoas desta comunidade de pescadores, só que desta vez a partir da intervenção neste barco que tem mais de 50 anos”, diz-nos ele. “Como sempre no meu trabalho, trata-se de tornar visível o invisível, com material recolhido aqui, criando ao mesmo tempo uma ligação com o imaginário da área de Rabo de Peixe.”
Não muito longe, na povoação de Lagoa, encontra-se um magnífico mural de grande escala concebido pelo artista sul-africano Ricky Gordon, mais conhecido por Freddy Sam. Tal como para Vhils, no seu trabalho existe uma orientação de cariz social, não surpreendendo que o conhecimento da população local onde vai intervir seja uma preocupação central. Em Lagoa, acabou por ser acolhido por Graça Rebelo, uma empregada doméstica que partilha a sua habitação com mais sete pessoas, entre elas quatro filhos. Dois deles, Rodrigo e João, e o amigo Cláudio, acabaram por ser fotografados por Gordon, servindo de inspiração para o mural que envolve a localidade.
Quando ali chegou, Gordon imaginava que lhe iriam contar histórias românticas sobre a vida no mar e a relação com a natureza. Depois de um dia entre os pescadores, percebeu que estava enganado. A ligação deles com o mar não era idealizada. A vida era dura. Ficou sem saber o que fazer. Apenas quando percebeu o nome da rua – Solidariedade – onde se situava o muro que lhe haviam destinado se fez luz.
O conceito estava encontrado. E foi assim que representou Rodrigo e João, e o amigo Cláudio, no oceano, com uma linha dourada a simbolizar a comunhão na comunidade de Lagoa. “Este mural é uma homenagem à beleza e à solidariedade desta comunidade”, escreveu ele.
Durante uma semana foi visita diária em casa de Graça Rebelo. “Era mais um, como nós”, diz ela. Apesar de Graça não falar inglês, isso não inviabilizou a comunicação. Fez-lhe comida vegetariana todos os dias e, ao lanche, havia sempre um bolo. “Quando começou a pintar o muro, a população estava toda calada, sem saber o que pensar”, conta, mas depois foram-no encorajando e, no final, “toda a gente tirava fotos”, conclui com orgulho. “No fim de contas, nem todos têm os filhos numa pintura.”
Um dos filhos, João, de 20 anos, haverá de dizer-nos mais tarde, no porto de pesca da localidade, enquanto conserta umas redes, que não assistiu ao processo de feitura do mural porque tinha o mar à sua espera todos os dias, mas percebe-se o regozijo no olhar. “Eu sou aquele que na pintura está a olhar para cima."
O centro do mundo
Em Forno de Cal, perto de São Roque, fomos encontrar um outro artista, o italiano Jacopo Ceccarelli (ou seja, 2501), em processo de criação, suspenso numa plataforma, enquanto dava os últimos retoques nas formas geométricas do seu mural. A sua actividade é multifacetada (pintura, escultura, instalação, vídeo, documentário), sendo os murais apenas uma das suas vertentes.
“Na minha actividade o vídeo é muito importante, sendo os murais a representação gráfica das interacções que estabeleço durante o processo de criação”, explica ele. Antes de chegar a São Miguel, esteve a viajar de carro e a filmar nos EUA durante 40 dias, preparando um documentário para apresentar em Dezembro na feira de arte Basel, em Miami, em Dezembro.
Os Açores, diz ele, também vão constar desse documentário, e a obra que agora completa é uma alusão ao arquipélago. “No meio estão as nove ilhas”, aponta na direcção do mural, “ladeadas pela Europa e pela América do Norte. Os Açores interessam-me porque são uma espécie de centro do mundo e, ao mesmo tempo, um local meio perdido no meio do oceano”, diz, explicitando que “as formas circulares” estão sempre presentes nas suas peças. E a relação com a comunidade também. “Os Açores têm uma forte relação com a América, por isso interessa-me perceber nas conversas com as pessoas o que significa a América para elas.”
Quem conheceu muitos açorianos durante a sua residência foi o bailarino e coreógrafo Luís Guerra, que ali criou o espectáculo Espectro com o Núcleo de Artes Performativas. Ou a actriz Raquel André, que tem vindo a coleccionar encontros, com algum grau de intimidade, que regista em fotografias. Desde Maio do ano passado foram 73 encontros, 30 com homens e 43 com mulheres.
Na conversa pública sobre o projecto, esclareceu que o mesmo se chama Colecção de Amantes e que a ideia surgiu no contexto de uma tese de mestrado que está a desenvolver, da qual resultará um espectáculo a apresentar em Setembro no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, e no Tempo Festival, no Rio de Janeiro. Como em muitos outros trabalhos artísticos contemporâneos, trata-se de explorar as fronteiras, por vezes ténues, entre ficção e realidade, privacidade e público, efemeridade e perpetuidade.
A conversa decorreu na galeria Walk&Talk, no coração da zona histórica de Ponta Delgada, onde durante a noite se sociabiliza e decorrem apresentações, sessões DJ ou a maior parte dos concertos. Foi aí que vimos as americanas THEESatisfaction, pelos caminhos do hip-hop futurista, ou o projecto de paisagens digitais Raw Forest, embora Tó Trips tenha apresentado a tranquilidade acústica da sua música no espaço Arco 8.
É também na galeria que está patente a exposição colectiva Gente Feliz com Lágrimas, com curadoria de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira; e onde durante o dia decorrem residências, como a de artesanato, coordenada pelo designer Miguel Flor.
“Era uma coisa que queria fazer há algum tempo, esse cruzamento entre designers e artesãos”, diz-nos ele, explicitando que o desafio foi endereçado desta vez aos designers Júlio Dolbeth, Célia Esteves, Susana Bettencourt, que se juntaram "aos repetentes Rui Freitas e Carolina Brito”.
“Eles definiram o que queriam fazer e quando chegaram aqui já havia ideias sobre o que iríamos desenvolver. O Rui criou uma gambiarra em vime com a ajuda do artesão; a Carolina criou mochilas de vime e tecido; o Júlio criou registos com aplicações de escamas de peixes; a Susana, que já operava com materiais tradicionais, aqui veio trabalhar com a Dona Fátima, que tem umas mãos de fada, em bordados; e a Célia criou tapetes com a ajuda de quatro tecedeiras daqui.”
Na criação de todas as peças imaginadas pelos designers, que no futuro próximo serão comercializadas pela marca ByWalk&Talk, foram fundamentais artesão, tecedeiras e bordadeira. “O Senhor João é incrível”, diz Miguel Flor, afirmando que vê-lo trabalhar é um acontecimento. “Às vezes parece um bailarino, contorcido, a agarrar o vime com os pés.”
É verdade. João Andrade, 63 anos, 52 deles dedicados ao artesanato, agarra o vime com os pés nus, ao mesmo tempo que fala connosco. “Isto é muito bom para mim, porque se trocam impressões sobre várias artes e eu, que nunca sei tudo, estou sempre a aprender”, afirma. “Às vezes vêm-me com ideias e eu digo-lhes: ‘isso não vai dar certo com o vime’, mas vou para casa a pensar e no dia seguinte digo-lhes que, afinal, é possível.”
O seu ofício, que um dos seus filhos “talvez venha a seguir”, já não é muito comum na ilha. Mas nas residências artísticas revela-se essencial. O artista norte-americano Brad Downey, um dos nomes mais destacados deste ano, aprendeu a trabalhar o vime com ele e o projecto que criou incluiu uma peça desse material. Com a ajuda de João, o americano criou uma esfera em vime, dentro da qual pôs garrafas que encheu com o seu próprio ar; atirou-as depois ao mar, presas a uma pedra, para que aí se desintegrem.
Chamou à operação artística Volta a Vir, como o barco do pescador Paulinho, com quem foi atirar a peça ao mar, registando tudo em vídeo, porque no seu projecto o que conta é o processo e a forma como se vão congregando diversas pessoas à sua volta.
Desencontros e encontros
Claro que por vezes, nestas dinâmicas onde estão inseridos agentes com níveis de leitura diferenciados sobre a arte contemporânea, os conflitos acontecem. Mas a beleza também reside na hipótese de fazer acontecer diálogo entre diferentes, a partir de um território, como o da arte, de tensões e tangentes.
O arquitecto Nuno Paiva viu a sua rede espelhada ser apreendida pela Polícia Marítima, por desencontros de comunicação entre autoridades, quando a punha a boiar na baía. A peça de Dalila Gonçalves, que dificulta a passagem dos transeuntes numa artéria estreita, foi encostada a um canto pelos comerciantes. Miguel Januário (±MaisMenos±) foi alvo de comentários mais intempestivos quando se pôs a andar no meio do trânsito com a sua singular bicicleta com altifalante. E nem todos gostaram de ver o mural florido do argentino Pastel, na marginal, ser concretizado sobre a obra dos Arm Collective que ali estava desde 2011.
Mas a harmonia existe, entre criadores, fazedores e população. É isso que se sente quando se entra na Tipografia Micaelense, onde os designers Nuno Coelho e Nuno Neves, das publicações Serrote, desenvolveram um projecto de comunicação e criação de embalagens para o chá da fábrica Gorreana, aberta desde 1883.
A ideia começou a ser desenvolvida em Maio, conta-nos Nuno Coelho, quando visitou as fábricas, que “sabia serem únicas na Europa e um autêntico museu vivo porque ainda são utilizados métodos tradicionais”. Nesse primeiro embate não ficou convencido com o que encontrou ao nível da comunicação visual, sentindo que não traduziam a experiência, a história e o legado da fábrica e do chá. Mergulhou em arquivos e descobriu rótulos e algumas publicidades antigas que lhe interessaram. Foi a partir daí que foram concebidas as novas imagens, com a ajuda do tipógrafo Dinis Botelho, que utilizou técnicas já em desuso.
Dois dias depois, na fábrica Gorreana, na zona da Maia, envolvida pelas verdejantes plantações de chá, lá estavam as embalagens contemporâneas, simples e ao mesmo tempo comunicando um saber de muitos anos, feitas a partir de imagens resgatadas ao passado e recorrendo a processos tipográficos recuperados.
Duas funcionárias da fábrica tratavam de armazenar o chá nas novas embalagens, enquanto à volta turistas mostravam curiosidade. Queriam perceber o processo. Interrogavam-se sobre como a comunidade local integrava aquelas experiências na sua vida. Não muito longe estava o paradisíaco Vale das Furnas, mas era ali que queriam estar, envolvidos por saberes antigos que atribuem sentido a visões contemporâneas, num diálogo dinâmico entre diferentes pessoas, a maior obra de arte dos Açores.