Intelectuais sob escrutínio

Um contributo estimulante para a sociologia da cultura do século XX — e uma oportunidade para entender a produção intelectual portuguesa à luz do contexto internacional.

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Téofilo Braga e Oliveira Martins: duas referências a partir das quais pensar os intelectuais portugueses no século XX

A Biblioteca das Ciências Sociais/Sociologia, Epistemologia da Afrontamento acaba de publicar o seu 96.º título. Num panorama onde se contam poucas colecções de ciências sociais orientadas para a análise da sociedade portuguesa, regista-se com apreço a continuidade da série, que integra livros fundamentais da autoria de Augusto Santos Silva, Boaventura de Sousa Santos, João Arriscado Nunes, João Freire, José Madureira Pinto, Manuel Carlos Silva, Virgílio Borges Pereira e Manuel Villaverde Cabral. Entretanto, a Portugal de Perto (Edições Dom Quixote), dirigida por Joaquim Pais de Brito, a Memória e Sociedade (Difel), e um conjunto de colecções da Celta foram descontinuadas. Como alternativa, a edição em ciências sociais está concentrada em iniciativas de carácter mais institucional, concretamente, na Imprensa de Ciências Sociais (ICS) e na Editora Mundos Sociais (CIES-ISCTE).

O livro em causa consiste numa sociologia histórica dos intelectuais europeus desde finais do século XIX. Está organizado como uma antologia, antecedida de uma introdução da autoria dos organizadores. A selecção dos autores, internacional, foi cuidadosa, a ponto de se poder considerar que um trabalho de tradução desta natureza é bem mais revelador do esforço de internacionalização do pequeno e dinâmico grupo de sociólogos do Porto do que um outro género de publicações, em revistas ditas estrangeiras, mais valorizado pela bibliometria corrente. Assim, o trabalho de tradução dos grandes autores associados a um campo, neste caso o dos estudos sobre intelectuais, devidamente enquadrado e articulado com investigações sobre matéria portuguesa, constitui uma via fecunda para inverter os termos de uma troca desigual. O que equivale a dizer que, em lugar de reduzir o caso dos intelectuais portugueses a uma espécie de subproduto, só passível de ser entendido à luz de uma qualquer epistemologia do Sul, o seu sentido passa a ser aferido em função dos grandes centros europeus produtores de ideias, que passam também a ser objecto de vigilância e a servir de padrões de comparação.

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A Biblioteca das Ciências Sociais/Sociologia, Epistemologia da Afrontamento acaba de publicar o seu 96.º título. Num panorama onde se contam poucas colecções de ciências sociais orientadas para a análise da sociedade portuguesa, regista-se com apreço a continuidade da série, que integra livros fundamentais da autoria de Augusto Santos Silva, Boaventura de Sousa Santos, João Arriscado Nunes, João Freire, José Madureira Pinto, Manuel Carlos Silva, Virgílio Borges Pereira e Manuel Villaverde Cabral. Entretanto, a Portugal de Perto (Edições Dom Quixote), dirigida por Joaquim Pais de Brito, a Memória e Sociedade (Difel), e um conjunto de colecções da Celta foram descontinuadas. Como alternativa, a edição em ciências sociais está concentrada em iniciativas de carácter mais institucional, concretamente, na Imprensa de Ciências Sociais (ICS) e na Editora Mundos Sociais (CIES-ISCTE).

O livro em causa consiste numa sociologia histórica dos intelectuais europeus desde finais do século XIX. Está organizado como uma antologia, antecedida de uma introdução da autoria dos organizadores. A selecção dos autores, internacional, foi cuidadosa, a ponto de se poder considerar que um trabalho de tradução desta natureza é bem mais revelador do esforço de internacionalização do pequeno e dinâmico grupo de sociólogos do Porto do que um outro género de publicações, em revistas ditas estrangeiras, mais valorizado pela bibliometria corrente. Assim, o trabalho de tradução dos grandes autores associados a um campo, neste caso o dos estudos sobre intelectuais, devidamente enquadrado e articulado com investigações sobre matéria portuguesa, constitui uma via fecunda para inverter os termos de uma troca desigual. O que equivale a dizer que, em lugar de reduzir o caso dos intelectuais portugueses a uma espécie de subproduto, só passível de ser entendido à luz de uma qualquer epistemologia do Sul, o seu sentido passa a ser aferido em função dos grandes centros europeus produtores de ideias, que passam também a ser objecto de vigilância e a servir de padrões de comparação.

São três as contribuições relativas à vida intelectual portuguesa. António Teixeira Fernandes escreve sobre as revistas e os grupos de intelectuais do início do século: da revista A Águia (1912), afecta ao movimento da Renascença Portuguesa, ao Orpheu de Fernando Pessoa (1915), sem esquecer a Seara Nova (1921). Gaspar Martins Pereira analisa a trajectória de Alves Redol, na resistência ao Estado Novo. E os organizadores do livro procuram caracterizar o campo intelectual do Porto, do início dos anos 60 até à extinção da Sociedade Portuguesa de Escritores, em 1965.

O estudo introdutório está escrito numa linguagem fechada, uma espécie de código para sociólogos. Claro que, com isto, se compreende a intenção dos organizadores em cortar com a linguagem e as interpretações do senso comum, a começar pelas falsas concepções de uma história que, por ser narrativa, se julga exaustiva. Donde, a insistência com que defendem que aquilo que fazem e recolhem na sua antologia são, sobretudo, “exercícios de objectivação sócio-histórica”. Mas, para o leitor, o resultado é que ficam mais as marcas dos sinais exteriores de uma linguagem cheia de complexidades escusadas e de “condições de possibilidade”, que tornam o conhecimento crítico e vigilante apenas acessível a uma elite.

A essa crítica, acrescenta-se a ausência de dois trabalhos importantes que teriam enriquecido a obra: Configurações do Campo Intelectual Português no pós-25 de Abril: O Campo Literário, de António Sousa Ribeiro, ensaio incluído em Portugal — Um Retrato Singular, de Boaventura de Sousa Santos (Afrontamento, 1993); e Intelectuais à Brasileira, de Sérgio Miceli, (Companhia das Letras, 2001).

Quais são, então, os avanços críticos propostos neste modo de fazer uma sociologia histórica dos intelectuais do século XX?

Antes de mais, os quadros apresentados ajudam-nos a pensar, em termos comparativos e relacionais, o trabalho intelectual e o lugar ocupado pelos próprios intelectuais, a partir de configurações específicas. Por exemplo, em França, segundo Christophe Charle, o Affaire Dreyfus (1894), no qual anti-judaísmo e nacionalismo andaram a par, dividiu as opiniões; a Viena fin-de-siécle, estudada por Carl Schorske, foi caracterizada por uma grande densidade de intelectuais em competição; em Portugal, segundo o já referido Teixeira Fernandes, chocavam-se tradicionalistas ou saudosistas, modernistas ou futuristas e demo-republicanos; pela mesma altura, Max Weber e Roberto Michels teorizavam acerca do papel dos intelectuais. Nesse tempo da Grande Guerra, argumentam os organizadores, travavam-se lutas pela institucionalização da sociologia, debatia-se a oposição entre nacionalismo e internacionalismo, distinguia-se entre as elites e as massas, e discutia-se acerca do papel dos intelectuais no espaço público, enquanto intérpretes por excelência da consciência colectiva.

Trata-se de um quadro comparativo de temas e problemas que convida a prosseguir as leituras e a ir mais fundo na compreensão das clivagens. A benefício de inventário, será de tomar as seguintes notas, com base noutras fontes que não estão no livro. Por exemplo, Silva Cordeiro, em A Crise em Seus Aspectos Morais (1896), tinha contraposto “a imaginação colorida e plástica” de Oliveira Martins a Téofilo Braga, o “tipo perfeito de intelectual”, com o seu “excessivo vigor de abstracção formalista e de síntese árida”. Enquanto Silva Bastos, em Perfis de Intelectuais (1908), declarou que “nas falanges democráticas estão hoje homens de grande capacidade intelectual, jornalistas de grande pulso, e que no momento oportuno podem estudar ou resolver as mais altas questões, que interessem o Portugal científico, administrativo, económico e financeiro”. Por sua vez, Veiga Simões, ao fazer um balanço da vida intelectual na Nova Geração (1911), começou por fazer um paralelo com a vida política portuguesa, considerando-a como uma “pequena confraria”, que mais se assemelhava a “um jogo de interesses individuais, em que só a vontade dos chefes impera”. E Basílio Teles, em O Estatuto dos Povos (1920), insurgiu-se contra o “internacionalismo e o cosmopolitismo”, defendidos tanto pelos socialistas como pela Liga das Nações, na defesa da pátria, “a mais elevada forma agregativa que os homens puderam e poderão realizar”.

Recordam os organizadores, a respeito do período entre as duas guerras mundiais e de ascensão do fascismo, “a simpatia que muitos intelectuais sentiram por iniciativas políticas que visavam a fundação da sociedade em novos pilares e prometiam a promoção de uma nova elite (da qual esperavam fazer parte)”. A este respeito, acrescente-se um dos testemunhos mais perturbantes. Em 1936, depois de uma breve experiência como professor visitante na Universidade da Califórnia, Berkeley, Fidelino de Figueiredo revelou a sua adesão à Alemanha nazi, num pequeno livro publicado pela Academia das Ciências de Lisboa, Problemas de ética do pensamento: o dever dos intelectuais (1936). Para ele, a “brutalidade reanimalizadora” germânica opunha-se às “elites cultas e esgotadas” do liberalismo europeu. E, entusiasmado com o contributo fascista das novas “hordas germânicas”, incluindo as suas demonstrações de violência na Noite das Facas Longas, o mesmo escreveu: “A filosofia alemã do século XIX, principalmente com as doutrinas irracionalistas mais modernas, deu a preparação doutrinária; o exagero desportivo, os concursos de beleza e o nudismo, a música e a dança negras foram os sintomas anunciadores da generalização dum novo gosto; e o racismo, com a sua noite de 30 de Junho de 1934, a sua expressão plena. Georges Sorel, o teórico da violência, mestre de Lenine e Mussolini, é francês, mas um francês deslatinizado, filho do nietzschismo germânico. (...) Essa ‘Elite’, que se há-de destacar da turba, nada tem de comum com a velha aristocracia de sangue, exausta há séculos, nem com a plutocracia do fim do século XIX (...). Tem de ser uma selecção dos melhores, biologicamente considerados, dos melhores que as normas científicas da eugenesia, da biotipologia e da orientação profissional ajudarão a destacar da massa cinzenta” (p. 66).

Uma última configuração encontra-se no período posterior à Segunda Guerra Mundial. Com base no estudo introdutório e nos textos recolhidos no livro, é difícil pensar tanto o modo como a vida intelectual foi objecto de uma monopolização por parte da academia, seguindo aliás uma tendência norte-americana, como se alterou profundamente a figura do intelectual público. Mais: de que modo a construção europeia correspondeu ou, simplesmente, respondeu aos desafios norte-americanos e às capacidades progressivamente assumidas pelos campos universitários de excelência do outro lado do Atlântico Norte, com o seus programas e critérios de cientificidade.

Em conclusão, ao pôr nos pratos da balança as críticas, lacunas e sugestões sugeridas pelo livro em causa, verifica-se que se trata de uma obra estimulante, e por isso de leitura obrigatória para qualquer interessado nas ciências sociais.