Via Algarviana em risco de abandono após investimento de 1,2 milhões
Embora mostrem interesse em incentivar o turismo de mochila às costas, que privilegia as caminhadas, os municípios do Algarve acabaram por não aprovar o plano de gestão da Via Algarviana, destinada a estes viajantes. A prioridade passou para outros projectos.
Ao fim de ano e meio de conversações com os 11 municípios envolvidos no projecto, Anabela Santos manifesta-se decepcionada, por não vislumbrar uma solução sustentável. “Tudo foi feito para que não se caísse num impasse”, comenta. Por seu lado, o presidente da Comunidade Intermunicipal do Algarve (Amal), Jorge Botelho, reconhece a sua incapacidade de liderança neste processo: “Não foi possível consensualizar uma solução, no seio da Amal, quanto ao modelo de gestão”. Estamos no Verão, observa Anabela, lembrando outros interesses: “As atenções estão viradas para as sunset party e outras festas à beira-mar”. Nos concelhos de Alcoutim e Castro Marim, o verniz da esteva derrete com o calor e raros são os caminhantes que ousam subir às montanhas. Por estes dias, o apelo das piscinas e da água do mar fala mais alto. Quando chega o Outono, inverte-se a situação: as praias ficam desertas e o cheiro da terra molhada puxa os visitantes à aventura pelos montes – lugares perdidos no interior, onde se destila o medronho e o mel adoça paladares.
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Ao fim de ano e meio de conversações com os 11 municípios envolvidos no projecto, Anabela Santos manifesta-se decepcionada, por não vislumbrar uma solução sustentável. “Tudo foi feito para que não se caísse num impasse”, comenta. Por seu lado, o presidente da Comunidade Intermunicipal do Algarve (Amal), Jorge Botelho, reconhece a sua incapacidade de liderança neste processo: “Não foi possível consensualizar uma solução, no seio da Amal, quanto ao modelo de gestão”. Estamos no Verão, observa Anabela, lembrando outros interesses: “As atenções estão viradas para as sunset party e outras festas à beira-mar”. Nos concelhos de Alcoutim e Castro Marim, o verniz da esteva derrete com o calor e raros são os caminhantes que ousam subir às montanhas. Por estes dias, o apelo das piscinas e da água do mar fala mais alto. Quando chega o Outono, inverte-se a situação: as praias ficam desertas e o cheiro da terra molhada puxa os visitantes à aventura pelos montes – lugares perdidos no interior, onde se destila o medronho e o mel adoça paladares.
No combate à sazonalidade, as prioridades parecem ser outras, valorizando-se acções de “inovação” e “criatividade”. O Plano Intermunicipal da Amal (documento que define a estratégia de desenvolvimento até 2020) faz eco disso. Dentro do pacote dos 319 milhões de euros destinados à região, surgem alguns exemplos da criatividade. Para o concelho de Portimão, – que pediu resgate financeiro para evitar a bancarrota – anuncia-se a realização do "Festival das Cidades Invisíveis” e, em Alcoutim, o projecto “Aves à Vista”.
Nesta altura, festas e eventos não faltam no calendário de animação regional, com apoios significativos. Mas, para a zona do interior, não houve entendimento das câmaras para disponibilizar 3000 euros – o valor que cada município teria de suportar durante um ano – para garantir a manutenção e gestão da Via Algarviana. O projecto soma 1,2 milhões de euros, suportados por duas candidaturas a fundos comunitários. As autarquias entraram com cerca de 360 mil euros, sendo os restantes 840 mil euros suportados pelo Feder.
Cinco novos percursos
No Nordeste algarvio, o proprietário da Casa do Lavrador (turismo rural), João Henriques, desabafa: “As entidades lá de baixo [litoral] têm muito pouca sensibilidade para o que se passa aqui na serra”.
A rota da VA, criada em 2006, na altura com 300 quilómetros, foi entretanto alargada para os 800 quilómetros. À Grande Rota Pedestre (que liga Alcoutim ao Cabo de São Vicente-Sagres), foram acrescentadas cinco novas ligações: Marmelete/Aljezur, Mexilhoeira Grande/Monchique, Estação da CP de Loulé/Salir, Paraíses/São Brás de Alportel e Lagos/Bensafrim. A ideia, explica Anabela Santos, é criar rotas temáticas permitindo a inter-ligação entre o litoral e interior.
Monchique, por exemplo, possui a “rota das árvores monumentais”, Alcoutim a “a rota do contrabandista” e Loulé a “rota da água”. Os trilhos estão sinalizados e apoiados com guias e folhetos informativos. “Um bom trabalho desenvolvido pela Almargem”, elogia Jorge Botelho, reconhecendo que “não foi ainda possível um entendimento com todos os municípios [sobre a importância do projecto]”, admite.
No passado dia 3 de Julho, na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR-Algarve), a Almargem reuniu-se com todos os presidentes das câmaras e outras entidades envolvidas no projecto. Apresentou um plano de contingência para assegurar a gestão do projecto, em fase de transição de candidaturas a fundos comunitários. “Todos concordamos em manter a VA, mas não chegamos a acordo quanto ao modelo de gestão e custos”, diz Botelho. A decisão ficou adiada para a reunião ordinária da Amal a meio de Julho, mas o assunto não foi incluído na ordem de trabalhos.
Jorge Botelho adianta, no entanto, que ficou “combinado, informalmente”, entre os autarcas presentes que cada um iria contribuir com 1700 euros até final do ano para assegurar “a continuação do projecto”. A concretização da promessa, explica, passa agora por cada um dos municípios por onde passa a rota levarem a proposta para aprovação em reunião de câmara. Jorge Botelho, também presidente da Câmara de Tavira, reconhece que o assunto tem de ser “debatido e aprofundado no seio da Amal, a partir de Setembro”.
O impasse em que a situação caiu deixa preocupada a coordenadora da VA: “Todos os dias estamos a receber pedidos de informação”. Os estrangeiros, explica, “não programam as férias em cima da hora”. Anabela Santos, cabisbaixa, continua a arrumar caixas contendo os guias e mapas mais recentes da VA, distribuídos gratuitamente. O modelo de gestão deste itinerário alternativo às praias foi desenvolvida pela empresa Other Signs-Consultoria Organizacional, Ldª e o estudo foi auditado pela BDO&Associados.
Alemães no Algarve desconhecido
O monte das Furnazinhas, no concelho de Castro Marim, é um daqueles lugares que os turistas alemães descobriram primeiro que os portugueses. João Pereira, montado numa velha mula, passa em frente ao café Sequeira. Mesmo sem dar ordem de paragem, o animal abranda a marcha. “Então Ti João, donde vem?", pergunta o dono do estabelecimento. O homem mostra o cesto de figos, apanhados pela frescura da manhã. Estava de regresso a casa, o calor começara a apertar. “Já deve ter mais de 90 anos”, comenta António Sequeira, elogiando a longevidade e a resistência do vizinho. “Nunca foi a um médico”, prossegue.
Qual o segredo para uma vida tão saudável? João Henriques, agrónomo, tem uma explicação: “A qualidade do ar e todo o ambiente natural que nos rodeia”. Por isso, uma vez alcançada a reforma, regressou à aldeia para reconstruir a antiga casa onde nasceu. A habitação foi transformada num espaço de turismo rural, com capacidade para alojar até 12 pessoas. “Mais de 90% dos meus clientes chegam pela Via Algarviana”, diz. Nos últimos três anos, informa a Almargem, o projecto injectou nas pequenas economias locais 2,5 milhões de euros. O agrónomo confirma a importância do projecto: “permitiu olhar para estes territórios de uma outra maneira”, sublinha. Os alemães são os principais utentes desta rota, logo seguidos dos holandeses. O número de visitantes que acedem ao website cresce a uma média de 14% ao ano.
Contrariando a tendência que se verifica durante o Verão, quando todos os caminhos vão ter à praia, a meio da semana apareceu no meio da serra do Caldeirão um caminhante solitário. A presença de um sociólogo, de 45 anos de idade, surpreendeu os locais. “Num só dia fez dois percursos, de Alcoutim até aqui [Furnazinhas]", destaca António Sequeira, falando de trás do balcão, à espera de clientes.
Lá para Setembro/Outubro, comenta, “chegam grupos de caminhantes e é nessa altura que a serra ganha outra vida”. Por agora, diz, ”vendo pouco mais do que meia dúzia de cafés à hora do almoço”. Sentado à porta do estabelecimento, António Ribeiro recorda como é que ele, agricultor toda a vida, emigrou para França e lá se fez trabalhador da indústria automóvel. Ao aproximar-se da idade da reforma, regressou à aldeia: “Acabei de ir pôr o burro no restolho”, diz. Afinal, os anos passaram, mas o ritmo de vida mantém-se. “Não há gente jovem por aqui”, observa.
Ao longe, as curvas dos montes roçam o céu. O sol intenso quase faz faísca nas lajes de xisto. “Só os velhos é que vão resistindo a ficar por cá”, diz, apontando a principal razão: “O solo é pobre e seco”.
Mas parece ser a rudeza do lugar que atrai gente de outras paragens, na busca das paisagens que moldaram o corpo e o espírito humano. O sociólogo chegou a Furnazinhas à procura de uma inexistente caixa de multibanco, acabou a pernoitar na Casa do Lavrador. No dia seguinte, lançou-se noutra aventura. Umas vezes a correr, outras a marchar, fez mais de 40 quilómetros até Cachopo. “Passou pelo meu monte, a fugir, os cães desataram a ladrar, custei a segurá-los”, conta Diogo Pereira, um ex-empresário da construção civil que fez vida profissional na zona de Lisboa e voltou a Furnazinhas para agarrar de novo na enxada. “Sinto-me bem aqui”, diz, confidenciando que é parente de João Henriques.
“Vai um sumo de laranja, fresco?", pergunta o agrónomo, convidando a visitar a sua casa. “O meu inglês estava um pouco enferrujado, mas tem vindo a melhorar”, diz, a sorrir. As laranjas, de colheita própria, têm uma tão elevada concentração de açúcar que aconselha a juntar um pouco de água fresca ao sumo. “Assim vai melhor”, comenta. Na rua, de calçada de pedra irregular, a temperatura é tal que, sem esforço, poderia confeccionar-se “um bife na pedra”. Mas o dono da casa adverte que a carne não é o prato favorito de uma boa parte dos turistas que embarcam na aventura das caminhadas: “muitos são vegetarianos”, observa. Nesses casos, a solução está na horta, ali à mão de colher, cultivada à moda antiga.