Música orquestral para um futuro que não envelheceu
Passados 45 anos sobre a fundamental música que escreveu e gravou com a Jazz Composer’s Orchestra, Michael Mantler pasmou-se com a sua pertinência actual. No Jazz em Agosto, focado nas grandes formações, o trompetista austríaco reinterpreta o disco com a Orquestra Jazz de Matosinhos
Foi nesse contexto que nasceu em Nova Iorque a Jazz Composer’s Orchestra (JCO), formação destinada a interpretar a música encomendada especificamente para aquela formação. Coube ao trompetista austríaco Michael Mantler, então recentemente emigrado para os Estados Unidos, estrear o papel autoral, tendo à sua disposição um conjunto de solistas que hoje parece algo de absolutamente milagroso: Cecil Taylor, Don Cherry, Roswell Rudd, Pharoah Sanders, Larry Coryell e Gato Barbieri. Não admira, por isso, que o disco homónimo lançado em Janeiro de 1968 tenha conquistado desde logo uma aura de obra seminal e de absoluta referência para a música orquestral num contexto de jazz.
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Foi nesse contexto que nasceu em Nova Iorque a Jazz Composer’s Orchestra (JCO), formação destinada a interpretar a música encomendada especificamente para aquela formação. Coube ao trompetista austríaco Michael Mantler, então recentemente emigrado para os Estados Unidos, estrear o papel autoral, tendo à sua disposição um conjunto de solistas que hoje parece algo de absolutamente milagroso: Cecil Taylor, Don Cherry, Roswell Rudd, Pharoah Sanders, Larry Coryell e Gato Barbieri. Não admira, por isso, que o disco homónimo lançado em Janeiro de 1968 tenha conquistado desde logo uma aura de obra seminal e de absoluta referência para a música orquestral num contexto de jazz.
Esse elenco de luxo por si só parecia condição suficiente para que qualquer que fosse a música saída do estúdio viesse a ganhar um óbvio peso histórico. Mas aquilo que Mantler desenhava de notável com esta trupe – e que serve ainda hoje de modelo a muita da música que ouvimos no jazz desalinhado e na música improvisada actuais – prendia-se com o background específico de Mantler, cujo profundo enraizamento na música europeia (clássica e contemporânea) se faria sentir de forma inequívoca no registo da JCO (além de Duke Elington, Charles Mingus ou Gil Evans, o músico não esconde o peso equivalente de Stravinsky, Bartók ou Varèse neste contexto). Essa maior aspereza sonora havia de deixar um longo rasto, seguido por músicos como Peter Brötzmann (com e sem o seu Chicago Tentet), Barry Guy (aos comandos da London Jazz Orchestra) ou Alexander von Schlippenbach (enquanto líder da Globe Unity Orchestra), todos nascidos e formados em território europeu e interessados em extremar a proposta do free jazz através de um caminho que a tornava, em parte, quase indistinta da obra de muitos compositores vanguardistas contemporâneos.
Ao mesmo tempo que Sun Ra descolava com a sua Arkestra rumo a Júpiter e, mais terrenamente, para paragens africanas e arábicas, numa outra forma de expandir o formato de big band para além dos padrões instituídos por Duke Ellington, Count Basie ou Fletcher Henderson (com quem Sun Ra tocou de início, ainda a tactear os atalhos que lhe permitiriam romper com a normalidade), Mantler acompanhava-o com uma outra visão que cruzava a música escrita com as maiores liberdades que o jazz então reivindicava. Aquilo que Mingus fizera com as big bandas clássicas, ao assumir a sua filiação ao mesmo tempo que dilatava a big band tradicional integrando o be bop e o hard bop (mais adequados a formações reduzidas, dado o peso da improvisação), foi depois dinamitado por completo por esta ambição de querer o melhor de dois mundos e poder acabar com as mãos cheias de nada. Música escrita e free jazz atirados para dentro do mesmo saco poderia nunca passar de uma ideia estapafúrdia. E talvez pudesse nunca se ter revelado tão incisiva se, num primeiro momento, não fosse logo deixada nas mãos dos melhores e mais audazes músicos e tradutores do que o jazz podia ser e, sobretudo, dos novos caminhos poderia vir a tomar.
Quando Mantler diz ainda a Steve Lake que nem pensou seriamente naquilo em que se estava a meter –um novato mal acabado de chegar a Nova Iorque, a propor-se compor para um conjunto de músicos cujos nomes eram de assustar qualquer ser consciente –, admite que “foi provavelmente demasiado audaz e até presunçoso envolver músicos daquele estatuto” na sua música. “Afinal, eles eram verdadeiros gigantes e inovadores numa música radicalmente nova.” Mas é essa mesma inconsciência que permite muitas vezes avanços que a razão não aconselharia. A própria organização da JCO, que dava continuidade à ideia de Bill Dixon ao fundar a Jazz Composer’s Guild, com o objectivo de conquistar uma independência relativamente ao mundo editorial do jazz, contribuiria para a noção de que tudo era possível e admissível, com a certeza de que, certamente, interessaria a poucos.
Uma surpresa para Mantler
O tempo mudaria por completo essa percepção (de que interessava a poucos). Se a JCO desabou finalmente em 1975, deixando para trás uma discografia em que interpretava composições dos seus membros Roswell Rudd, Don Cherry, Leroy Jenkins, Clifford Thornton e Grachan Moncur III, a influência do disco homónimo composto por Mantler, possivelmente devido à tal combinação entre uma escrita de pendor europeu e uma resposta interpretativa americana, foi acumulando importância e notoriedade. É consensual, aliás, que a música de Mantler nunca terá soado tão essencial quanto naquela gravação, apesar de na década de 70 ter assinado dois curiosos álbuns – 13 for Piano and Two Orchestras, dividido com Carla Bley, e The Hapless Child and Other Inscrutable Stories, com Robert Wyatt a cantar textos de Edward Gorey.
A vitalidade do seu álbum para a JCO mantém-se ainda hoje, para surpresa do próprio Mantler. Em 2012, ao digitalizar as suas antigas partituras, o trompetista acabou por se confrontar com a música que então criara para a orquestra e pasmou-se com a actualidade desse furor criativo. Foi então que avançou para aquilo que nas mãos de outro poderia ser apenas heresia ou nas suas um comprometedor sinal de senilidade. Mas nem uma coisa nem outra. Em 2013, regravou esse disco histórico para a ECM, chamando-lhe Jazz Composer’s Orchestra Update, quer mantendo temas quase intocados, quer os alterando de acordo com a sua sensibilidade actual. Para evitar comparações excessivas e com um potencial esmagador, deixou que os solistas (ele próprio, Bjarne Roupé, Wolfgang Puschnig, Harry Sokal e David Helbock) não replicassem as gravações originais, descobrindo as suas próprias soluções. A restante instrumentação de base ficou a cargo da austríaca Nouvelle Cuisine Big Band, dirigida por Christoph Cech.
É a redescoberta dessa música que Mantler traz ao Jazz em Agosto (dia 1, sábado), com a Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM) chamada a preencher o lugar da Nouvelle Cuisine Big Band. O desafio do festival, este ano focado especialmente na presença de grandes formações (a programação integra ainda a Fire! Orchestra de Mats Gustafsson e a Orchestre National de Jazz), encaixa naquele que é o desenho da actuação da OJM, cuja missão passa por fazer da orquestra um instrumento ao dispor de alguns dos principais compositores do jazz contemporâneo e promover encontros com músicos e autores de excepção, como aconteceu já com Chris Cheek, Kurt Rosenwinkel, Jason Moran, Lee Konitz e Carla Bley. O nome de Carla Bley funciona aqui como feliz precedente para este encontro. Muito embora a música que a pianista interpretou com a OJM obedeça a uma linguagem mais clássica e menos fracturante do que aquela que Mantler lhes pede agora, as ligações são evidentes e Pedro Guedes – um dos fundadores da orquestra portuguesa, juntamente com Carlos Azevedo –salienta ao ÍPSILON esse “horizonte permanente de colaborações que permitam expandir” a experiência da OJM.
“Estamos por isso muito honrados com esta oportunidade de trabalharmos com um trompetista histórico e sobre um disco essencial que ele gravou no final dos anos 60”, diz. “Este era, de facto, um dos discos com música que gostaríamos de interpretar.” Procurando sempre circunstâncias diferentes que permitam o crescimento musical da OJM, Pedro Guedes sabe que aqui a exigência é muito particular – a obra a interpretar está escrita, registada num álbum que adquiriu um estatuto lendário e com um raio de acção aparentemente limitado para a orquestra. “Não creio que seja limitado”, contesta o director musical da OJM. “Enquanto músicos, há uma parte muito importante do nosso trabalho que é interpretar algo que está feito, está escrito, e que musicalmente pretende um determinado gesto. Ao reinterpretar não vamos alterar esse gesto musical que o autor queria, mesmo que possa depois haver algumas pequenas alterações. Enquanto intérpretes, a nossa missão é pegar na música, respeitá-la e tocá-la bem.”
A interpretação, de facto, serve como ferramenta para a OJM se deixar habitar e ocupar por algumas das composições mais estimulantes da música escrita para grandes formações no jazz. Ao interpelarem a História, os músicos colocam-se no seu encalço e lembram que a música para big band foi, muitas vezes, um laboratório para alguma da mais admirável e corajosa experimentação. E que pode continuar a sê-lo.