Todos diferentes, todos Milhões
O inglês The Bug trouxe tensão apocalíptica a Barcelos e, com um concerto magnífico, guardou lugar na memória histórica do festival. No último dia, houve hard-rock a sério com os Bad Guys, dançou-se com os Meridian Brothers e emocionámo-nos com Medeiros/Lucas.
São cinco da manhã e a cumbia digital que La Flama Blanca põe a rodar para todo o público do Milhões ouvir, o que fez questão de ficar até esta hora para dizer adeus ao festival, é dançado cá em baixo, na plateia, e lá em cima, no palco agora repleto de gente convocada pelo frenético DJ, que continuará madrugada fora a pôr as ancas do povo em rebuliço.
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São cinco da manhã e a cumbia digital que La Flama Blanca põe a rodar para todo o público do Milhões ouvir, o que fez questão de ficar até esta hora para dizer adeus ao festival, é dançado cá em baixo, na plateia, e lá em cima, no palco agora repleto de gente convocada pelo frenético DJ, que continuará madrugada fora a pôr as ancas do povo em rebuliço.
“É o Milhões!”, incentiva La Flama Blanca ao microfone. Sim, é o Milhões. O festival onde se dança cumbia às cinco da manhã e o Tuareg de Gal Costa às sete da tarde. O festival onde, como domingo na despedida, temos o privilégio de ouvir o hip hop tumultuoso, qual apocalipse dub, do inglês The Bug, momento alto do último dia. Mas onde também se vêem os colombianos Meridian Brothers a transformar Purple haze, de Jimi Hendrix, em clássico sul-americano que desconhecíamos, ou um holandês e um português a celebrar a música egípcia: faltou o DJ dos Cairo Liberation Front, mas como o Milhões é um mundo, logo se supriu a falta recorrendo a um homem da casa,Vítor Barros, dos portuenses Equations.
No último dia de Milhões de Festa, Barcelos tinha a decorrer um festival da francesinha, havia eslovacos, em trajes típicos, a visitar igrejas e a tirar fotos com os galos de Barcelos em tamanho gigante que decoram as ruas, antes de mostrarem as suas danças tradicionais às pessoas que aproveitavam a tarde relaxada de final do fim-de-semana. No último dia do Milhões de Festa, saiamos das ruas e entremos no festival, cumpriu-se uma vez mais a natureza deste acontecimento barcelense oferecido ao mundo – porque a dezena de milhares que por aqui passa, entre público que vê e artistas que tocam, leva consigo, para depois espalhar ao vento, as memórias da música, a vivência da cidade, um desejo de tomar as coisas nas suas mãos e fazer acontecer. Leva consigo esta vivência comunitária, com público a subir ao palco e músicos tornados audiência curiosa.
Cumpriu-se a natureza do Milhões de Festa, dizíamos. Onde mais veríamos uma banda de hard-rock, com dois guitarristas a empunhar sem qualquer vergonha guitarras de braço duplo e um vocalista que berra como cruzamento rock’n’roll de Bukowski e Charles Manson, a fazer a festa no palco principal? (festa de intensidade decibélica irresistível, esta dos londrinos Bad Guys, como comprovado pelo mosh e pelo crowd surfing com que se celebrou a distorção e o bom ritmo acelerado). Onde mais, prossigamos, se vê, no mesmo cartaz, esses Bad Guys seguidos dos regressados Plus Ultra, superbanda portuense, peso pesado em som e atitude, onde encontramos um ex-Zen, Gon, e um ex-Ornatos Violeta, Kinorm, seguidos de uns colombianos, os Meridian Brothers, que homenageiam a sua cultura com órgão circense, ritmo luxuriante e humor e elegância a toda a prova? Encontramo-lo no Milhões de Festa, o festival cuja edição deste ano deixou para a história o rock surrealista dos Deerhoof e o vudu dos HHY & The Macumbas, na sexta-feira, e, no sábado, a festa latino-americana na piscina, cortesia de Chancha Via Circuito, a passagem dos avassaladores Hey Colussus pelo palco Milhões e, acima de todos, a estreia em palcos portugueses de Michael Rother, a lenda alemã do krautrock da década de 1970. No último dia, domingo, juntámos mais nomes a essa lista.
The Bug ficará na história
São duas da manhã e, enfiado num canto à direita do palco, capuz a esconder-lhe o rosto, está um inglês chamado Kevin Martin. Conhecemo-lo, entre outros nomes, por The Bug. Personagem misteriosa, DJ e produtor movendo-se nos subterrâneos da música popular urbana, assinou um concerto sublime pela intensidade do som, pela forma como molda as reverberações do dub, a mecânica rítmica do hip hop ou do dancehall e as alucinações sonoras do grime. Sozinho, criou uma massa sonora avassaladora que ecoou pela caixa torácica e que pôs em sintonia os corpos que a sentiam na audiência. Quando se juntaram a The Bug dois MC, o Flowdan da rima pausada e o Manga das sabem-se lá quantas rimas por segundo, o impacto sonoro tornou-se ainda maior. Palco envolto em penumbra, víamos recortarem-se nele três figuras: os dois MC, braços erguidos para agradecer os aplausos da multidão, e o criador de todo aquele som convulsivo, ideal para pista de dança entre escombros urbanos, The Bug, dobrado sobre os gira-discos. Quando se despede erguendo no ar uma das suas ferramentas criativas, um disco de vinil vermelho-sangue (cor adequada à música que lhe ouvimos), e, por fim, lhe vemos o rosto, estamos esgotados e estamos preenchidos – os baixos parecem ainda percorrer a caixa torácica, as camadas de sintetizadores tétricos e a autoridade das vozes continuarão a povoar-nos o imaginário nessa noite e nos dias seguintes. Na história do Milhões de Festa 2015 estará, inevitavelmente, The Bug.
Como estará o psicadelismo dos portugueses dreamweapon, que se estrearam este ano em longa duração homónima e que são máquina sonhadora, como o nome sugere, muitíssimo bem afinada e bem alinhada com uma genealogia que passa pelos 13th Floor Elevators, que se desvia para a motorika dos Neu! e que nos devolve em novos sons o minimalismo dos Spacemen 3.
Na memória guardaremos igualmente as canções de Medeiros/Lucas ouvidas no anfiteatro formado em frente do Palco Milhões. Mar Aberto, o álbum de estreia de Carlos Medeiros e Pedro Lucas, é uma preciosidade da música criada em Portugal que se torna mais empolgante e comovente a cada nova audição. A cada novo concerto, caso este tenha o som perfeitamente equilibrado entre a voz, a guitarra, as percussões, a electrónica e o baixo, como aconteceu no Milhões, crescem em nós estas canções de aventura trágica e romântica, este marulhar constante na voz profunda de Carlos Medeiros (apoiada no concerto, em duas canções, pela de Mitó, vocalista d’A Naifa) e aquela guitarra ora dedilhada com delicadeza, ora vergastada num remoinho eléctrico que transforma Batalha do Lepanto, Canção do mar aberto, Búzio ou Navio, aquela com que se despediram, em pedaços de música que carregamos como se nos pertencessem desde sempre. Eram poucos àquela hora a ver o concerto, como é habitual nos primeiros concertos do dia no palco principal, mas estamos certos de que todos eles sentiram o mesmo. É muito, muito preciosa, a música de Medeiros/Lucas.
Ao início da noite, uns poucos privilegiados navegaram, maravilhados, esse Mar Aberto perante nós. Horas depois, esses privilegiados juntavam-se a outros tantos para dançarem, de sorriso aberto, a festa que se fazia na plateia e no palco. “É o Milhões!”, gritava uma vez mais La Flama Blanca. É um bom resumo. “É o Milhões!” Quem por lá passa sabe exactamente o que isso significa.