E com Michael Rother fez-se luz nos céus de Barcelos

A penúltima noite do Milhões de Festa, sábado, teve muitos pontos de interesse, como o zumbido bom provocado pelos Hey Colossus, o garage-rock dos Go!Zilla ou a festa tropical de Chancha Via Circuita. Mas será recordada pelo histórico concerto de Michael Rother.

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Noite alta de sábado, estávamos a descer à terra no Milhões de Festa, apesar do desejo de Coyes em fazer-nos levitar um pouco (depois de Rother, tal não era possível, dado que qualquer música pareceria mera banda-sonora correndo em fundo). Foi então que as vimos lá ao longe, vindas do outro lado do rio.

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Noite alta de sábado, estávamos a descer à terra no Milhões de Festa, apesar do desejo de Coyes em fazer-nos levitar um pouco (depois de Rother, tal não era possível, dado que qualquer música pareceria mera banda-sonora correndo em fundo). Foi então que as vimos lá ao longe, vindas do outro lado do rio.

Uma após outra até serem bando de dezenas, surgiram nos céus de Barcelos pequenas luzes brancas piscando muito ordenadas. Nesse momento, Coyes ter-se-á sentido um pouco sozinho. De repente, as cabeças do público frente ao palco Vodafone FM viraram-se deste para o céu, apontando as luzes que brilhavam e procurando respostas. Invasão alienígena? Um bando de gansos radioactivos? Efeito cénico criado misteriosamente pelo homem que tem uma banda chamada Peaking Lights? Ou reflexo no meio natural do poder mágico da música de Michael Rother? Naquele preciso momento, a última hipótese era adoptada como a mais provável. Não tínhamos outra hipótese. E nem a revelação de que a verdade era bem menos interessante nos desviou da crença. Não passavam de balões com um pequeno led no interior, lançados nos ares numa festa de casamento lá ao longe, do outro lado do rio, do outro lado do Milhões de Festa, mas, neste caso, preferimos a mistificação à verdade: a música de Michael Rother teve a capacidade de acender luzes nos céus de Barcelos.

À direita, Rother, escondido atrás da grande mesa onde está disposta toda a maquinaria necessária para que a música criada corresponda exactamente à sua visão (o laptop, os sabem-se lá quantos pedais de efeitos, moduladores e afins). Ao centro, Franz Bargmann, um par de gerações mais novo, ex-guitarrista dos Camera, fervorosos discípulos dos Neu!. À esquerda, colete preto sobre a camisa, o elegantíssimo Hans Lampe, baterista que gravou Neu! 75 e membro à época, na década de 70, dos La Düsseldorf. Pouco lhes ouviremos. Só Rother, na sua estreia em Portugal (esta segunda desce a Lisboa para tocar na Galeria Zé dos Bois), soltará uns tímidos agradecimentos e dedicará o concerto a Dieter Moebius, o ex-companheiro nos Harmonia que morreu inesperadamente a semana passada, aos 71 anos. Contudo, o rosto circunspecto do trio em palco é traído, à medida que o concerto avança, pelos sorrisos abertos, verdadeiros, que trocam os dois veteranos.

Como contou ao PÚBLICO em entrevista publicada no último ÍPSILON, nos anos 1970 Rother nunca conseguia dar um bom concerto com os Neu!, culpa das limitações tecnológicas, e, com os Harmonia, parecia incapaz de fazer chegar a sua música à audiência, que não compreendia o que ouvia, que cometia a ignomínia de adormecer mesmo nas barbas dos músicos. Tendo isto em perspectiva, vendo como todo o público se concentra frente ao palco Milhões para testemunhar um momento histórico, ouvindo o que nos diz o companheiro das primeiras filas quando o trio surge em palco (“acho que não vou aguentar e vou chorar”), compreendemos na perfeição aqueles sorrisos.

O ecrã montado sobre os músicos mostra imagens digitais abstractas ou curtas sequências vídeo de imagem granulada (estradas, o céu, o mar), ilustração feliz da dinâmica da música, um magnífico híbrido orgânico-digital. Um concerto de Michael Rother não é uma colecção de temas recolhidos a álbuns históricos como Neu! ou Musik von Harmonia. Ou melhor, é isso, mas interessam menos os temas tocados que a ideia que revelam. Um fluxo incessante de música, com Hans Lampe, qual Charlie Watts do krautrock (pela precisão e pose cavalheiresca), a pegar nas deixas rítmicas electrónicas oferecidas por Rother para se transformar numa máquina imperturbável onde bate um coração humano (chamaram ao ritmo motorika, mas o seu inventor, o falecido Klaus Dinger, fundador dos Neu! com Michael Rother, preferia chamar-lhe "apache beat”). Franz Bargmann, por sua vez, funciona como âncora melódica e Rother ilumina a música com os sons ambientais electrónicos e com os sons liquefeitos da guitarra, que se distende e expande harmoniosamente. Tudo reunido, o efeito produzido é extraordinário.

Uma rave criada por devotos de música ambiental introspectiva; exploração sonora levada a cabo por músicos onde resistem bons genes rock (mas um novo rock, minimal, encantatório); música onde descobrimos, exageremos porque este som exige que o façamos, a origem de tudo: o zeitgeist século XXI dos LCD Soundsystem, o big beat dos Chemical Brothers, o techno de Detroit, o original, e o techno de Berlim, o minimal de hoje, a intensidade do rock psicadélico actual que interessa ou o carácter cósmico dos pesquisadores electrónicos de laptop. Tudo irradia desta música inventada por dois alemães em Düsseldorf no início dos anos 1970. Sentiam-se então muito isolados, sem ninguém que lhes acompanhasse a visão musical. Mais de quatro décadas depois, têm perante si alguns milhares a dançar em frenesim, a querer mais e mais música, a celebrar esta preciosidade que é a invenção de algo único, totalmente original. A acolher Hallogallo, o primeiro tema do primeiro álbum dos Neu!, a música que é também um manifesto criativo, como um single pop de alta rotação radiofónica, lançado ao mundo para dar alegria à vida das gentes.

Muito aconteceu no sábado, no penúltimo dia do Milhões de Festa, mas a memória guardará, acima de tudo o resto, a estreia de Michael Rother em Portugal, a torrente de som que criou, e a visão do imperturbável Hans Lampe, máquina de precisão imbatível. Muito aconteceu no sábado, mas nenhum outro grupo seria capaz de pôr bandos de luzes a sobrevoar os céus de Barcelos (balões de um casamento, corrigem os pobres ingénuos).

Horas antes, quando o sol de Verão aquecia os corpos na piscina, houve festa tropical no palco Ginga Beat com Chancha Via Circuito, projecto de recontextualização no século XXI das tradições musicais sul-americanas criado pelo argentino Pedro Canale. Libertou-se a dança com a cumbia que Canale guardava em formato digital e cujo poder terapêutico (a dança salva e o público percebeu isso muito bem) era acentuado pelo ritmo ribombante criado pelo percussionista que o acompanhava.

Pouco depois, no palco Taina, o público sentou-se na relva para ouvir as óptimas canções de Éme, o autor do belíssimo Último Siso, habilmente transportadas para palco com charme e bom humor, e esse mesmo público levantou-se à chegada dos Go!Zilla, porque a música dos italianos assim o exige. O vocalista/guitarrista veste uma t-shirt dos Thee Oh Sees, o imprescindível grupo garage-rock de São Francisco, e percebe-se porquê: o fuzz das guitarras é rastilho rock’n’roll que a sofreguidão do ritmo e a urgência da voz trata de acender sem qualquer discrição – não interessa quantas vezes já ouvimos rock’n’roll assim, interessa que, quando o ouvimos como os Go!Zilla o tocaram, somos atravessados pela sensação que tudo isto é novo e necessário, incrivelmente excitante.

Um colosso

Quando, muitas horas mais tarde, o público transformava a zona frente ao palco Vodafone FM em discoteca a céu aberto, cortesia da house e da electrónica funky de Tiago, já os barcelenses que passeavam em família pela zona histórica da cidade teriam recolhido a casa há muito, já os Holydrug Couple tinham apresentado o seu psicadelismo extraído de uma nebulosa shoegaze. Eram quase quatro da manhã e os ouvidos zumbiam e continuariam a zumbir até, já em casa, sermos vencidos pelo cansaço de um dia preenchido. Era, assinale-se, um zumbido bom. Os culpados têm nome adequado aos efeitos que provocam. Hey Colossus, assim se baptizou a banda inglesa que encerrou sábado o palco principal do Milhões de Festa. E são realmente um colosso, passe a redundância.

Há pó a levantar-se das primeiras filas, há corpos em rebuliço quando a música acelera como em concerto de Fugazi, e há grupos de amigos unidos no mesmo movimento compassado, quando o ritmo surge marcado em ondas tumultuosas. Três guitarras criando uma imensa muralha sonora, um baterista endemoninhado, um vocalista que grita e vocifera palco fora, alimentado por aquele som que é, à uma, thrash metal feito por punks, pós-punk criado por devotos de Mark E. Smith, krautrock acelerado até atingir velocidade supersónica, rock’n’roll inventado por quem cresceu entre os despojos industriais do mundo ocidental. No final, as luzes de palco transformar-se-ão numa gigantesca cascata de flashes, o público gastará as últimas energias pulando e saltando e “headbangingando” e quedar-se-á quieto, de olhos no palco e estupefacto perante aquela bem-vinda violência sónica, quando do som nada mais restar que uma torrente de ruído eléctrico. No dia em que os Neu! nos deram o privilégio de ver como se constrói um mundo novo, os Hey Colossus ofereceram-nos um zumbido bom para transportar noite fora. 

O Milhões de Festa termina este domingo, com concertos de The Bug, Meridian Brothers, Medeiros/Lucas ou The Paradise Bangkok Molam International. A organização prevê que tenham passado pelo festival cerca de nove mil espectadores.