Cancro, o imperador de todos os males

A cientista Maria de Sousa e o patologista Manuel Sobrinho Simões fazem perguntas, questionam o modo como se faz ciência, dialogam sobre uma doença que é parte de nós, nos invade e muitas vezes nos mata. É uma entrevista dura.

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Cancro ou cancros? Em que estádio? Em que hospedeiro? Submetido a que agressão ambiental? Um cancro é um que cresce dentro de nós. É o “gémeo univitelino que não tivemos ao nascer. [...] Tão bem sucedido aliás que, na sede de sobreviver e crescer, acaba frequentemente por nos (e se) matar”, explica Manuel Sobrinho Simões no livro Gene, Célula, Ciência, Homem. É o imperador de todos os males, assim designado por Siddhartha Mukherjee, no livro homónimo de 2010. É uma representação da morte, palavra última que nos detém (para recorrer a um poema de Sófocles traduzido por David Mourão Ferreira que Maria de Sousa traz para o livro Meu Dito, Meu Escrito: “Inúmeras são do mundo as maravilhas, mas nenhuma que ao homem se compare. É o ser dos recursos infindáveis [...] Aquilo que o detém? Somente a morte”).

Os cancros que mais matam em Portugal são os do cólon e recto, pulmão e brônquios, e estômago, em ambos os sexos; os da mama e próstata nas mulheres e nos homens. Os números de 2010 segundo o Instituto Nacional de Estatística: morreram 24.917 pessoas devido a doenças cancerosas. O cancro mata. Não mata sempre. Prevê-se que num futuro próximo (uma ou duas dúzias de anos) mais de metade da população vá ter cancro. É bom que nos habituemos a isso.

Esta entrevista aconteceu na Ordem dos Médicos, no Porto. Não foi fácil para nenhum dos intervenientes. Porquê? Porque todos conhecemos pessoas que morreram por causa da doença, que têm a doença, porque nós podemos ter a doença. Muda tudo.

Pensa-se que foi Hipócrates a banalizar o uso da palavra “cancro”, derivada de karkinos, que em grego significa “caranguejo”. Vem daí “carcinoma”. O caranguejo tem um carácter dúplice e traiçoeiro. Se olharmos para o cancro como um duplo maligno de nós, que nos invade e ataca, o caranguejo continua a sintetizar o que o cancro é?
Manuel Sobrinho Simões — Sim. Não só é dúplice. Não só nos trai, como nos invade. Mas invade de dentro.
Maria de Sousa — Não gosto do caranguejo.

Quando pensa no cancro, pensa em que representação?
MdS — Tentei, para esta entrevista, que é muito difícil, por respeito pelas pessoas que têm cancro — e toda a gente vai ter, como diz o New York Times —, colocar o cancro numa perspectiva histórica. Tudo começa com o aparecimento de um tumor, uma massa. Com o progresso da ciência médica, a primeira coisa que acontece é a cirurgia — tira-se. Depois, percebe-se que, mesmo tirando, aquilo nunca mais acaba — volta. Depois, segue-se a irradiação. Depois, aparece o conceito da imunologia, a importância de uma surveillance imunológica. Depois, desenvolve-se a química, a quimioterapia. Hoje, se uma pessoa tiver um tumor, ainda passa por estes passos históricos.

A sofisticação dos tratamentos é maior, mas no essencial os passos são os mesmos.
MdS — Há um progresso parcelar imenso, que permite a melhoria do prognóstico e da prevenção. Mas globalmente isto não é assim. Globalmente, temos de dizer a um amigo: “Não há muito a fazer.” Como é que é possível o progresso que se fez na sida, em 30 anos? O que é que é diferente? No caso do cancro, andamos há 200 anos a fazer progressos, mas não é comparável.

A sida era, nos anos 1980, um atestado de morte. E 30 anos depois é considerada uma doença crónica.
MSS — Controlável.

No cancro, ainda que muitos possam ser olhados como curáveis, e doenças crónicas que podemos controlar, continua a existir o estigma de que é mortal.
MdS — Não é estigma, é a realidade.
MSS — Estou de acordo com a Maria. Há um elemento numa entrevista sobre cancro que é terrível. Temos pessoas de quem somos muito amigos que morreram, que têm agora e que podem vir a ter cancro. E nós próprios. Isso pesa sobre…
MdS — A própria entrevista. Imenso.
MSS — Percebo que não goste do caranguejo porque é datado. Mas há uma coisa no caranguejo que continua a ser verdade: o cancro é um ser vivo que cresce dentro de nós e que não respeita as fronteiras. O que nos caracteriza como seres vivos é termos fronteiras. É porque não respeita as fronteiras que aparece depois noutros sítios. Vai sendo capaz de se reproduzir à distância. E é este o perigo. A maioria dos cancros não mata as pessoas em mais de 50% dos casos. Mas sabemos que podem morrer.

Impõe-se então a ameaça?
MSS — Sim. Uma ameaça que já não é substanciada em número, mas que nos faz ter muito medo.
MdS — A diferença entre nós é que eu, como investigadora básica, partilho de um sentimento de culpa. Como é que as coisas evoluíram de tal maneira e não se sabe quais são as fronteiras? Sabe-se tanto, tanto, tanto. Mas falta qualquer coisa. Isto tem que ver com a forma como fazemos investigação, com a forma como se faz ciência. E por isso é que a sida é muito importante. Os doentes contribuíram para o avanço que se fez na investigação. Se a sida tivesse ficado em África, como ficou a malária, se não tivesse atingido ruas de homens que viviam em São Francisco, talvez o progresso ainda estivesse lá atrás.

Está a falar do investimento científico que foi feito?
MdS — Estou a falar da importância da participação das pessoas. Eu estava em Nova Iorque nos anos 80. Os médicos novos nunca tinham visto pessoas da mesma idade morrer assim. Aquilo mobilizou de uma maneira extraordinária. Aqui, uma pessoa que tem um cancro diagnosticado o que quer é ser tratada.

Os doentes com cancro não se mobilizam como os doentes com sida se mobilizaram.
MSS — Isso é verdade. Apesar de tudo, na sida, há um agente externo causal. No cancro, o desencadeador pode ser um agente externo, e é muitas vezes. Quase nunca é um vírus. Estamos a discutir uma coisa que é crucial: porque raio evoluímos tão pouco?
MdS — Evoluímos no conhecimento.
MSS — No conhecimento evoluímos imenso. E na eficiência do tratamento.

Mas não chega.
MSS — Não tem chegado.
MdS — Os da imunologia acham que é a imunologia que vai resolver. Os da genética acham que é a genética. Depois não há instituições que encorajem os da genética a falarem com os da imunologia.
MSS — Faz todo o sentido. Há aqui um elemento que nos distingue. A Maria é cientista, mesmo, e eu sou um patologista, um médico. O cancro é uma espécie de preço que temos de pagar por nos mantermos uma espécie viva.

Usa essa expressão no livro Gene, Célula, Ciência, Homem: “A ocorrência de neoplasias malignas, também chamadas, em geral, cancros, é o preço a pagar pela manutenção da nossa capacidade evolutiva.” Coisa terrível.
MSS — Pela manutenção de uma espécie que ainda por cima esticou a duração da sua vida. E ainda por cima se expôs mais ao sol, engordou, fuma, toma medicamentos que são imunossupressores. O nosso problema no cancro não é a causa, é o desenvolvimento. E o desenvolvimento é nosso, somos nós. Nós com uma instabilidade genética de tal ordem que torna estas aproximações, como a Maria diz, sempre parcelares. Há muita gente que acha que se soubermos mais dos genes e dos epigenes e dos metagenes, que quando tivermos de cada pessoa uma descrição completa, vamos poder tratar essa pessoa identificando cada uma dessas coisas como alvos. Não vamos. Porque, sempre que aumentamos o número de alvos sobre os quais tratamos os doentes, aumentamos a toxicidade.

No fundo porque estamos sempre a apontar para um que é parte de nós.
MSS — São alvos que fazem parte de nós. Sou muito céptico em relação à capacidade de tratar cancros que estejam desenvolvidos. Sou muito favorável à possibilidade de virmos a controlar a doença.
MdS — Essa é a parcela em que se tem avançado mais.

É a parcela dos cancros diagnosticados precocemente?
MSS — Esses tratam-se com cirurgia. E a cirurgia cura se se tiver a sorte de aquilo não ter deixado de respeitar as fronteiras e não tiver uma metástase à distância. À medida que as populações forem mais idosas, e passarmos a ter, para além da exposição aos agressores ambientais, uma incapacidade de corrigir erros (porque permanentemente cometemos erros genéticos nas divisões [celulares]), vamos ter mais cancros.

Em Cancro, escreve: “Além do elevado número de pessoas cujos cancros são tratados num estadio precoce e estão curadas, há cada vez mais doentes que sobrevivem com a doença cancerosa controlada após o tratamento. [...] Não estaremos numa situação muito diferente da dos nossos parceiros europeus: um em cada três portugueses nascidos na última década terá um diagnóstico de cancro durante a vida. A boa notícia é que mais de metade dos doentes com cancro sobreviverá à doença.”
MSS — Vamos ter todos pelo menos um cancro, ou dois. Mas vão ser tão tarde que não nos vão causar problemas. Vamos morrer com os nossos cancros. Estamos a falar de duas coisas diferentes. O cancro enquanto doença mortal num adulto, num adolescente ou numa criança. Ou o cancro numa pessoa idosa que vai ter, se prolongar a sua vida até aos 90, 100, 110, inexoravelmente, dois, três, cinco cancros.

Antes de falarmos do cancro como uma doença crónica, concentremo-nos na imunologia.
MSS — Pensávamos que o sistema imunológico era para nos defender das coisas de fora.
MdS — Numa primeira fase em que num tumor aparecem células do sistema imunitário, por causa da influência histórica, o que a pessoa pensa é que aquelas células estão lá para matar o tumor. Curiosamente, é o Manuel Sobrinho a primeira pessoa que me diz que é capaz de não ser sempre assim.
MSS — No [cancro] da tiróide, alguns linfócitos, em vez de serem matadores das células malignas, proporcionavam factores de crescimento das próprias células malignas.

Explique isso.
MSS — Eu sabia que os cancros da tiróide cresciam muito pouco. Dividiam-se muito pouco. Mas eram invasores. Na altura, fazia-se microscopia electrónica e comecei a ver as células com autofagia (a comerem-se a si próprias). E, burro, escrevi na minha tese: “... uma célula em autofagia quase pronta a morrer.” Não percebi que aquela célula em autofagia era um mecanismo de sobrevivência para que ela não morresse. A célula maligna fazia autofagia parcial utilizando os seus próprios alimentos do citoplasma para sobreviver. Tornando-se mais pequenina, gastando menos.
MdS — Gostava que saísse desta nossa conversa isto que o Manuel acaba de ilustrar: a maneira como a pessoa, sozinha, vê as coisas. E como julga, sozinha, que vai chegar [à resolução]. Não vai chegar. É necessário integrar o conhecimento da cirurgia, da quimioterapia, da imunologia. Ele diz: “Eu fui burro.” Não foi nada burro. Era aquilo que ele sabia e que se pensava na altura. Os programas de ensino estão a ficar muito dirigidos e um aluno sai de um programa só a saber aquela coisa.

É demasiado sectorial e não promove uma leitura transversal.
MSS — É pior que sectorial, é auto-sustentada. E a pessoa é premiada por ser sectorial.
MdS — É financiada por ser sectorial. A economia, os ministérios, e não é só cá, dizem que “a ciência tem de servir para...”. Voltemos ao caso da sida. Se um ministro da Economia tivesse dito que saber sobre as células T4 não servia para nada, porque não dava dinheiro, imagine o que se tinha perdido. A primeira responsabilidade é dos cientistas, é dos professores. Depois é da sociedade em que estamos. Temos de ter doentes educados. A sida é um exemplo fantástico de como se integrou o conhecimento, o comportamento da comunidade, a ciência.
MSS — Tudo o que a Maria está a dizer faz um sentido absoluto. Estava a olhar para aquelas árvores. O que acho graça nas árvores é que estão quietas.

Mas têm uma copa que se agita, como que sonham, têm a capacidade de se adaptar às condições meteorológicas. Porquê as árvores?
MSS — As árvores estão ali paradas na Primavera e no Verão. Resistem à falta de água, ao calor imenso. As suas células têm características que lhes deram capacidade de sobrevivência. As células cancerosas têm isso, também. Todos temos, todos os dias, células que são potencialmente cancerígenas e vemo-nos livres delas. Quando temos a pouca sorte de ter um cancro, as coisas sucederam naquelas células e nas filhas delas…
MdS — E no ambiente.
MSS — Claro. Quando isso lhes deu vantagem de crescimento. Só vemos os casos de sucesso [do cancro], que são os nossos casos de insucesso. É muito interessante, quando estudamos células cancerosas, o número de situações em que encontramos os mesmos mecanismos de resistência — à morte — que as plantas têm. O cancro é um ser vivo multicelular, exactamente como nós.

E que nos ganha.
MSS — Ganha porque é mais eficiente.
MdS — A minha primeira reacção é sempre a de me sentir responsável no tecido do ensino superior. As pessoas das células dos mamíferos têm imenso a aprender com as plantas. No nosso sistema educativo, os miúdos aos 15 anos decidem se vão fazer Ciências ou Humanidades. Uns vão crescer sem saber o que é um gene, uma célula. Os outros vão crescer sem saber quem é Espinosa. Nunca em Medicina ensinaram Botânica.
MSS — Mas deviam ter ensinado.
MdS — Sem dúvida. Voltando atrás. Temos uma coisa que cresce. Que cresce num ambiente. Se cresce num ambiente que toda a gente sabe que muda com a idade, é preciso perceber porque é que muda. Pode ser que se corrija este ambiente de forma a que o equilíbrio seja a favor do hospedeiro e não a favor do cancro.
MSS — A palavra “imunidade”: a Maria está a substituí-la por “ambiente”. Tem razão. A ideia é a de que os cancros não são células apenas, é um tecido que tem elementos.
Ainda as plantas. O que é que acontece se eu tiver uma célula normal e ela ficar a apanhar sol permanentemente? Vai morrer. A única hipótese que tem de sobreviver é raspar-se dali. E voltamos à história de não respeitar fronteiras. O cancro, graças ao microambiente e a coisas que são as mais variáveis, está permanentemente a encontrar estratégias para se raspar dali. Em 99,9% dos casos, o microambiente e o sistema imune dão cabo das células — elas não se raspam dali. Agora, há sempre a possibilidade de uma delas, de repente... sheer chance.

É uma questão de sorte?, tão roleta assim?
MSS — As pessoas que têm cancro têm muito pouca sorte. Dizemos que o tabaco provoca o cancro; provoca, mas só em 15% das pessoas. Deus me livre de acusar os que têm cancro: “Puseram-se a jeito.” Isso é uma estupidez.

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Recupero o tema da educação. No livro Meu Dito, Meu Escrito, Maria de Sousa fala do direito de duvidar e de perguntar, da importância da frescura da pergunta: “O mais importante na construção de um cientista é não deixar de ouvir a criança dentro de si próprio.” Como é que fazemos perguntas diferentes? Como é que chegamos a pontos de vista diferentes? É uma pergunta para a qual provavelmente não há resposta.
MdS — Há, há. É criar um sistema de liberdade. Não vai nunca fazer perguntas diferentes se não tiver a liberdade de as fazer. A escola, a forma como estamos a financiar os projectos de investigação, tudo está a limitar como é que se fazem perguntas diferentes. As equipas que escrevem projectos têm de escrever quais são os resultados esperados. Já ninguém financia resultados inesperados.
MSS — Os cientistas, para ganharem projectos, têm de se formatar. E não é só no cancro, é em relação a tudo. Há muito pouca liberdade porque o risco de não ter resultados é enorme. E as agências financiadoras o que querem é que a pessoa apresente resultados preliminares — que já estão feitos.
MdS — E que, se possível, vão dar dinheiro.

Onde entra a indústria farmacêutica?
MSS — Esse é outro lado. O cancro tem muitas coisas semelhantes, seja um cancro da pele ou do estômago ou do pâncreas. Quando há um medicamento que é eficiente para o cancro do estômago, a indústria farmacêutica, que já desenvolveu esse medicamento, que já sabe que não é tóxico, paga agora aos cientistas para testarem se, porventura, aquele medicamento que é eficiente para o cancro do estômago não será também bom para o cancro do ovário.

Isso faz-se muito? E dá resultados?
MSS — Permanentemente. Chama-se estratégia me too, “eu também”. Dá alguns resultados, mas as perguntas não são muito inteligentes do ponto de vista do que a Maria estava a dizer: da pergunta curiosa, transversal. A investigação é muito formatada. Os orientadores são enviesados. As revistas científicas são…
MdS — Enviesadíssimas.

“Além dos cancros hereditários (que representam menos de 5% da totalidade dos cancros), existem outras famílias com uma elevada concentração de neoplasias malignas (calcula-se que representem cerca de 10% dos cancros)...”, escreve Sobrinho Simões no ensaio Cancro. Há o mito de que a susceptibilidade genética pesa imenso na equação. Todavia, os factores hereditários podem representar apenas 5 a 10%.
MSS — As situações de cancro familiar em que conhecemos o gene que aumenta o risco de cancro são aquelas onde progredimos mais — porque temos uma causalidade. São 5 a 10%. São 10% na mama. São 10% no cólon e recto. Menos do que isso no estômago. Não sabemos muito bem o que é que se passa com a próstata nem com o pulmão. No pulmão, o peso do tabaco é muito maior. Os 5 ou 10% não são um valor independente das condições ambientais. Estes 5 ou 10% não são verdade em África.

Porquê?
MSS — Em África são mais porque as pessoas não vivem o tempo suficiente para ter a influência dos meios ambientais que nós temos na Europa ocidental, em que vivemos até aos 80 ou 90 anos. Como em África as pessoas morrem mais cedo, a percentagem das que morrem de cancro é maior por susceptibilidade genética.

Contrariando esta expressão estatística, achamos que, se na nossa família não há casos de cancro, a probabilidade de escaparmos ilesos é maior.
MSS — Na minha família nunca tinha havido cancro. Tínhamos acidentes vasculares cerebrais, tínhamos diabetes. E eu, que trabalhava em cancro, nunca tinha percebido esta ameaça vital para mim e para as pessoas de quem gostava até o meu pai morrer de cancro.

Percebeu quando a ameaça ficou próxima. Deixou de ser uma abstracção.
MSS — Estamos a entrar numa coisa que permeia todo este universo: o das expectativas e dos medos que distorcem a realidade. Até essa altura não tinha percebido o risco porque a minha família não tinha tradição de ter cancro.

O vosso discurso, a vossa interrogação, a vossa acção, mesmo enquanto cientistas, está afectada pelo facto de terem amigos ou familiares que têm cancro. Há uma dimensão afectiva que percorre toda a conversa e eclode como um fantasma. Porque são pessoas de quem gostamos. Porque somos nós que podemos morrer de cancro. Muda tudo.
MdS — Completamente. O cientista tem uma responsabilidade social. E tem uma responsabilidade ética. No que respeita ao conhecimento e à ignorância, temos uma responsabilidade acrescida.
MSS — O cancro que eu estudo é um cancro que praticamente não mata ninguém, o cancro da tiróide.
MdS — Não mata ninguém se...
MSS — Temos sobrevidas melhores que 95% aos 30 anos. Numa fase da vida, interessei-me por cancro do estômago. Depois deixei. Havia gente muito melhor do que eu a fazer cancro do estômago. E apercebi-me, no cancro do estômago, que me sentia menos à vontade porque os doentes morriam. Voltei para a tiróide. No limite, se quiser fazer investigação successfully em cancro, devo escolher cancros muito mortais. Aí é que consigo ver se estou ou não a interferir na história natural. Mas na tiróide tenho muito menos má consciência. Só dou boas notícias, mesmo quando digo: “Tem uma neoplasia maligna, vamos tratar.”

Os recursos, a aposta na investigação é mais feita nuns do que noutros? E a atenção que damos a uns e a outros muda consoante a geografia?
MSS — A investigação em cancro da tiróide é menos recompensadora do ponto de vista económico porque é menos mortal. E há uma distorção da sociedade que valoriza sobretudo os cancros que aparecem no mundo ocidental. O cancro do pâncreas, o cancro do sistema nervoso central. Não valoriza o cancro do colo do útero que aparece em África. Isto é muito complexo porque a nossa forma de ver o cancro é marcada não só pela experiência pessoal, mas pelo lugar onde estamos inseridos.
MdS — A tiróide é a primeira grande contribuição de um investigador português chamado Manuel Sobrinho Simões, e as pessoas em geral não sabem isso. Não vai dar muito dinheiro à farmacêutica da quimioterapia. Agora pergunte o que é que aconteceu em Chernobyl.

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Célula de um tipo de cancro da tiróide onde se vê núcleo e nucléolo da célula maligna exuberantes e o citoplasma cheio de mitocôndrias (há um defeito no ADN mitocondrial e a célula maligna procura compensá-lo através do aumento do número das mitocôndrias cortesia manuel sobrinho simões

O Ipatimup, criado e dirigido por Sobrinho Simões, trabalhou anos com vítimas de Chernobyl.
MSS — Como o reactor rebentou e atirou com o iodo radioactivo para a atmosfera, o mesmo iodo radioactivo que em doses muito fortes trata as células malignas, e mata as células, em doses muito fraquinhas pode provocar cancro. E provocou. Sobretudo nos miúdos que bebiam muito leite. Somos um dos seis institutos do mundo escolhidos para estudar isto. Houve uma quantidade enorme de cancros da tiróide na Bielorrússia porque os ventos sopravam da Ucrânia para a Bielorrússia. Morreram cinco ou seis pessoas, apesar de haver centenas de novos casos. Tratámo-los. O ponto da Maria é que os tratámos porque tínhamos um conhecimento que o tornou possível.
MdS — Uma coisa que não é considerada importante por ministros da Economia.
MSS — Tem etiologia. Aqui tínhamos uma causa. Era o iodo radioactivo. No colo do útero, a causa é o HPV [Human Papilloma Virus] e há uma vacina.

O que se espera em relação ao do estômago é que se encontre uma vacina para a helicobacter pylori. O cancro do estômago é um dos que mais matam em Portugal, em ambos os sexos. Sustenta no seu ensaio que a elevadíssima incidência se deve a factores ambientais e não a factores genéticos.
MSS — Exactamente.
MdS — No da tiróide, sabe-se a causa mas não se sabe porque é que há uma tão grande variação entre os tecidos. “Porquê?”: começa-se agora a fazer esta pergunta. Como a minha perspectiva é de cientista portuguesa em Portugal, a minha preocupação nesta fase da vida, em que já não estou no laboratório, é fazer a pergunta. Será que Portugal pode contribuir com pessoas como o Sobrinho e como o instituto que criou, e como a gente nova que tem no seu instituto, para demonstrar, para provar o que está errado?
MSS — Isto leva muito tempo. E aumenta os potenciais doentes de cancro. Esse é que é o grande problema. Vamos continuar a aumentar a pool de pessoas que não morreram precocemente, que deixaram de morrer de enfarte e de acidente vascular cerebral, e que vão ter ou doenças neurodegenerativas ou cancro.

Maria de Sousa trouxe um recorte do New York Times de Janeiro de 2014. Basicamente, diz que todos vamos ter cancro num futuro próximo. É um susto, mas é qualquer coisa que temos de encarar.
MdS — Falei com uma pessoa que faz investigação em cancro. Ela acha importante que se diga que não há “o” cancro.

Não há cancro, há cancros. Ter um cancro no pâncreas ou um cancro na mama é diferente.
MSS — Muito diferente.
MdS — Mesmo no caso da mama, não há um cancro da mama. Os cancros, eles próprios, são diferentes. E os hospedeiros, no caso, as mulheres, também. O hospedeiro em quem o cancro vai aparecer é diferente. Depois, é importante ter uma segunda opinião.
MSS — Sou um adepto feroz.

Pratica-se muito em Portugal?
MdS — Não.

Por razões culturais? Porque isso fere a susceptibilidade do médico?
MSS — É verdade. E os doentes têm vergonha de pedir. A segunda opinião não é especialmente para o cancro, é em tudo. É um grande problema na nossa sociedade: não estamos habituados a confrontar.
MdS — Isto tem que ver com a educação dos doentes. O conhecimento é a coisa mais importante. O doente português não deve temer ter uma segunda opinião.
MSS — Quero dizer que estou de acordo que não há só um cancro. Há muitos cancros. A palavra “cancro” é uma palavra infeliz.
MdS — Daí não gostar do caranguejo.
MSS — Se tivermos uma pessoa que tem um cancro da tiróide ou do testículo, em princípio, as coisas vão correr bem. Se tivermos um cancro do cérebro ou do pâncreas, em princípio, as coisas vão correr mal. Mesmo no pâncreas, há uma percentagem cada vez maior de casos que correm bem.

Portanto, não se pode dizer que se tem um cancro no pâncreas. É preciso perceber que tipo de cancro e a sua relação com o hospedeiro?
MSS — Tem de se dizer que tipo de cancro é e em que estadio foi apanhado. Estamos a ter casos de sucesso, por exemplo, quando os doentes fazem icterícias de repetição e não têm cálculos. O doente fica amarelo porque a bile não flui; em princípio, é uma calculose. Se tiver episódios de icterícia de repetição, sem ter cálculos, a probabilidade é que tenha uma neoplasia dos canais. Se for apanhado nessa fase, o cancro do pâncreas cura-se.

É fundamental a pessoa ter conhecimento e fazer uma vigilância sobre si própria e o seu estado de saúde. Que é que pode fazer, exactamente?
MSS — A primeira coisa é fazer prevenção. Não deve fumar, não deve engordar de mais, não deve beber de mais. Não se deve expor ao sol a horas más e muito tempo. É aquilo que sabemos que é de evitar. Deve estar vacinado. Se não estiver vacinado contra a hepatite B, se não estiver vacinado contra o HPV, tem mais probabilidade de ter infecções no fígado e colo do útero.

Vou abrir um parêntesis para falar de um assunto diferente. Esta moda — porque está a ser encarado assim — de não vacinar as crianças...
MdS — É criminoso.
MSS — Não vacinam as crianças porque há um risco, que é mínimo, mas que há, de terem doenças imunologicamente determinadas que são chatas. Esse risco é menor do que o risco que a pessoa tem de vir a ter a doença. Sobretudo, se interrompemos as vacinações, interrompemos uma conquista da sociedade. É como os partos em casa ou na água. Agora há uma gente que gosta de ir para o ribeiro ter as crianças! “Uma coisa muito natural.” Um discurso totalmente disparatado, pré-científico, criminoso para os próprios e para a sociedade.
MdS — É assustador! É incompreensível.
MSS — O custo para a sociedade de ter um miúdo que tem uma paralisia cerebral porque teve um parto em más condições não é só para os pais e para a criança. Todos nós pagamos aquilo.

Falávamos da vigilância e da importância do rastreio. O cancro tornou-se cada vez mais visível e assumido. Basta pensar que não há muito se dizia que uma pessoa tinha morrido de doença prolongada. Não se nomeava o cancro. Por outro lado, e apesar de ouvirmos, cada vez mais, notícias sobre o cancro, alimentamos secretamente a esperança de que aquilo não nos toque. E não nos vigiamos o suficiente. Como compreender estes dois discursos?
MdS — Tudo isso tem que ver com falta de educação. Falta de educação científica. As pessoas têm muito acesso à informação, mas falta-lhes formação. Se a pessoa valorizar os seus filhos, os seus amigos, tem a obrigação de tomar conta da sua vida. Vivo no Passeio das Virtudes [no Porto] e as árvores sabem quando é que é Primavera, quando é que é Inverno. Faça chuva ou faça sol, não vão a sítio nenhum, mas a verdade é que vão estar cá e muito mais tempo do que nós. Nós, se queremos estar cá, temos de ter cuidado. E aquilo onde há verdadeiro progresso é na prevenção. Temos de estar atentos e vigilantes.
MSS — O problema não é só o cancro. O problema é a hipertensão, os AVC.

As doenças cardiovasculares são as que mais matam em Portugal. As cancerosas vêm a seguir. E estas custam menos ao SNS do que as primeiras.
MSS — Temos muita dificuldade, como sociedade, em incorporar o risco. Temos dificuldade, eu também tenho. A percepção do risco, e até que ponto a percepção do risco nos leva a mudar comportamentos, é muito mais frequente nos povos do Norte da Europa do que nos povos mediterrânicos. O que tem que ver com falta de cultura científica e de literacia, mas também com religião.

Como é que a religião se intromete nisto?
MSS — Há uma ideia de que “cá se fazem, cá se pagam” nos protestantes. Nós temos a ideia de que Deus nos protege e, se nos arrependermos, aquilo “zera”. Há uma responsabilidade pessoal e social nos protestantes que é mais to the point. A minha avó dava-nos um garrafão de água de Fátima benzida que tínhamos na casa de banho, debaixo do lavatório. Sempre que havia feridas, a minha mãe limpava com água de Fátima [riso]. A minha mãe é uma mulher muito inteligente e o meu pai era médico e cientista.

Ainda bem que conta isso. Tem-se a ideia de que essa crença é sinónimo de ignorância e que pessoas ilustradas não praticam rituais como esse.
MSS — É cultural. Mas quem faz isso não tem o mesmo cuidado em não fumar, porque acha que, se tiver de correr para torto, corre, se não tiver, Deus protege. Temos uma extrema responsabilidade nos nossos comportamentos e não fomos treinados a assumi-la. De qualquer forma, o sistema pode começar a ser muito punitivo. Há uma culpabilização que é indecente porque há aqui um elemento de sorte.

Como é nos países nórdicos, com que continua a colaborar depois de ter feito lá o pós-doutoramento?
MSS — Na Noruega, tenho vindo a observar uma coisa horrível. Os noruegueses ficam furiosos com os imigrantes porque são gordos. São gordos e gastam mais ao Serviço Nacional de Saúde do que com os próprios noruegueses. Começa a haver umas vozes a dizer que se devem pesar os imigrantes quando chegam. E medir-lhes o perímetro abdominal.
MdS — Isso é legal?
MSS — Não há leis, mas está a acontecer.

Essa é uma punição da sociedade. Existe também uma punição diferente dessa, quando a pessoa se interroga: “Porquê eu?”, querendo formular diferentes perplexidades e culpas. Porque é que fui eu que tive este azar? O que é que eu fiz para merecer isto?
MdS — O why me é muito comum.
MSS — É verdade. Mas não é só em relação ao cancro, é em relação a qualquer doença grave, degenerativa. No Brasil, não se falava em lepra. “Lepra? Aqui não se fala lepra, é hanseníase.” É a doença de Hansen, que foi quem a descreveu. Temos o preconceito de que algumas doenças são… Mas mais do que a punição, há a sensação de a pessoa se sentir fragilizada.
Atenção, sendo um especialista de cancro, eu tenho um pavor de ter cancro. Tenho medo. Sei que a maioria deles são controláveis, mas também sei que há 30 ou 40% que não são. E se tiver a pouca sorte de ter um desses…

Ainda o artigo do New York Times: porque é que parece que todos vamos acabar por ter cancro?
MSS — Agora é um em três. Daqui a 30 anos, nos países mais desenvolvidos, por exemplo nos Estados Unidos, nos anglo-saxónicos, é um em dois.

“Nós, habitantes da União Europeia e da América do Norte, em 2030, viveremos uma situação caracterizada por uma incidência de cancro muito alta numa população muito envelhecida, a que se juntará uma elevada taxa de doenças degenerativas do sistema nervoso central”, escreve em O Cancro. Noutra passagem do ensaio, faz o paralelo com as pestes na Idade Média, a tuberculose nos séculos XVIII e XIX, as doenças cardiovasculares no século XX. O cancro deve ser olhado como a epidemia que nos ataca a todos no século XXI?
MSS — Mas não nos vai matar. Isso é que é muito importante que as pessoas percebam. Nos sítios onde já está entre um para três, um para dois, já se está a morrer menos de cancro. Apesar de a incidência estar a aumentar, a prevenção, o diagnóstico precoce e os tratamentos têm melhorado. É horrível dizer isto, mas estamos a morrer de infecções.

Infecções?
MSS — Estamos com um problema grave de aumento da tuberculose por toda a Europa. Em parte porque as terapêuticas criaram resistências, em parte porque deixou de haver os dispensários. Em parte porque economicamente há gente muito mais pobre do que havia e fluxos migratórios que antigamente não havia. Estamos a ter Alzheimer e muitos cancros, mas as populações idosas, ricas, dos Estados Unidos não estão a morrer de Alzheimer — que não mata ninguém directamente —, nem estão a morrer de cancro, porque têm cancros pequeninos e controlados. Estão a morrer de infecções respiratórias, insuficiências cardíacas, insuficiências sistémicas, infecções urinárias. Por falência do sistema. E voltamos à imunidade. O cancro vai ser muito, muito frequente. Toda a gente vai ter. Mas vai morrer de outras coisas.

Temos de aprender a ter menos medo? Temos de o prevenir para que ele seja detectado mais cedo e controlado mais cedo?
MSS — Nos adultos jovens e adultos, sim. E a partir dos 80 anos, devemos ter atenção mínima, mas não estarmos chateados porque vamos ter.

Vai ser uma doença crónica como outras, com a qual vamos ter de viver controladamente?
MSS — Exactamente. Como a diabetes. E vamos ter de evitar fazer sobrediagnóstico.

Vigilância, sim, hipervigilância, não.
MSS — Acontece que sob a palavra “cancro” se acobertam realidades muito distintas. A vigilância tem de ser inteligente, não pode levar de uma forma acéfala aos passos seguintes. É a diferença entre a Coreia do Sul e o Japão, que têm a mesma incidência de cancro da tiróide. A Coreia do Sul foi para a ideia de que sempre que se vê um nodulozinho se deve enfiar uma agulha, demonstrar que é cancro e fazer sobretratamento. O Japão decidiu o contrário. Sempre que se vê um nódulo que tem menos de um centímetro, não se faz coisíssima nenhuma. Faz-se vigilância todos os anos para ver se aquilo cresce ou não cresce. Nesta altura, na Coreia do Sul, o cancro da tiróide é o mais frequente de todos os cancros da mulher. Em Portugal, é o quinto.

Os resultados, no final, são os mesmos? Têm a mesma taxa de mortalidade?
MSS — Ninguém morre daquilo. E os japoneses gastam muitíssimo menos dinheiro e não têm a chatice de as senhoras viverem com o pavor do cancro da tiróide.
Isto é verdade para a próstata, no homem, é verdade para a mama na mulher. A mulher tem imensos microcancros que não se devem tratar. Se começarmos a tratar, damos cabo.
MdS — É muito importante a variação de órgão para órgão, é uma coisa que só agora começam a valorizar.
MSS — Isto não invalida que quando uma pessoa de 39 anos aparece com cancro da tiróide grande, a crescer, tenha de ser tratado mesmo como um cancro. A mesma coisa com a próstata aos 56 ou 60. Ou com a mama aos 45.
MdS — Veja a importância que está a ter esta conversa. Se as pessoas não percebem que podem ter um cancro da tiróide — as da Coreia do Sul —, e que não faz mal nenhum... A educação do doente, insisto eu, é extraordinariamente importante. E a educação do médico pelo doente, que é uma coisa que não passa pela cabeça de ninguém, ou passa pela cabeça de muito poucos em Portugal.

O que quer dizer com isso?
MdS — A educação em geral, a educação do doente em particular e a segunda opinião são importantíssimas. As pessoas têm medo de morrer. Se ouvem que têm um cancro na tiróide, querem ser tratadas e não precisam de ser tratadas.
Volto à tiróide porque quero falar de esperança: se houvesse um cancro, e se fosse um caranguejo, ninguém com um tumor na tiróide se safava. Como o Manuel disse, a tiróide não interessa a ninguém porque não morre muita gente. Eu digo que a tiróide devia interessar a toda a gente porque qualquer coisa acontece para que o tal caranguejo não cresça. Vamos lá situar o prof. Sobrinho Simões. Qual é a sua tese de doutoramento? Fez quantas autópsias?
MSS — Umas 500.
MdS — O doutoramento dele, que não servia para nada, porque o cancro da tiróide não tem importância nenhuma, fez um estudo que permitiu encontrar cancros na tiróide em 500 autópsias. Este trabalho nunca seria financiado, mas é o trabalho que o leva a ser convidado para ir para a Noruega, vão ter com ele quando Chernobyl acontece.
E novamente falamos de as perguntas estarem muito condicionadas pelo investimento que é feito, pela expectativa de resultados. Se se aponta numa direcção, é para aí que se vai, o caminho está tracejado.
MdS — Claro que há esperança, mas o que é preciso é ter coragem de fazer perguntas diferentes. E de fazer coisas diferentes que não vão ser financiadas. Numa sociedade educada cientificamente, tem de haver liberdade e espaço para que miúdos — como este foi — façam coisas que parecem perfeitamente inúteis. A história diz-nos que nada é inútil desde que seja bem feito.

As palavras têm um peso. A palavra “tumor”, a palavra “cancro”…
MdS — É assustadora.
Por isso é tão importante falar de cancros. Dessa maneira, as pessoas percebem que o significado pode ser outro.
MSS — Há muitos movimentos para estes microcancros não serem chamados “cancros” e serem chamados “IDLE, indolent lesions of epithelial origin”. Há aquele ditado: “O diabo trabalha com idle fingers.” Indolentes. Isto tem consequências até do ponto de vista dos seguros. Uma senhora que tem diagnóstico de um microcancro não tem o mesmo acesso a condições boas de seguro de quem não tem esse diagnóstico.

Em termos práticos, o que é que as pessoas devem fazer todos os anos a partir de uma certa idade? No caso das mulheres, mamografia?, papanicolau?
MSS — Não é necessariamente todos os anos, varia. Depende das idades, depende do risco que têm, em função de uma análise prévia. Uma colonoscopia pode ser de cinco em cinco anos ou de dois em dois anos, consoante os resultados da colonoscopia anterior e da história familiar.
MdS — Mas deve fazer-se a partir dos 50 anos regularmente.
MSS — A mamografia continua a ser indiscutível. O que se discute na mamografia é a idade em que se começa.

E se é todos os anos ou de dois em dois anos?
MSS — Exactamente. De novo a história familiar é muito importante. E bom senso. Mais importante que ter regras é, por exemplo, a pessoa ter modificações do seu trânsito intestinal ou ter um sinal da pele que mudou, e vigiar. Estamos a safar-nos razoavelmente no cólon, na mama e no colo do útero.

E estômago, há alguma maneira de fazer rastreio?
MSS — Não. Nem estômago nem sistema nervoso central, pâncreas, fígado, pulmão. Nem fazendo todos os anos um raio-x pulmonar. Pode-se fazer raio-x todos os anos, mas aumenta imenso a radiação da pessoa e tem muitos órgãos que vão ser submetidos. E sabemos que quando um raio-x banal encontra um nódulo do pulmão, ele, infelizmente, já ultrapassou a fase em que podia ser removido sem problemas. A sensibilidade da radiologia actual não é suficiente. Agora passou a fazer-se uma TAC espiral, que é muito mais eficiente. O problema da TAC espiral é que aumenta ainda mais a radiação. Em termos de custo/benefício é muito complicado.

Falando de um assunto tão sensível e complexo, podemos deixar duas linhas-âncora aos leitores? 
MdS — O que saiu desta conversa é que a prevenção é muito importante e que ter um tumor não é uma sentença.
MSS — A maior parte das vezes não é. E cada vez vai ser menos. A incidência de cancro aumentou exponencialmente nos Estados Unidos e a mortalidade está a diminuir. As taxas de mortalidade já estão abaixo dos 40%.
MdS — É muito importante as pessoas sentirem isso. Porque as pessoas não estão preparadas para morrer. Olhemos para uma célula: com tanta e tão estranhamente bela organização, como pode uma célula vir a crescer de tal modo que toma conta de um homem inteiro? É de facto uma estranha doença. Tem de haver uma forma de surdez de quem a alberga para não perceber o perigo que representa. É compreensível que se pense que acordar o sistema imunológico vai ajudar, mas o sistema imunológico evoluiu para se defender do perigo que vem de fora. E um tumor tão parecido, tão igual ao hospedeiro só raramente será reconhecido como perigo pelo sistema imunológico. E lembro Garcia d’ Orta, que cito em Meu Dito, Meu Escrito: “O que sabemos é a mais pequena parte do que não se sabe.”