O dia em que se construiu o novo muro de Berlim: refundar a Europa com urgência
As últimas semanas colocaram a realidade europeia num patamar de violência onde nunca tinha estado.
A verdade é que a União Europeia e o projeto europeu foram alvo de uma usurpação. Depois da redução das instituições comunitárias a instâncias compulsivamente medíocres, a Europa está hoje sob um processo intenso de destruição da política como forma de escolha coletiva, de vingança, de minagem de um projeto civilizacional europeu dotado de visão comum e estratégia positiva, de esvaziamento das noções elementares de democracia, da tentativa de redução a zero da toda a deliberação democrática que contenha controvérsia e alternativas. Predomina o conflito.
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A verdade é que a União Europeia e o projeto europeu foram alvo de uma usurpação. Depois da redução das instituições comunitárias a instâncias compulsivamente medíocres, a Europa está hoje sob um processo intenso de destruição da política como forma de escolha coletiva, de vingança, de minagem de um projeto civilizacional europeu dotado de visão comum e estratégia positiva, de esvaziamento das noções elementares de democracia, da tentativa de redução a zero da toda a deliberação democrática que contenha controvérsia e alternativas. Predomina o conflito.
O projeto europeu foi derrotado, tomado de assalto, e não dispõe de condições saudáveis sem que antes haja uma profunda e radical reformulação, para a qual nos faltam utópicos e práticos como Altiero Spinelli ou Robert Schuman. É de uma agenda de refundação democrática da Europa que precisamos. Para isso, falta-nos um projeto político e os atores políticos que ainda não temos. Precisamos de quem, nos governos e nos parlamentos, fale dessa refundação e lhe estabeleça os termos. Por mais clara que seja a preferência que tenhamos por um certo cenário, precisamos de dizer que todos os cenários estão em cima da mesa. As últimas semanas, com a humilhação da Grécia e o ataque vil ao sistema político-partidário e à democracia grega, colocaram a realidade europeia num patamar de violência onde nunca tinha estado. Não pode ser Schäuble o único a ter liberdade para criar arbitrariamente os cenários que bem lhe convêm. O sinal mais duro da fraqueza europeia é que hoje, fora do diretório alemão, todas as tradições políticas, incluindo a social democrata, desistiram de ser agente de iniciativa política, interpretando a Europa de uma forma tão limitada e tão irrelevante que se contentam com o papel de polidor de esquinas da obra alemã.
O primeiro ponto de uma agenda de refundação europeia é a dissidência clara e ousada relativamente à atual trajetória destrutiva e ao poder antidemocrático instituído pelo governo da Alemanha e pelos diretórios que foi formando. O segundo é declarar sem hesitação que se denuncia o papel e a violência cínica que esse governo está a impor à mesma Europa que recuperou o seu país das cinzas geradas pela fogueira que ele próprio tinha ateado. Não é preciso lembrar nada — ou será preciso lembrar tudo? — sobre a dívida alemã do pós guerra, que se prolongou por várias décadas. E é preciso dizer-se que é contra tudo isto que uma base de refundação pode ser encontrada. Sim, é de uma posição negativa que tem de se partir, tal a situação a que chegámos. O terceiro ponto da agenda de dissidência é ganhar uma noção muito rigorosa do que constitui a proposta de governação económica europeia, em que alguns veem agora a solução.
Sobre este último aspeto, vale a pena dizer que, se a UE quisesse ter uma governação económica capaz, já há muito teria pelo menos um orçamento comunitário digno desse nome, que não se limitasse à magra proporção de 1% do seu PIB. Um orçamento que, depois dos alargamentos e da política de coesão que conseguiu desenvolver noutras fases, constituísse uma base suficiente para estabelecer políticas de desenvolvimento interno, incentivar transferências de capacidades produtivas e difundir os níveis de qualificação que permitem encarar a convergência real de todos os seus espaços, incluindo as periferias que a convergência nominal encerrou numa lógica infernal de fragilização, dependência pelo crédito e sujeição a financiadores.
Mas tal como em Portugal se põem as pessoas a discutir coisas que deviam ser importantes sob eufemismos enganadores, também na Europa gente responsável usa o mesmo estratagema. Por cá, já sabemos o que está por detrás do termo “reformas estruturais” — ele apenas quer dizer desvalorização salarial, desproteção jurídica e social e desmantelamento do Estado Social, com criação de mercados em todos os aspetos das nossas vidas. Pois na Europa o eufemismo “governação económica” quer dizer mais ou menos a mesma coisa, acrescido de estrito liberalismo orçamental, de forte proteção dos sistemas bancários e de irrelevância das políticas fiscais equitativas.
Governação económica, neste contexto, quer dizer tudo o que o “six-pack” e o Tratado Orçamental já deixaram claro que são: vigilância apertada por maus polícias; obrigação de saldos orçamentais que impeçam a ação pública, liberalizem e criem mercados para tudo; anemia da economia em nome da moeda e da banca, pois já se sabe que não é possível criar bem-estar nem crescimento em tais circunstâncias. Com elas só é possível uma estagnação longa para todos, com exceção dos que vivam à custa de todos os outros. Sim, com exceção de alguns, pois, por exemplo, o banco público alemão — sublinho público, porque (hélas!) as regras não são para todos — que iria gerir o fundo de privatizações gregas não estaria estagnado...
A refundação europeia é necessária e é urgente, pois é num espaço de interdependências que a ambição progressista dos povos melhor se pode realizar. Mas tem de ser democrática e política. E terá de servir para uma economia política de criação de emprego, de assunção comum das dívidas, de uma política fiscal equitativa, assente em imposto progressivos. Este é o outro lado, o exato avesso, da governação económica de que se começa a falar. E não depende de encontrar uma folga na posição alemã. Depende de uma voz, de muitas vozes, que reponham a Europa no sítio de onde ela não pode sair: o da grande mobilização dos povos e das democracias.
Entretanto temos questões urgentes. Temos sim. Assim como temos questões que dependem de nós e pelas quais podemos desde já fazer alguma coisa para além de formularmos as nossas grandes ambições políticas. São questões cruciais como a da reestruturação das dívidas, que tem de estar no lugar cimeiro de todos os debates. Ou a questão “elementar” de recuperar os juros pagos ao Eurosistema. Ou garantir um orçamento suficiente e não recessivo, em que se valorize o trabalho, o emprego e a proteção social e em que não se desfaça mais um sistema produtivo demasiado fragilizado. Mas é claro que num ambiente europeu que consiste em responder às veleidades de qualquer alternativa com mais e mais austeridade, cada vez mais cega e cada vez mais punitiva, há que ter hoje na mão outros caminhos. Pode não ser já a grande ambição da refundação democrática europeia, mas tem de ser, pelo menos, saber quem, fora do ditame do governo alemão, está em condições de tomar em mãos o que é essencial para reconstituir a Europa. Um Euro da Europa do Sul? Um Euro sem a Alemanha? Um Euro de um bloco que inclua quem definhará nas atuais condições? Um Euro de três ou quatro grandes democracias que tenham um projeto de solidariedade e uma visão comuns com alguns mais? Poderá ser qualquer destas coisas. Terá de ser alguma delas e alguma deveria estar preparada pois nem sequer num ambiente de negociação estamos. É por isso preciso um ambiente de portas abertas e tensões bem definidas. O que não podemos é ficar incapazes de responder à chantagem...
Professor da Universidade de Coimbra. Cabeça de lista da candidatura LIVRE/TEMPO DE AVANÇAR por Coimbra