Uma ferida longe de sarar
A difícil tarefa de ler Harper Lee depois de Mataram a Cotovia, num livro que traz o cinismo ao discurso político sobre a igualdade racial. Go Set a Watchman, ou um documento para entender um percurso
Um “esforço muito decente” de uma principiante. Foi mais ou menos assim que Harper Lee se referiu a Go Set a Watchman, o manuscrito que permaneceu escondido durante décadas e que terá precedido o sucesso de Mataram a Cotovia, até agora o único romance publicado pela escritora natural do Alabama e que se tornou um clássico da literatura norte-americana, de leitura obrigatória no oitavo ano do ensino.
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Um “esforço muito decente” de uma principiante. Foi mais ou menos assim que Harper Lee se referiu a Go Set a Watchman, o manuscrito que permaneceu escondido durante décadas e que terá precedido o sucesso de Mataram a Cotovia, até agora o único romance publicado pela escritora natural do Alabama e que se tornou um clássico da literatura norte-americana, de leitura obrigatória no oitavo ano do ensino.
Publicado em 1960, Mataram a Cotovia (Relógio d’Água) contava a história de Atticus Finch, um advogado de uma pequena povoação do sul dos Estados Unidos que defendeu um negro em tribunal, acusado de violar uma rapariga branca. A história é narrada na primeira pessoa por Scout, alcunha de Jean Louise Finch, uma maria-rapaz de seis anos, filha de Atticus, irmã de Jem e amiga de Dill, o rapaz da cidade que vem para passar férias e seria inspirado em Truman Capote, o escritor que foi um dos grandes amigos de Lee.
O romance fez um percurso invulgar. Aplaudido pela crítica, venceu o Pulizer, seria adaptado ao cinema por Robert Mulligan num filme que se estreou em 1962 e protagonizado por Gregory Peck no papel de Atticus. Contra tudo o que seria previsível neste processo vertiginoso da vida de um livro, Harper Lee escolheu retirar-se. Desde 1964 que não dá entrevistas e deixou Nova Iorque para voltar a Monroeville, a sua terra natal que inspirou a Maycomb literária, cenário onde decorre a acção de Mataram a Cotovia e, soube-se agora, também de Go Set a Watchman. O manuscrito original foi encontrado justamente em Monroeville, em Agosto do ano passado, no meio de papéis velhos da escritora e depois da morte da sua irmã, uma advogada que sempre preservou a privacidade de Lee. Era um segredo bem guardado da escritora, agora com 89 anos, quase cega, incapaz de ouvir, que decidiu manter o silêncio num momento em que voltou a ser a grande protagonista do mundo editorial e a bater recordes de vendas, numa acção de marketing habilmente traçada pelos seus editores desde o anúncio de que havia outro livro além de Mataram a Cotovia. Na primeira semana em livraria, Got Set a Watchman vendeu 1,1 milhões de exemplares na América. Nunca um livro vendeu tanto em tão pouco tempo num só país.
Muito se tem escrito sobre a capacidade de Harper Lee para decidir acerca da publicação de um livro que escolheu manter guardado durante décadas. Os editores apressaram-se a dizer que nada teria sido feito sem a autorização da escritora e revelaram as suas reacções perante a descoberta do documento. Lee concordara em publicar mas não iria fazer nada pela promoção de um romance que, sempre disse, fora uma espécie de ensaio para Mataram a Cotovia. Em 1957, o agente de Harper Lee, então funcionária de uma companhia de aviação em Nova Iorque que escrevia nas horas vagas, mostrou o manuscrito a um editor que sugeriu que ela se focasse nos flashbacks de uma história que começava com o regresso de uma rapariga de 26 anos à sua terra em meados da década de cinquenta e ao confronto com atitudes de racismo e segregação. Nesse livro, a protagonista, Jean Louise Finch, recuperava memórias de infância em que o pai era visto como um herói num universo que funcionava como exemplar – para o bem e para o mal – da vida no sul dos Estados Unidos no período pós-Grande Depressão. Atticus, a quem chamaram “a consciência moral da América”, não foi, afinal, senão uma evolução literária de alguém que nasceu literariamente comprometido com o preconceito. Essa é uma das principais conclusões que se retira da leitura do romance que antecedeu Mataram a Cotovia.
É aqui que estamos em Go Set a Watchman, no futuro de um livro que durante 55 anos foi tido como o único de uma escritora. O título replica uma frase do Livro de Isaíase, para quem leu Mataram a Cotovia, fica difícil imaginar que as vidas de Atticus, Scout ou Calpurnia – a velha empregada negra que criou Scout e o irmão Jem – tivessem começado ali enquanto personagens de ficção. Parecem ser figuras envelhecidas sem muita da densidade que possuem no livro que seria aclamado como um hino anti-racista numa América pré-Kennedy e pré-Martin Luther King que foi a de 1960, quando Mataram a Cotovia foi publicado. Difícil é também pensar que, embora num tempo cronologicamente posterior, Go Set a Watchman tenha precedido Mataram a Cotovia, a não ser por uma razão irrefutável: Mataram a Cotovia é um livro literariamente superior e se foi preciso escrever antes Go Set a Watchman para lá chegar isso é revelador de um tremendo trabalho de Lee e não se estranha a frase que ela repetiu tantas vezes para justificar o abandono da escrita: “disse ali tudo o que tinha para dizer”.
No livro-ensaio, o destaque fixa-se na retórica e menos na acção. Ao chegar a casa, a jovem adulta Jean Louise confronta-se com a desilusão de encontrar o pai a sofrer de artrite e com um discurso muitas vezes próximo de um movimento pró Ku Klux Klan. O centro do romance joga-se na argumentação: a do pai a explicar a sua posição e a esbarrar numa frase onde considera que os negros do sul estão na infância da sua condição enquanto povo e a de Jean Louise, a refutá-la, tornando-se secundária a história de um possível casamento entre ela e Henry Clinton, o advogado, amigo de infância, que a tia Alexandra classifica de white-trash, ou seja, pouco recomendável para casar com a sobrinha.
Estamos a um nível de argumentação que, à luz dos tempos actuais, parece ingénuo e é talvez aqui que reside uma das falhas da edição actual, nos Estados Unidos e nos países de língua inglesa onde o livro foi publicado: a de não fazer qualquer referência nem trazer uma nota explicativa acerca das circunstâncias em que o romance surge. Enquanto novidade literária, o livro é frágil; enquanto matéria para entender um percurso pode ser precioso. Em ambos, Lee não sai beliscada.
Percebe-se quando o editor, na década de cinquenta aconselhou Lee a focar-se nos flashbacks. É nessas descrições que está muita da força e encanto deste Go Set a Watchman, bem como nas descrições da paisagem, de Maycomb. O sul é o território de Lee e este livro confirma a ligação incorruptível entre a escritora e as suas raízes. Outro aspecto – e já se escreveu sobre ele neste muito curto percurso de vida pública de Go Set a Watchman, é o do tempo em que o livro surge. Se Mataram a Cotovia simbolizava a esperança do fim da segregação racial, de um tempo de mudança que teve na década de 60 o seu epicentro, este Go Set a Watchman traz um cinismo antigo num momento em que a tensão racial ressurge no que parece uma ferida longe de sarar.