O detective no seu labirinto
Um actor em estado de graça chega e sobra para recomendar uma variação sóbria sobre as aventuras de Sherlock Holmes
Ponto prévio à atenção dos fãs de Sherlock Holmes: embora aqui se trate de uma aventura inteiramente ficcional, escrita em 2005 pelo romancista Mitch Cullin, Mr. Holmes dá cinco a zero à recente reinvenção da personagem às mãos de Guy Ritchie. Não que Robert Downey Jr. e Jude Law não encarnassem bem Holmes e Watson – acontece apenas que o realizador Bill Condon (Dreamgirls, O Quinto Poder), trabalhando a partir de uma adaptação do romance de Cullin, mostra um respeito pela personagem e pelo seu universo que recusa quaisquer tentativas de modernização ou rejuvenescimento espúrias. Bem pelo contrário: esta adenda inteligente e melancólica ao corpus audiovisual Holmesiano concebe um detective idoso, nonagenário, solitário após a morte de todos os seus entes queridos, frágil e adoentado, sob os traços de um dos maiores actores vivos, o britânico Ian McKellen.
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Ponto prévio à atenção dos fãs de Sherlock Holmes: embora aqui se trate de uma aventura inteiramente ficcional, escrita em 2005 pelo romancista Mitch Cullin, Mr. Holmes dá cinco a zero à recente reinvenção da personagem às mãos de Guy Ritchie. Não que Robert Downey Jr. e Jude Law não encarnassem bem Holmes e Watson – acontece apenas que o realizador Bill Condon (Dreamgirls, O Quinto Poder), trabalhando a partir de uma adaptação do romance de Cullin, mostra um respeito pela personagem e pelo seu universo que recusa quaisquer tentativas de modernização ou rejuvenescimento espúrias. Bem pelo contrário: esta adenda inteligente e melancólica ao corpus audiovisual Holmesiano concebe um detective idoso, nonagenário, solitário após a morte de todos os seus entes queridos, frágil e adoentado, sob os traços de um dos maiores actores vivos, o britânico Ian McKellen.
Reunido com Condon quase duas décadas após o filme que colocou o realizador no mapa, Deuses e Monstros (1998), McKellen cria não um mas três Holmes, um para cada um das três “épocas” entre as quais o filme alterna, em diferentes estádios de envelhecimento. O grosso do filme decorre em 1947, depois da II Guerra Mundial, com um Holmes ciente da degeneração cada vez mais rápida das suas capacidades intelectuais e sobretudo da sua memória, procurando reconstruir o quebra-cabeças que o atormenta: recordar o porquê da sua reforma 30 anos antes e da sua retirada para uma pacata aldeiazinha costeira. Mas – e aqui reside a inspiração maior do guião – o próprio Holmes nunca pode dizer ao certo o que é verdadeiramente recordação e o que pode não passar de projecção de uma memória com buracos. Para alguém para quem “a ficção nunca teve interesse” e “só os factos contam”, a incapacidade de alcançar ou recordar os factos coloca em causa a sua própria identidade – e se Holmes é uma personagem de ficção que para muitos admiradores ao longo das décadas se tornou tão ou mais real do que a realidade, a figura criada por McKellen e Condon resigna-se a que essa imagem se tenha tornado na sua identidade pública, e questiona-se se a sua fuga não terá tido como único objectivo escapar-lhe.
O que daqui resulta é um inteligente, mas nunca abstracto, jogo meta-ficcional que não exclui o espectador e o convida a juntar-se à “investigação” que Holmes realiza ao seu próprio passado, partindo da mão-cheia de pistas que lhe estão à frente. Formalmente, Mr. Holmes está longe de ser grandemente inspirado – ilustrando de maneira discreta e sóbria mas sem especial personalidade um guião inteligente, mesmo que recorrendo a fórmulas convencionais - mas tem um senhor actor em grande forma, e a sabedoria necessária para o deixar respirar, brilhar, construir uma personagem. Mesmo uma actriz de peso como Laura Linney, aqui quase irreconhecível num papel ingrato, desaparece perante a delicadeza com que McKellen cria o seu Holmes vergado pelo peso dos anos. Só isso chega para abolir as reservas em recomendar Mr. Holmes.