Este álbum de desenhos é uma viagem e uma declaração de inocência
Feito em Itália, enviado para Lisboa, viajou com a família real para o Rio de Janeiro e acabou nas mãos de um editor inglês. Está há mais de 100 anos numa biblioteca de Paris. O Álbum Weale é o testemunho de uma fabulosa encomenda e a maneira que um embaixador encontrou de defender a sua honra.
É para provar que os seus gastos com as encomendas se justificavam que Pereira de Sampaio manda reunir desenhos e dados contabilísticos no volume que hoje se conhece como Álbum Weale, cujos conteúdos estão, em parte, agora e pela primeira vez expostos no Museu de São Roque, em Lisboa. É através deste volume que acaba de ser editado pela Santa Casa da Misericórdia, que também custeou o seu restauro, que se pode ficar a conhecer em detalhe algumas das obras de arte, sobretudo as de ourivesaria religiosa, que faziam parte do tesouro da Patriarcal e que, na sua maioria, desapareceram no terramoto de 1755, que destruiu por completo o paço junto ao Tejo. Oitenta por cento do álbum, com 101 desenhos e muitas notas técnicas sobre as peças, estão, no entanto, consagrados à capela que o rei manda fazer para São Roque, hoje uma das igrejas mais importantes de Lisboa e à época a casa-mãe da Companhia de Jesus em Portugal, e que só chega a conhecer através da pequena maquete que chega de Roma (morre antes de estar instalada).
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É para provar que os seus gastos com as encomendas se justificavam que Pereira de Sampaio manda reunir desenhos e dados contabilísticos no volume que hoje se conhece como Álbum Weale, cujos conteúdos estão, em parte, agora e pela primeira vez expostos no Museu de São Roque, em Lisboa. É através deste volume que acaba de ser editado pela Santa Casa da Misericórdia, que também custeou o seu restauro, que se pode ficar a conhecer em detalhe algumas das obras de arte, sobretudo as de ourivesaria religiosa, que faziam parte do tesouro da Patriarcal e que, na sua maioria, desapareceram no terramoto de 1755, que destruiu por completo o paço junto ao Tejo. Oitenta por cento do álbum, com 101 desenhos e muitas notas técnicas sobre as peças, estão, no entanto, consagrados à capela que o rei manda fazer para São Roque, hoje uma das igrejas mais importantes de Lisboa e à época a casa-mãe da Companhia de Jesus em Portugal, e que só chega a conhecer através da pequena maquete que chega de Roma (morre antes de estar instalada).
“Este álbum é a mais importante das fontes iconográficas para conhecer o universo das encomendas artísticas joaninas de meados da década de 1740 para a Basílica Patriarcal e para a capela, mas é também a maneira de um homem se declarar inocente das acusações que lhe fazem, de salvar a sua honra”, diz Teresa Leonor Vale, comissária da exposição De Roma para Lisboa: um álbum para o rei magnânimo. Este “homem singular”, “que foge à norma”, é o último embaixador de D. João V em Roma.
A exposição que o Museu de São Roque mostra até 25 de Outubro é mais uma fase do extenso projecto que envolve, desde 2007, o estudo e o restauro da Capela de São João Baptista, e que já deu origem a outra exposição (A Encomenda Prodigiosa, no Museu Nacional de Arte Antiga e em São Roque, em 2013) e ao lançamento deste “exercício de contabilidade ilustrada” que é o Álbum Weale (co-editado pela Scribe), aguardando-se ainda um programa de conferências e o lançamento de uma monografia com textos de historiadores e restauradores portugueses e estrangeiros sobre este pequeno mas exuberante templo feito a pedido de D. João V.
Coordenada por Teresa Leonor Vale, também professora de História de Arte da Faculdade de Letras de Lisboa e investigadora do ARTIS-Instituto de História da Arte, a monografia que está já concluída e deverá ser lançada até ao final de Outubro inclui ensaios sobre o contexto da encomenda e a arquitectura da capela (António Filipe Pimentel), sobre a pintura e os mosaicos (Carlo Stefano Salerno), a escultura e a ourivesaria (a própria Teresa Leonor Vale) ou sobre os têxteis das centenas de vestes litúrgicas que formam, segundo os especialistas, um conjunto único no mundo, quer em quantidade e coerência, quer em qualidade e estado de conservação (Magda Tassinari).
Em trânsito
Reunido por Pereira de Sampaio, o Álbum Weale viaja muito desde que foi feito, em meados da década de 1740, com o contributo dos inúmeros artistas que em Roma trabalhavam para a corte portuguesa. Que se saiba, foi depois enviado para Lisboa, de onde terá saído há mais de 200 anos, quando as invasões napoleónicas obrigaram a corte portuguesa a trocar a cidade pelo Rio de Janeiro, levando consigo centenas de livros que pertenciam à riquíssima biblioteca real. O álbum deve hoje o seu nome ao editor inglês John Weale, a quem pertenceu no século XIX e que manda fazer a encadernação que o volume composto por 160 folhas numeradas de 1 a 319 ainda mantém. Não se sabe como terá saído das mãos de Weale nem como foi parar às do arquitecto francês que o doa à Escola Superior de Belas-Artes de Paris, a cuja biblioteca pertence desde 1889.
“Através deste álbum, das encomendas para a Patriarcal e para a Capela de São João Baptista, podemos comprovar facilmente que D. João V quer mesmo copiar a corte papal, tem essa ambição. E é uma ambição que não é a de um homem vaidoso, mas a de um homem de Estado, que percebe que, se forçar essa comparação, essa relação directa, está a fazer muito pela posição de Portugal entre os reinos católicos mais poderosos da Europa do seu tempo”, diz Vale. “É uma ambição estratégica, de grande visão. E todas estas encomendas são instrumentos de diplomacia muito eficazes”, acrescenta a comissária, que também coordena a edição da Santa Casa e da Scribe, acreditando que o volume poderá levar outros historiadores portugueses e estrangeiros a interessarem-se pelo estudo de todo este património.
Além dos desenhos do Álbum Weale, que puderam ser destacados da encadernação porque os trabalhos de restauro o exigiam, a exposição mostra cartas e outros manuscritos, como o da encomenda das grades do baptistério da Patriarcal, e também peças dos mesmos artistas italianos que trabalham para D. João V. Teresa Leonor Vale explica que preferiu não ter junto aos desenhos as peças a que se referem – no caso do tesouro da Capela de São João Baptista grande parte das obras fazem parte da exposição permanente do mesmo Museu de São Roque – porque a relação lhe parecia “demasiado óbvia”. “Achei mais interessante mostrar peças do mesmo universo, que estão dispersas por outras instituições e colecções privadas”, diz a investigadora. “As do tesouro da capela estão sempre acessíveis e assim damos ao visitante mais um pretexto para passear pelo resto do museu.”
No percurso da exposição há ainda um retrato de D. João V atribuído a Pierre-Antoine Quillard, o modelo em terracota do monumento fúnebre de Pereira de Sampaio, que seria concebido por Filippo della Vale para a Igreja de Santo António dos Portugueses, em Roma, um relevo em mármore representando a sagrada família que pertence ao Palácio Nacional de Sintra ou um Ecce Homo (Roma, 1773) em micromosaico, de Alessandro Cocchi, que fala directamente aos da capela joanina, cujo projecto é de Nicola Salvi e Luigi Vanvitelli, arquitectos que trabalham para o Papa, com contributos do alemão João Frederico Ludovice, arquitecto e ourives do rei português.
Um homem culto
Manuel Pereira de Sampaio (1691-1750) não é, ao contrário da maioria dos embaixadores, um aristocrata. D. João V nomeia-o quando o seu antecessor, Fonseca Évora, deixa o cargo para se tornar bispo do Porto. Não se sabe ao certo, reconhece a comissária, como Pereira de Sampaio chega a Roma nem ao cargo de representante do rei na corte papal. Sabe-se apenas que foi governador da Igreja de Santo António dos Portugueses e que os meios culturais romanos lhe eram familiares.
“Ele conhece muito bem Roma e movimenta-se muito bem no seu meio social, muito cosmopolita e com muitos artistas”, explica Teresa Leonor Vale. “Pereira de Sampaio encarna perfeitamente o que o rei quer do seu embaixador na cidade: um homem culto, com grande traquejo social e de grande eficácia diplomática. É preciso não esquecer que é ele que consegue para D. João V o título de ‘fidelíssimo’, algo que o rei ambicionava muito, já que o espanhol era o ‘católico’ e o francês o ‘cristianíssimo’.”
A historiadora de arte lembra que D. João V estava consciente de que, ao escolher Pereira de Sampaio, muitas seriam as vozes discordantes na corte, efeito que deveria agradar-lhe particularmente. Além disso, acrescenta, o rei, ele próprio “viciado em trabalho”, estava sobretudo preocupado em arranjar um diplomata competente, capaz de fazer valer a sua vontade em Roma, vendendo o reino como o império que, de facto, era. Para isso contribuía até a colecção que Pereira de Sampaio ia reunindo em nome próprio, que conciliava a arte italiana – “o que de melhor faziam os artistas romanos contemporâneos” – com a do Oriente, lembrando sempre até onde chegava Portugal.
“Ele é um homem muito inteligente, cheio de recursos, que vive num dos palácios privados mais importantes de Roma, o Colonna, numa sumptuosidade extraordinária”, diz a historiadora de arte: “O Papa visita-o no Colonna, onde tem muitas vezes artistas entre os seus convidados. Não há muitos embaixadores assim.”
A sua competência, os elogios que perante o rei lhe faz o Papa Bento XIV e a proximidade entre Pereira de Sampaio e o padre jesuíta e astrónomo João Baptista Carbone, secretário pessoal de D. João V, podem ajudar a explicar a permanência do embaixador em Roma, mesmo depois de ter sido acusado de despesismo por alguns sectores da corte. “Todas as obras de arte da Patriarcal e da capela a ele se devem. É uma peça fundamental na estratégia que D. João V monta em Roma para afirmar Portugal como uma grande potência católica. Pereira de Sampaio foi muito hábil e mesmo quando estava sob pressão: o rei queria tudo perfeito, para ontem e ao melhor preço.”
É como embaixador de Portugal em Roma que Manuel Pereira de Sampaio morre (provavelmente com um ataque de asma), em Fevereiro de 1750, quando estava no porto de Civitavecchia a acompanhar a expedição para Lisboa de algumas das obras de arte que o Álbum Weale documenta. Não gostava de deixar nada ao acaso, muito menos quando se tratava da fabulosa encomenda de D. João V.