Amy Winehouse, o fantasma de Camden

De um lado a cantora vibrante, do outro as reabilitações. No documentário Amy, que estreia esta 5ª feira, dia em que se cumprem quatro anos sobre a sua morte, sente-se que era necessário que ela parasse, mas não foi isso que aconteceu. O fantasma ainda paira em Camden, bairro de Londres.

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Foi em 2005, depois do álbum de estreia, Frank, em 2003, e antes de Back To Black, de 2006, que Amy se transferiu para aquele bairro do norte de Londres, reduto de boémia, com tradições na história do rock. Foi aí que conheceu o futuro marido, Blake Fielder-Civil, e mudou física e emocionalmente, entrando numa espiral destrutiva que culminaria com a sua morte, aos 27 anos, por intoxicação alcoólica, no Nº 30 da Camden Square.

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Foi em 2005, depois do álbum de estreia, Frank, em 2003, e antes de Back To Black, de 2006, que Amy se transferiu para aquele bairro do norte de Londres, reduto de boémia, com tradições na história do rock. Foi aí que conheceu o futuro marido, Blake Fielder-Civil, e mudou física e emocionalmente, entrando numa espiral destrutiva que culminaria com a sua morte, aos 27 anos, por intoxicação alcoólica, no Nº 30 da Camden Square.

Há três semanas estávamos em frente a essa casa. Haviam-nos dito que continuava a ser local de romaria para fãs e turistas. Mas quando ali chegámos, numa tarde solarenga de um dia de semana, não se vislumbrava vivalma no aburguesado quarteirão de casas vitorianas que ladeiam um parque ajardinado. Interrogámo-nos, inclusive, se estaríamos no endereço certo.

O único sinal de vida provinha do interior do parque onde Ivo Watts, 33 anos, praticava ioga, na relva, à sombra das árvores. “Continuam a ver-se por aqui fãs, mas quando deixam flores, mensagens ou inscrições, são por norma rapidamente retiradas pelas autoridades”, esclarece-nos quando metemos conversa.

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O nº30 da Camden Square. Foi em Camden que mudou física e emocionalmente, entrando numa espiral destrutiva que culminaria com a sua morte, aos 27 anos DR

“Em datas especiais – do seu nascimento ou morte – é diferente, aí sim aparecem em grupo a prestar-lhe tributo.” Vive ali há cerca de oito anos, cruzou-se algumas vezes com Amy, mas diz-nos que a namorada é que chegou a falar com ela.

Quando morreu, não ficaram surpresos. “De uma forma ou de outra todos sabíamos que essa possibilidade era real. Era uma presença habitual na nossa vida, de alguma forma era como se estivéssemos perto dela mesmo não estando. Víamo-la aqui, na TV, na internet. A minha namorada diz que é como se ela tivesse morrido nos nossos braços e eu percebo o que ela quer dizer.”

A câmara virada para nós
Nós também. A partir de determinada altura a sua vida parecia um livro aberto. Tinha dificuldade em encontrar o equilíbrio necessário entre a exposição pessoal e a exposição publica. É como se a sua morte fosse esperada. Em 2008, depois de a termos visto em Londres e no Rock In Rio de Lisboa, escrevíamos que parecia acossada e que poderia soçobrar no meio que a circundava. Era evidente que tinha problemas, mas o que a rodeava e a forma como se projectavam fantasias nela, de tragédia ou protecção, também era doentio.

Amy, o documentário de Asif Kapadia, acaba por reflectir estas cambiantes. É um filme sobre Winehouse, da infância à morte, com as letras confessionais das canções a servirem de fio condutor. Mas é também um filme que vira a câmara para nós, para a família, os seus amigos, o público, os jornalistas ou a indústria do entretenimento.

O realizador britânico e o produtor James Gay-Rees, conhecidos por um outro filme (Senna de 2010, sobre o piloto brasileiro de Fórmula 1, Ayrton Senna), têm dito qualquer coisa de semelhante, argumentando que a história trágica dela durou tempo suficiente para algo ser feito. “Mas as pessoas gostavam era da forma como os humoristas gozavam com ela ou de desejar secretamente que os seus concertos acabassem mal”, disse Asif Kapadia, em Maio, no festival de Cannes, na estreia mundial do documentário. “Nesse sentido [o filme] é também sobre o público, os jornalistas ou os promotores de concertos, enfim, todo esse universo que a rodeava.”

É um documento sobre a era comunicacional onde vivemos, com a internet a tornar omnipresente a vida das celebridades. Na época das fotos e vídeos por telemóvel o mínimo movimento tem repercussões. Marilyn Monroe teve imensos problemas pessoais, mas era mais fácil ocultá-los. Hoje seria mais difícil.

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Na primeira semana nas salas, no início do presente mês, Amy converteu-se no documentário inglês com mais bilhetes vendidos na primeira semana de exibição. Vídeos domésticos, elementos de arquivo ou instantâneos de entrevistas são os materiais que utiliza para completar um quadro íntimo de uma das vozes mais admiradas da última década. Durante quase três anos o realizador falou com mais de 100 pessoas e foi ganhando confiança no círculo de amizades dela, sendo-lhe disponibilizados fotos e muitos dos vídeos caseiros que suportam o filme.

A obra tem sido, genericamente, bem recebida. Mas não escapa a críticas.  Há um olhar reflexivo sobre o ambiente de aproveitamento que rodeava a cantora. Resta saber se ao mostrar imagens da intimidade da cantora ou do ex-marido, algumas delas degradantes, o filme não acaba por participar também na voragem voyeurística que pretende criticar.

“Esses temas não eram segredo, toda a gente sabia. É uma parte do trabalho que é triste e não existe nada de positivo nisso. Era importante mostrar que não há nada de glorificador nas drogas e no álcool”, tem-se defendido ele. “Tinha que ser o mais fiel possível nessa área.”

Parte da controvérsia que o documentário tem convocado prende-se com o facto do pai de Amy, Mitch Winehouse, não gostar da forma como é retratado, sendo apresentado como alguém ausente durante a infância, reaproximando-se da filha depois do sucesso e explorando a sua fama. Quando a cantora já tinha nítidos problemas de álcool e drogas, aos 23 anos, não terá feito tudo para a ajudar, insistindo para que não fosse internada numa clínica de reabilitação, quando se aprestava a partir para os EUA. Foi a partir desse episódio que ela compôs o êxito Rehab.

Numa outra cena polémica vêem-se imagens daquilo que deveriam ser férias em família e que o pai acaba por adulterar ao levar consigo uma equipa de TV que filma a cantora. Às tantas vê-se Amy a posar, contrafeita, com um casal de turistas e de seguida discute com o pai que a acusa de não ser prestável para com os fãs.

É verdade que o documentário parece responsabilizar o pai, o ex-marido ou o seu segundo promotor de concertos – que percebendo a sua fragilidade, continuou a marcar-lhe datas – mas deixemo-nos de simplismos. Em casos destes não há um único réu. Há todo um conjunto de circunstâncias que acabam por se misturar.

Por um lado acedemos à artista vibrante e criativa, mas também percebemos que a sua pior inimiga é ela própria. Do outro lado do espelho temos a atmosfera social colectiva, os êxtases, os abusos, as reabilitações. Ao longo do filme sente-se várias vezes que era necessário que ela parasse – e que o filme respirasse – mas nada disso sucede. Não havia tempo a perder. Até à morte.

Quanto mais ela se tornava popular, mais à sua volta se desejava que caísse. Adoramos glorificar, mas também gostamos de destinos traçados. Conforta-nos saber que, afinal, aqueles que idealizamos, são falíveis, tal como nós.

Casa espiritual
Em Camden Town, parece existir uma relação ambígua para com a sua memória. Sai-se da estação de metro, durante o dia, e de imediato entra-se num turbilhão de lojas, cafés e restaurantes, dirigidos a um público jovem e a turistas. Em redor, os conhecidos mercados do bairro, que têm para oferecer o mais diversificado leque de ofertas a preços económicos.  

À noite abunda o ambiente boémio, com pubs e salas de concertos, partilhados por britânicos e turistas, bebendo e rindo de forma ruidosa. Foi nesse clima que Amy mergulhou a meio dos anos 2000, quando a cena rock londrina dessa fase, que havia sido impulsionada pelos Libertines de Pete Doherty, conheceu o seu apogeu.

Nas zonas mais populares de Camden sente-se a sua presença. É uma constante nas ruas. Nas paredes existem graffitis alusivos a ela. Nas montras das lojas vêem-se discos. Nos penteados e nas roupas de quem passa vislumbra-se a sua influência. Fala-se com as pessoas na rua e nos cafés e percebe-se que todas elas guardam uma memória positiva dela – “ela era como qualquer um de nós” é das frases que mais se ouve.

O maior chamariz acaba por ser a estátua de bronze, do escultor Scott Eaton, situada no mercado Stables, inaugurada o ano passado. É aí que os turistas posam, riem, tiram fotos. Como a italiana Milena Pietro, 29 anos, que nos diz que sempre ouviu falar de Camden como uma “casa espiritual” de Amy e que por isso “não poderia deixar de estar ali, assumindo-se como grande admiradora da cantora. “Vi-a duas vezes em concerto e ficava de boca aberta pela forma autêntica como estava na vida, para além de notável cantora.”

Duas amigas americanas, Gabrielle Taylor e Theresa Hall, na casa dos trinta anos, naturais de São Francisco, também tiram fotos quando as abordamos. Não espanta. Apesar de ter um lado muito britânico, a verdade é que a sonoridade soul da música de Amy continha muitas influências americanas. Mas não advêm daí a adoração.

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O maior chamariz de Camden acaba por ser a estátua de bronze, do escultor Scott Eaton, situada no mercado Stables, inaugurada o ano passado DR

“Creio que é fácil identificarmo-nos com ela e com a sua música porque era alguém que se expunha muito, como se a sua fragilidade fosse a sua força”, afirma Gabrielle. Theresa faz alusão, mais uma vez, ao facto de termos a sensação que a conhecíamos. “Às tantas todos os dias havia uma foto ou vídeo sobre ela, era como se participássemos também na vida dela e isso aproximava-nos e deixava vir ao de cima um desejo protector.”

À medida que nos afastamos da zona mais popular de Camden, é como se a sua presença se desvanecesse. Percebe-se que na zona residencial onde vivia a relação dos habitantes com o seu culto é diferente. O actor Tiago Manaia que viveu dois anos perto da sua casa, já depois da morte, fala dela como o “fantasma de Camden.”

“Passava muitas vezes pela casa onde ela morreu e havia por vezes flores ou cartas, e as árvores e bancos de jardim tinham escrito o nome dela, mas essas coisas iam desaparecendo, como se tudo fosse feito num manto de silêncio. Nunca se via ninguém em frente à casa. Havia descrição. Ela era uma presença constante no bairro, mas perto da casa era uma presença fantasmática. Os fãs queriam fazer daquilo um lugar de culto, mas havia resistência para que isso sucedesse e limpavam tudo.”

Qualquer coisa de semelhante é transmitido pela segunda pessoa que fomos encontrar nas redondezas da casa. Trata-se de Elisabeth Glory, nos seus quarenta anos, que passeia um carinho de bebé. Quando percebe o assunto, mostra-se pouca receptiva, mas acaba por falar connosco por minutos, resumindo tudo numa frase.

“Sabe, as pessoas daqui preferem não ter que viver com essa memória e é por isso que todos esses sinais que vão sendo deixados – as flores, as inscrições nas árvores e nos bancos de jardim, vão sendo de imediato apagados.”

Uma parte de Camden celebra a sua memória. Outra parte tenta apagá-la. Nas declarações sobre o filme, o realizador Asif Kapadia tem falado disso: de uma Londres invisível, muito fechada sobre si própria, que possui uma relação dúplice com celebridades do tipo de Amy, como se o seu legado em vez de confortar, ainda provocasse.

Tiago Manaia evoca uma vizinha que era uma espécie de sósia. “Tinha o mesmo penteado que ela, a roupa e maquilhagem e eu, e os meus amigos, sempre que a encontrávamos, no metro ou café, comentávamos entre nós: ‘viste a Amy?’. Era divertido, e ao mesmo tempo estranho, porque falávamos de alguém que tinha morrido, como se estivesse viva. Como se fosse um fantasma.”

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Ao longo do filme sente-se várias vezes que era necessário que ela parasse – e que o filme respirasse – mas nada disso sucede. Não havia tempo a perder. Até à morte DR

Na maior parte das conversas sobressai essa ideia de que todos a conheciam. Como se fosse alguém lá de casa. Afinal, entrava-nos, quase todos os dias, pelos olhos adentro. E no entanto, claro, era uma ilusão. O documentário devolve-nos isso, mostrando-nos a Amy para lá dos vícios, das relações tóxicas com os homens (o pai e ex-marido) e das caricaturas maldosas dos media.

No filme encontramos também a sua vontade de viver, a energia, as facetas divertidas, a inteligência, o talento que lhe parece brotar de forma espontânea, os problemas na adolescência (bulimia e depressão), as amizades mais constantes ao longo da sua curta vida e a relação paradoxal com o seu grande amor: Blake Fielder-Civil.

Uma relação de aproximação, separação, prisão (real e simbólica), casamento e divórcio. Uma turbulência de altos e baixos. A partir de determinada altura, só baixos. Mas havia que fazer a catarse. E a verdade é que acabou por ser essa relação o alimento espiritual que a levou a gravar a maior parte das canções que hoje celebramos.

A 15 minutos da sua ex-casa, andando a pé, encontramos o pub The Hawley Arms, em conjunto com o Dublin Castle ou o Good Mixer, os locais que mais frequentava. Um dos donos, aparentando estar habituado à presença de jornalistas, diz-nos que ela vinha muitas vezes ao final da tarde, sentava-se, bebia um copo, confraternizava e depois saía. “Como qualquer pessoa.”

Não se vislumbram muitos traços dela. Sim, há algumas fotos, mas tudo muito discreto. “Acho muito bem que seja assim”, diz-nos Murilo Andros, um espanhol a viver há muito em Londres, cliente habitual, que por entre a música alta e o odor a cerveja, vai dizendo que “não faria sentido” que ali se aproveitassem do seu legado, “como acabou por fazer a sua família”.

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A 15 minutos da sua ex-casa, andando a pé, encontramos o pub The Hawley Arms – em conjunto com o Dublin Castle ou o Good Mixer, o local que mais frequentava DR

O seu tom crítico em relação à família diz ser partilhado pela larga maioria dos que ali vão. “Aqui toda a gente gostava verdadeiramente dela e isso basta-nos”, profere. Nas casas de banho, sim, a nostalgia manifesta-se, com mensagens escritas nas portas. “Amy, por favor não te drogues lá no céu”, ou “Amy, queremos-te muito”, são algumas delas.

Quando a noite cai em Camden fica-se com a sensação que o fantasma de Amy ainda paira por ali. Ou seja, a sua morte ainda não foi verdadeiramente ultrapassada. Quando partiu para a feitura do documentário, Asif Kapadia diz ter sentido que, entre as pessoas com quem falou, encontrou ainda muita culpa, zanga ou revolta.

Talvez o documentário ajude a pacificar, finalmente, a atmosfera à sua volta. Numa das derradeiras cenas do filme ela confessa a uma amiga de infância, pouco antes da sua morte, que trocaria tudo o que vivera até ali só para poder andar tranquilamente pelas ruas. Agora é tarde demais para ela. Mas nós, depois de vermos Amy, talvez ainda estejamos a tempo de aprender a gostar dela.