Em Sines, a guitarra a quem a trabalha (e a transforma)
Antes de a programação se entregar a verdadeiras maratonas de concertos, do fim da tarde às últimas horas da madrugada, Paolo Angeli assinou em Sines um belíssimo concerto manobrando uma guitarra que não é apenas uma guitarra.
“Afinal, não precisava de ter modificado a guitarra”, concluiu. E foi estudar flamenco, até chegar a um novo momento de crise ao perceber que era já demasiado tarde para enveredar a sério por essa via.
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“Afinal, não precisava de ter modificado a guitarra”, concluiu. E foi estudar flamenco, até chegar a um novo momento de crise ao perceber que era já demasiado tarde para enveredar a sério por essa via.
Voltou, portanto, à sua guitarra transformada. Felizmente – por muito que pudesse ter dado um óptimo intérprete de flamenco, há algo de mais desconcertante e hipnotizante nesta sua sonoridade única, demonstrada de forma lapidar na actuação no Centro de Artes de Sines, na noite de terça-feira, a última de programação reduzida do Festival Músicas do Mundo, antes de passar para o habitual palco do Castelo.
Manobrando a “guitarra” com diversas abordagens, as 18 cordas tão depressa soam à kora maliana como nos atiram para a música clássica chinesa, tanto nos fazem crer estarmos diante de um discípulo da folk inglesa de Martin Carthy como de um membro do agrupamento de música antiga Hespèrion XXI, de Jordi Savall, e desembocam ainda, repentinamente, numa canção que poderia ser de Tom Waits ajudado por Marc Ribot – e só não pode mesmo ser de Waits, porque Angeli canta como um marinheiro da Sardenha, largado no mar, num lamento que soa a coisa de homem atraído e traído pelo canto e pelo desamor de uma sereia.
Assistir a um concerto de Paolo Angeli é ser colocado a toda a hora numa posição de desencontro entre aquilo que se vê e aquilo que se ouve, dada a sistemática transformação da guitarra enquanto a toca, não apenas nos estilos musicais que se entrecruzam, mas nas várias famílias musicais evocadas – alturas há em que a “guitarra” soa, sem exagero e entregue a uma função percussiva, ao que poderiam ser as Adufeiras de Monsanto, quando o músico aplica um cartão bancário nas cordas e altera, com um rápido movimento, a morfologia da guitarra. O extraordinário, no entanto, não é que um Stabat Mater possa suceder a um tema popular corso, mas sim que toda esta exibição de virtuosismo nunca deixe de ser belíssima e essencialmente musical.
A festa está na rua
Com o cancelamento da actuação do violoncelista holandês Ernst Reijseger, devido a questões familiares urgentes, a noite do Centro de Artes ficaria penas por conta de Angeli, prolongando-se depois no exterior com o colectivo Simply Rockers Sound System a encenar, segunda e terça, uma sessão de música jamaicana em frente à entrada do Castelo de Sines.
Com uns graves tão levados ao limite que ameaçavam suspender qualquer desprevenida rasta no ar, a ementa passou a ser dub e reggae à moda da Jamaica (incluindo desvios por sons menos óbvios, como uma morna de Maria Alice), com o toaster (MC) de serviço cantando e largando as máximas habituais de “good vibrations”, “put on your dancin’ shoes”, “if you love marijuana say yeah” num esforçado sotaque de Kingston que toldava muitas vezes o discurso – é possível que tenha mencionado o presidente do Parlamento Europeu Martin Schulz, mas também é bastante possível que não.
Muita da animação no Festival Músicas do Mundo destes dias tem passado precisamente pela rua, com actuações diárias da Orquestra do Desastre, num formato de improvisação com músicos amadores trabalhado pelo francês François R. Cambuzat (do grupo L’Enfance Rouge), e com concertos espontâneos de um duo de guitarra e bateria chegado ao jazz ou de um grupo de swing manouche espanholado – este último capaz de rivalizar em público com a festa jamaicana oficial –, tudo irrompendo livremente e a qualquer hora nas imediações do Castelo.
Esta quarta-feira arrancam as maratonas de concertos, das 17h30 até às últimas horas da madrugada, mas a animação já anda claramente pelas ruas.