A falácia da felicidade
O Homem é capaz das melhores coisas que já aconteceram sobre este planeta. Mas o mesmo Homem também é capaz das piores coisas que já aconteceram sobre este planeta
Vivemos em plena ditadura da felicidade. As redes sociais são as principais apologistas desta linha de pensamento. Não é raro tropeçar numa qualquer frase desavorgonhadamente gamada que diz que uma dada pessoa é feliz todos os dias, sem reservas ou perturbações, mas com recurso a toda a auto-ajuda que existir numa livraria e a todos os cursos de coaching que o Gustavo Santos tiver para dar.
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Vivemos em plena ditadura da felicidade. As redes sociais são as principais apologistas desta linha de pensamento. Não é raro tropeçar numa qualquer frase desavorgonhadamente gamada que diz que uma dada pessoa é feliz todos os dias, sem reservas ou perturbações, mas com recurso a toda a auto-ajuda que existir numa livraria e a todos os cursos de coaching que o Gustavo Santos tiver para dar.
Os que advogam esta ideologia não compreendem que a estão a desvirtuar, ao mesmo tempo que a tornam opaca, obsoleta e – pior ainda – vazia. Quem fala constantemente de uma alegria perene e indestrutível de que diz padecer, assume publicamente que tapa o sol com todas as peneiras que encontra. A felicidade não é um modo de vida. Muitos dirão que este realismo é um pessimismo, mas é nele que acredito: a vida é sangue, fezes, sémen e lágrimas. Quem nos quiser convencer do contrário, das duas uma: ou nada conhece do mundo que habita ou tem todo o despudor em viver uma fantasia irreal.
A inquietação, essa, é uma virtude. Talvez a maior de todas. As dores fazem-nos bem e não deveriam ser renegadas. Porque incitam à acção, à consciencialização e à eliminação furiosa do marasmo. Por isso mesmo, os inquietos não são felizes. (E ainda bem!) Não há inquietação que autorize um estado de espírito alienado que se refugia numa alegria constante e cega. Uma alegria sem motivos, quase estupidificante: sou feliz e não quero saber de problemas, parecem dizer estes militantes; é uma ignorância voluntária, é um querer continuar nessa ignorância e glorificá-la. Ser feliz é uma terminologia moderna para ser ignorante e ter gosto nisso.
Atenção: isto não quer dizer que não há motivos para ter esperança nos humanos. Pelo contrário: existem cada vez mais razões para gostar da nossa espécie. O Homem é capaz das melhores coisas que já aconteceram sobre este planeta. Mas o mesmo Homem também é capaz das piores coisas que já aconteceram sobre este planeta – e enquanto isto acontecer, o trabalho não está terminado. Não podemos ser felizes enquanto não dominarmos os nossos maiores defeitos.
De uma maneira geral, falta filosofia nas cabeças humanas. Alain de Botton tem conselhos práticos e úteis para quem quer ser “feliz”. O melhor de todos é este: “pare de tentar ser feliz – é impossível”. Bingo. Mas há outros: “pense na morte: pense muito na morte, até porque já só lhe devem restar para aí 400.000 horas na Terra. Pare de ter esperança, espere que tudo lhe vai correr mal. Pare de tentar ser normal: toda a gente é estranha e não há mal nenhum nisso”. São sessenta segundos valiosos, que devem ser ditos, ouvidos e recitados como se de uma oração se tratassem.
Creio que as pessoas que falam sobre a felicidade do modo oco como tantas e tantas vezes vemos por aí têm um grave problema de vocabulário (ou de falta dele). Presumo que pretendam gritar ao mundo o bem-estar que lhes habita o ser. Ainda assim, se mantiverem o bem-estar de uma forma constante, temo bem que tenham uma gigantesca falta de empatia e compaixão pelo próximo. A Humanidade tem um longo caminho a trilhar. E os autoproclamados “felizes” estão a fechar-lhe a porta, estão a negar a sua própria essência. Enquanto houver problemas a resolver, ninguém tem autorização para estar feliz.