União Europeia: do Pártenon até à Máfia em 57 anos
O default é a única justificação moral possível para os juros altos. Se o default não é admissível, então os juros altos também não podem ser admissíveis.
Deixemos de lado, momentaneamente, a realidade em que se traduz esta “meritocracia” — que é, na realidade, uma oligarquia ferozmente protegida — e consideremos os seus princípios teóricos. Num sistema capitalista, as desigualdades são não só toleradas como consideradas um motor do progresso, pois demonstram como funciona o sistema de recompensas. O mantra capitalista diz que os melhores serão recompensados e os piores preteridos, prevendo alguns paliativos para casos extremos como deficiências congénitas ou acidentes incapacitantes.
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Deixemos de lado, momentaneamente, a realidade em que se traduz esta “meritocracia” — que é, na realidade, uma oligarquia ferozmente protegida — e consideremos os seus princípios teóricos. Num sistema capitalista, as desigualdades são não só toleradas como consideradas um motor do progresso, pois demonstram como funciona o sistema de recompensas. O mantra capitalista diz que os melhores serão recompensados e os piores preteridos, prevendo alguns paliativos para casos extremos como deficiências congénitas ou acidentes incapacitantes.
Quais são os méritos que merecem recompensas? Em teoria, todos, em qualquer área. Pode ser a habilidade a dar pontapés numa bola ou a jogar xadrez, o raciocínio abstracto ou o conhecimento da pintura maneirista, a capacidade negocial, a habilidade manual, o jeito para tratar de animais, a competência técnica para fazer sopa de legumes ou arranjos florais, a imaginação, a originalidade, a beleza física, a persistência, etc. — ainda que seja duvidoso que, prosseguindo o mesmo raciocínio moral, se possa atribuir maior “mérito” a pessoas que possuem determinadas qualidades naturais em detrimento de quem não as possua e que seja igualmente duvidoso que alguém que consegue obter melhores resultados numa qualquer área sem o mínimo esforço tenha maior “mérito” que quem se esforce afincadamente sem conseguir atingir as mesmas marcas.
Mas a narrativa propagandística do capitalismo, que vemos martelada constantemente no cinema e na televisão americana e não só, é esta: quem se esforça, quem persiste, quem inova, quem arrisca, quem investe, ganha e alcança o american dream. Quem não o faz, fica para trás.
Não é só o trabalho e a competência que justificam moralmente os ganhos no capitalismo. São principalmente a iniciativa e a assunção de risco. Os grandes ganhos, em particular, só são justificáveis se corresponderem a um risco assumido. São o prémio do risco. É lícito que alguém ganhe uma fortuna na Bolsa se investir num projecto de elevado risco, que pode fracassar. Pode-se ganhar muito porque se arrisca muito. Pode-se ganhar muito porque se pode perder tudo.
É essa a lógica de quem investe numa fábrica que vai produzir um produto inovador, que ninguém sabe ao certo se encontrará mercado. E é essa a lógica de quem empresta dinheiro a um país muito endivididado (um empréstimo é um investimento). O país endividado propõe-se pagar um juro alto porque tem um risco elevado associado. Há o perigo de não poder pagar. E quem compra os seus títulos de dívida aceita o risco porque pode ganhar muito se o devedor pagar tudo. Mas tem de aceitar o risco de perder tudo ou uma parte.
As pressões feitas pela troika e, principalmente, pela Comissão Europeia, pelo Eurogrupo e pelo Banco Central Europeu nos últimos anos, no caso da Grécia e de Portugal, significam que todos os que compraram dívida aceitam os juros altos com que vão ser premiados se forem reembolsados, mas não aceitam o risco inerente e querem forçosamente que os devedores paguem, seja como for, nem que seja preciso vender o Pártenon às pedrinhas. E é evidente que muitos dos bancos privados que compraram dívida grega com juro alto o fizeram porque sabiam que, chegado o momento da verdade, haveria uma cartada política que poderiam jogar para obrigar o devedor a pagar, fosse como fosse, ou que os títulos de dívida na sua mão seriam resgatados pelas “instituições”.
O que a negociata das dívidas soberanas mostra é a enorme hipocrisia dos credores, que compram barato (ou seja: emprestam com juros altos) com a justificação moral do risco que assumem, mas depois usam todos os meios ao seu alcance, lícitos ou ilícitos, para garantir o pagamento e para afastar totalmente a possibilidade de default.
A questão é que o default é a única justificação moral possível para os juros altos. Se o default não é admitido pelos credores, então os juros altos também não podem ser admissíveis. Até se pode admitir, em tese, que o default de um estado se torne impossível e que este seja obrigado a vender monumentos e entregar uma libra de carne todos os meses para pagar as dívidas até ao último cêntimo. Mas, se for assim, não há a mínima justificação para os juros altos. Se o default da Grécia não é permitido, então a Grécia deve poder contrair empréstimos com os juros negativos da Alemanha, porque o seu risco será, como o da Alemanha, virtualmente nulo.
Se os juros se mantêm altos e o default não é possível, como acontece agora, deixamos de estar no reino das finanças ou da política. Estamos no reino do racket, da chantagem, da extorsão, do crime organizado, da Mafia. O reino que a União Europeia agora representa.
Jornalista, jvmalheiros@gmail.com