Curdos voltam-se contra o Governo turco depois de atentado em Suruç
Atentado suicida atribuído ao Estado Islâmico matou 32 jovens curdos e pode forçar Ancara a rever a sua política isolacionista face ao conflito na Síria.
“Estado Islâmico assassino, AKP e Erdogan colaboradores”, cantou-se até que a polícia turca dispersou as manifestações com canhões de água e gás lacrimogéneo. Ainda durante a noite, combatentes das milícias curdas abriram fogo contra várias posições da polícia e exército por todo o país, mas sem causarem feridos.
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“Estado Islâmico assassino, AKP e Erdogan colaboradores”, cantou-se até que a polícia turca dispersou as manifestações com canhões de água e gás lacrimogéneo. Ainda durante a noite, combatentes das milícias curdas abriram fogo contra várias posições da polícia e exército por todo o país, mas sem causarem feridos.
Os protestos repetiram-se, esta terça-feira, nas palavras de ordem ouvidas nos funerais das vítimas do atentado de Suruç. Até ao momento, a explosão suicida matou 32 jovens curdos que estavam a caminho de Kobane, na Síria, para ajudarem com a reconstrução da cidade que as milícias curdas conquistaram em Janeiro ao Estado Islâmico. As duas últimas vítimas não resistiram nesta terça-feira aos ferimentos.
O atentado não foi reivindicado, mas ninguém na Turquia parece duvidar que tenha sido autoria do autoproclamado Estado Islâmico. A confirmar-se, será a primeira vez que o grupo jihadista ataca com severidade o território turco, que tem escapado ileso ao conflito na Síria. Mas a comunidade curda concentra as atenções no Governo, que acusa de não fazer o suficiente para os proteger.
Em Junho, quatro pessoas morreram numa explosão num comício do partido pró-curdo HDP, a apenas dois dias das eleições legislativas. Figen Yüksekdag, co-presidente do partido, disse que o Governo tem ignorado os apelos para maior protecção da comunidade e recusou-se a assinar uma declaração, em conjunto com o AKP, a condenar o atentado. “Quem colaborou com o Estado Islâmico é que deve fazer essa declaração”, argumentou.
A resposta coube nesta terça-feira a Ahmet Davutoglu, o primeiro-ministro turco. “A Turquia e os governos do AKP nunca tiveram quaisquer ligações directas ou indirectas com um grupo terrorista e nunca mostraram tolerância a nenhum."
Imobilidade turca em questão
As consequências do atentado em Suruç vão para além da instável relação entre o Governo turco do AKP e a minoria curda. A explosão em Suruç atinge directamente a estratégia do país para lidar com o conflito na Síria, o autoproclamado Estado Islâmico e, também, as reivindicações curdas de um Estado autónomo a Sul da fronteira.
“A estratégia de Erdogan de distanciar a Turquia do combate contra o Estado Islâmico poderá ser explicada, em parte, pela sua oposição ao nacionalismo curdo, e em parte pelo medo do terror jihadista”, escreve a Economist. “Qualquer que seja, não parece estar a funcionar.”
Davutoglu prometeu nesta terça-feira reforçar a segurança na fronteira com a Síria. Há meses que se suspeita que o Governo turco possa avançar para a imposição de uma zona militarizada no Norte da Síria como um território de protecção da fronteira – algo que entraria em conflito com vários territórios curdos no país vizinho. Mas, até ao momento, não parece que o Executivo esteja prestes a mudar a sua estratégia de distanciamento face à Síria.
A Turquia faz parte da coligação de países liderada pelos Estados Unidos para combater o Estado Islâmico, mas há muito que Ancara é acusada de imobilidade. A Turquia é desde o início do conflito o principal ponto de passagem para combatentes estrangeiros e abastecimento militar para os jihadistas na Síria. Apesar disso, só nas primeiras semanas deste mês é que a polícia turca lançou as primeiras operações de combate a centros de recrutamento e apoio a jihadistas estrangeiros no país – segundo jornais fieis ao AKP, esta é a razão do ataque em Suruç.
Na violenta batalha por Kobane, por exemplo, encabeçada pelas milícias curdas no terreno, o Executivo turco recusou inicialmente o acesso de reforços pela sua fronteira. Só o permitiu quando os Estados Unidos começaram a enviar armamento às milícias pelos ares.
De todas as acusações lançadas pelos curdos contra o Governo turco, a mais grave é a de que o AKP colabora com o Estado Islâmico para derrotar as ambições curdas de um Estado autónomo no norte da Síria. Uma acusação que o Governo recusa ostensivamente.
A realidade é que as milícias curdas na Síria, as YPG, são quem têm conseguido as maiores vitórias contra o Estado Islâmico no terreno. Ao cabo dessas conquistas, foram construídos governos provisórios e aprovada uma Constituição num território que se espalha ao longo da fronteira com a Turquia e que toca, a leste, o Curdistão iraquiano.
Em Junho, novo sinal de optimismo para a causa curda: o AKP de Erdogan, que prometeu nesse mês impedir “a qualquer preço” a formação de um Estado no Norte da Síria, perdeu a maioria no Parlamento. A sua derrota foi a vitória do partido secularista pró-curdo, o HDP, com ligações ao ilegalizado Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), na lista de grupos terroristas da ONU e EUA, e às próprias YPG.
Quando dezenas de combatentes do Estado Islâmico entraram em Junho em Kobane para se vingarem da derrota frente aos curdos e massacrarem centenas de civis, as YPG acusaram Erdogan de ter fechado os olhos. Uma das frentes desse ataque, aliás, começou na fronteira turca.