Investigações judiciais lançam o caos na política do Brasil
Presidente da Câmara de Deputados é envolvido no escândalo da Petrobras e anuncia ruptura política com o Governo. Dificuldades anunciadas para a Presidente Dilma Rousseff, que vê a sua base de apoio cada vez mais diminuída.
A justiça brasileira confirmou que foi aberta uma investigação formal para apurar se, depois de abandonar a presidência, em 2009, o homem forte do Partido dos Trabalhadores (PT) aproveitou as suas conexões políticas a nível internacional para, ilicitamente, beneficiar a Odebrecht, a maior empresa de construção do país e uma das maiores do mundo, com uma carteira de negócios que se estende até Portugal.
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A justiça brasileira confirmou que foi aberta uma investigação formal para apurar se, depois de abandonar a presidência, em 2009, o homem forte do Partido dos Trabalhadores (PT) aproveitou as suas conexões políticas a nível internacional para, ilicitamente, beneficiar a Odebrecht, a maior empresa de construção do país e uma das maiores do mundo, com uma carteira de negócios que se estende até Portugal.
Em menos de uma semana, as investigações da justiça brasileira à teia de corrupção em torno da Petrobras atingiram dois antigos Presidentes da República – o agora senador Fernando Collor de Mello também foi implicado – e o actual presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha, que alegadamente terá reclamado uma “propina” (suborno) de cinco milhões de dólares para viabilizar um contrato de navios-sonda da Petrobras. O poderoso chefe de fila do PMDB no Congresso nem esperou pela sua agendada declaração televisiva ao país (nesta sexta-feira à noite, 0h25 de sábado, em Portugal) para anunciar o rompimento da aliança com o Governo.
“A apuração de irregularidades na Petrobras varreu nesta semana três instituições para o tapete da Lava Jato. De uma só vez, Senado, Câmara [de Deputados] e Tribunal de Contas da União foram atingidos por novas suspeitas e acusações. O Judiciário virou alvo de investigados. Ministério Público e Polícia Federal preparam-se contra retaliações. O Governo teme que a ira do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, paralise o país politicamente e abra caminho para um pedido de destituição [da Presidente]”, resumia o jornal Folha de São Paulo, condensando o desenvolvimento da intriga nesta semana.
As consequências políticas dos acontecimentos dos últimos dias, quer para a Presidente Dilma Rousseff quer para o próprio sistema brasileiro, são imprevisíveis. Pelo menos doze legisladores do Senado e 22 da Câmara de Deputados (além de 12 ex-congressistas e uma ex-governadora), pertencentes a cinco partidos, foram já apanhados na rede da investigação Lava Jato: Collor de Mello foi um dos últimos a ser implicado, num depoimento do empreiteiro Ricardo Pessoa, que informou ter pago 20 milhões de reais em luvas para que o senador influenciasse negócios com uma subsidiária da Petrobras, a BR Distribuidora.
As notícias dizem que “centenas de outros políticos” poderão ser os próximos alvos. Segundo um levantamento feito pelo Estado de São Paulo, 199 deputados estaduais, 178 deputados federais, 16 senadores e 17 governadores têm os financiadores das suas campanhas eleitorais presos. A operação Politeia (o nome é uma alusão à “cidade perfeita” descrita na República de Platão, onde a ética se sobrepõe à corrupção), um novo ramo da investigação Lava Jato, deixou o Congresso à beira de um ataque de nervos. O ambiente é de perplexidade, receio e suspeição generalizada.
O Governo esteve reunido esta semana para delinear uma estratégia de resposta ao adensar da crise política. “Preparem-se que o pior ainda vem aí”, avisou o ex-Presidente Lula da Silva, que também participou no encontro. Nos relatos da imprensa brasileira, Lula referia-se aos efeitos de choque da mais do que previsível revolta de Eduardo Cunha contra a Presidente: nos bastidores de Brasília, já se discutia abertamente a agenda de retaliação do deputado - que passara de aliado a inimigo de Dilma - no retorno dos trabalhos parlamentares, depois de uma pausa de duas semanas.
Mas no mesmo dia em que Cunha era efectivamente denunciado como corrupto pelo consultor Julio Camargo, também Lula se via na circunstância de defender a honra, perante o anúncio do inquérito da Procuradoria de Brasília ao seu envolvimento com a Odebrecht, que poderá ter financiado cerca de uma centena de deslocações suas ao estrangeiro. O ex-Presidente não falou, mas o Instituto Lula deu conta da “surpresa” com a iniciativa, ao mesmo tempo que reafirmou “a certeza da legalidade e lisura" de todas as actividades do antigo chefe de Estado – que incluíram também uma conferência realizada em Portugal em Setembro de 2011, sob o patrocínio de uma outra empresa brasileira implicada no Petrolão, a Camargo Corrêa.
De acordo com documentação obtida pela revista Época, as averiguações da Procuradoria têm a ver com “supostas vantagens económicas obtidas, directa ou indirectamente, da Odebrecht pelo ex-Presidente Luis Inácio Lula da Silva, entre os anos de 2011 e 2014, com pretexto de influir em actos praticados por agentes públicos estrangeiros, notadamente os governos da República Dominicana e Cuba, este último contendo obras custeadas, directa ou indirectamente, pelo BNDES” (o Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social). Para a investigação, a procuradoria de Brasília solicitou o acesso às informações da Lava Jato, que é conduzida pelo juiz Sergio Moro, a partir do estado do Paraná.
O “campo minado” de Dilma
Enquanto isso, a sociedade civil mobilizava-se para um novo “panelaço” (nome dado à acção de protesto que consiste em bater em panelas) durante a declaração televisiva de Eduardo Cunha. A iniciativa é incomum mas não inédita: em 2011 e 2013, os anteriores líderes da Câmara dirigiram-se ao país, em mensagens natalícias. A “fala” de Cunha, que foi pré-gravada e produzida por um dos marqueteiros da campanha presidencial do social-democrata Aécio Neves, incidirá sobre as realizações do órgão legislativo desde o início do ano: em seis meses, a Câmara bateu o recorde de votações de projectos de lei e propostas de emendas constitucionais.
A Presidente Dilma Rousseff, que esperava aproveitar a pausa na actividade legislativa para recuperar um pouco de fôlego, depois de um primeiro semestre de Governo particularmente difícil (como atesta a taxa de aprovação do seu desempenho, que não chega aos 10%), vê, pelo contrário, a pressão, o confronto e o desgaste a aumentar. Até aqueles que não encontravam argumentos válidos ou legítimos para sustentar um pedido de impugnação da Presidente começam a manifestar dúvidas de que Dilma consiga chegar até ao fim do mandato – a sensação é de que tudo está em desagregação.
As opções para Dilma são cada vez mais limitadas, tal como a sua margem de manobra para escapar àquilo que o jornal El País descrevia como o “campo minado” em que se movimenta, com as denúncias explosivas do escândalo da Petrobras, as suspeitas de irregularidades nas contas públicas e os efeitos da crise económica. Além disso, a Presidente vive debaixo do “fogo cruzado” das ameaças de cisão no interior do seu Partido dos Trabalhadores e da rebelião aberta dos aliados no Congresso, que enfraquece a sua capacidade de defesa dos gritos de “impugnação! destituição! demissão!” com que a oposição reage a qualquer novo facto ou notícia.
O Palácio do Planalto já se estava a preparar para possíveis acções beligerantes no Congresso, como por exemplo a abertura de novas comissões parlamentares de inquérito de “potencial crítico”, com o objectivo de fragilizar a posição da Presidente. Mas, acossado, Cunha subiu a parada. “Essa lama, em que está envolvida a corrupção da Petrobras, cujos tesoureiros do PT estão presos, essa lama eu não vou aceitar estar junto dela”, declarou, para justificar o rompimento político com o Governo. O presidente da Câmara acusou o executivo de perseguição política – “o Governo sempre me viu como uma pedra no sapato” – mas garantiu que não deixaria de cumprir o seu papel constitucional e de dirigir os trabalhos legislativos. “Não há aqui nenhum gesto que possa dizer que acabou a governabilidade”, considerou.
Na agitação contra o Governo, Eduardo Cunha conta com a cumplicidade do seu correligionário de partido e presidente do Senado, Renan Calheiros, que também já viu o seu nome associado a irregularidades na Lava Jato. Os dois partilham a tese de que as denúncias são falsas e não passam de vendettas orquestradas pelo executivo, que estará a instrumentalizar a acção da Procuradoria-Geral da República. Além das denúncias de ter embolsado cinco milhões de dólares para influenciar o negócio de compra dos navios, que poderão dar origem a acusações por corrupção e lavagem de dinheiro, Cunha foi ainda incriminado pelo "doleiro" (termo que designa quem faz transferências de dinheiro para o estrangeiro sem as declaradar ao fisco) Alberto Youssef de tentativas de coacção e intimidação de testemunhas da Lava Jato.
“O que está ocorrendo no Congresso é um movimento articulado de sobrevivência dos presidentes das duas casas, de dezenas de deputados e senadores investigados e de centenas de outros que podem ser implicados na Lava Jato”, contextualiza o analista político do Estadão, José Roberto de Toledo. “Se a situação do Planalto já era duríssima, a operação Politeia tornou ainda mais frágeis as condições de governabilidade de Dilma Rousseff”, acrescenta o painel de comentadores da Folha: a capacidade de acção da bancada aliada ficou significativamente tolhida, comprometendo ainda mais a já conflituosa articulação política entre a presidência e o Congresso.
Apesar de falar na governabilidade, Eduardo Cunha defendeu a quebra de solidariedade institucional do PMDB – o maior partido no Congresso e exemplo maior do funcionamento “fisiológico” do sistema brasileiro – com o Governo. “Eu vou tentar que o meu partido vá para a oposição. E se o partido decidir que tem de sair, acho que tem que entregar os ministérios”, insistiu o deputado, que alguns jornalistas brasileiros já designam ironicamente por “líder do PSDB na Câmara” para assinalar a colagem dos sociais-democratas, maior partido de oposição, às derrotas políticas impostas por Cunha à presidência.
O vice-presidente Michel Temer (que é o presidente nacional do PMDB) veio depois pôr água na fervura, sublinhando que Cunha falava apenas em nome pessoal e não do partido, que se mantém firmemente na base aliada. Para Temer, o rebuliço provocado pelas denúncias da Lava Jato contra políticos do Congresso “atrapalha” o país e “abala a natural tranquilidade que sempre permeou a actividade do povo brasileiro”.