Ainda e sempre os Blur, mais do que nunca as Savages

Noite de euforias justificadas na segunda maratona de concertos no Super Bock Super Rock: os Blur continuam bem vivos, as Savages arrasaram com uma descarga de rock selvagem e Benjamin Clementine mostrou que podemos contar com ele para o futuro.

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Nas últimas semanas, circulou desenfreadamente a notícia de que Damon Albarn tivera de ser arrastado ao fim de cinco horas de actuação do projecto Africa Express no festival de Roskilde, na Dinamarca. Por muito que a sua entrega física e musical fosse outra, o vocalista dos Blur arrastou-se pelo palco o mais que pôde, de onde quase se tornou legítimo acalentar a esperança de que o mesmo pudesse vir a acontecer em Lisboa, enquanto cabeça de cartaz da segunda jornada do Super Bock Super Rock (SBSR). Não aconteceu.

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Nas últimas semanas, circulou desenfreadamente a notícia de que Damon Albarn tivera de ser arrastado ao fim de cinco horas de actuação do projecto Africa Express no festival de Roskilde, na Dinamarca. Por muito que a sua entrega física e musical fosse outra, o vocalista dos Blur arrastou-se pelo palco o mais que pôde, de onde quase se tornou legítimo acalentar a esperança de que o mesmo pudesse vir a acontecer em Lisboa, enquanto cabeça de cartaz da segunda jornada do Super Bock Super Rock (SBSR). Não aconteceu.

De igual forma, qualquer ser que se tivesse dado ao escasso trabalho de consultar os alinhamentos de concertos dos Blur perceberia que nos últimos meses as alterações têm sido mínimas, podendo prever-se quase a 100% quais os temas a ser tocados e por que ordem. De onde a ideia de que cada concerto é único e irrepetível, essa doce ilusão em que o público se deixa embalar voluntariamente, parecia esmagada por uma verdade muito clara. No entanto, sendo certo que os Blur começaram por Go Out, There’s No Other Way e Lonesome Street, e terminado com Girls & Boys, For Tomorrow e The Universal, numa imaculada sequência daquela que tem sido a sua prática de palco recente, a banda que subiu ao palco do Meo Arena na noite de sexta-feira não parecia fustigada pela repetição das mesmas canções pela enésima vez e, arriscaríamos dizer, mostrou-se até mais vital do que em 2013, no Primavera Sound.

Se, na altura, o reencontro com os Blur foi em grande parte uma questão emocional, em 2015 os Blur que vemos em palco, ainda que partilhando muito do reportório, usam as canções novas de Magic Whip como combustível naturalmente mais inflamável para visitar o passado. Claro que o mesmo momento em que Damon Albarn puxa o público a si para enfatizar as palavras finais de Coffee + TV (“we could start over again”) não provoca hoje o mesmo sorriso cúmplice de quem acreditava há dois anos estar a ouvir a confissão de que o regresso aos álbuns poderia de facto estar a caminho.

Mas essa busca por sinais de sobrevivência saudável encontra agora suficientes indícios na forma como os músicos pisam o palco, partilhando visivelmente uma boa-disposição e uma entrega entusiasmada onde chegou a haver pouco mais do que rancor e ressentimento; na maneira como Albarn chama por um elemento do público para participar em “Parklife” e acaba a fugir do rapaz em palco enquanto este o persegue tentando desesperadamente dar a sua contribuição para o tema; ou no evidente bom momento artístico em que encontramos em Albarn e Graham Coxon dois intérpretes particularmente inspirados (um talvez nunca tenha cantado tão bem, o outro nem sempre foi tão certeiro a gerir as micro explosões de guitarra rufia no ambiente de canções de ambição pop).

Do cardápio fazem ainda parte Out of Time, End of a Century, Tender, Song 2, To the End ou This Is a Low, temas que exigem tanto das cordas vocais do público (que Albarn convoca repetidamente) quanto do próprio, já a dar mostras de algum cansaço na voz ao fim dos 18 temas da primeira passagem pelo palco. Em encore, e a terminar uma fortíssima actuação, Stereotypes havia de se juntar aos já referidos três temas finais, com o vocalista a aproveitar a menção da Grécia (esse destino veraneante de celebração sexual para os adolescentes britânicos nos anos 1990) nos versos de Girls & Boys para um piscar de olho ao país.

O presente é das Savages
Apesar da absoluta consistência do trajecto dos Blur, sem passos em falso nem verdadeiros pontos baixos em disco (em palco, a entrada de Simon Tong para o lugar de Coxon seria uma outra história), não é possível, ainda assim, afastar a ideia de que em 1997, quando actuaram na primeira edição do Festival Sudoeste, estaríamos mais próximos da época óptima para ver a banda inglesa ao vivo. Essa sensação que se tem actualmente diante de um concerto das Savages. E que é uma sensação que se diria entrar em curto-circuito, uma vez que a sonoridade do quarteto parece cuspida do início dos anos 1980, filiada num pós-punk que remete em permanência para a contemporaneidade dos Birthday Party e de Siouxsie and the Banshees. Mas a urgência das canções cruas comandadas por Jehnny Beth só podem pertencer ao presente, por muito que abocanhem esse passado.

Tendo, curiosamente, actuado no mesmo ano do que os Blur no Primavera Sound, essa ocasião seria lembrada por Beth para agradecer ao público do Porto – “fucking awesome”, chamou-lhe – o facto de a ter comovido a ponto de perceber que Fuckers era não apenas uma canção de raiva mas igualmente uma canção de amor. Tal entrega desmesurada, aliás, em que a raiva e o amor se podem equivaler, conduz à tensão contínua e selvagem em que se sucedem os temas do grupo, numa tensão magnificamente gerida pela bateria açoitada por Fay Milton com uma inventividade incomum e que só a voz de Jehnny Beth consegue rasgar.

Com as canções de Silence Yourself (arrasadoras passagens por Shut Up, I Am Here ou Hit Me) a desfilarem no palco EDP (debaixo da pala do antigo Pavilhão de Portugal) lado a lado com uma generosa série de novas composições, ficou claro que apesar do primeiro contacto com temas como Slowin’ Down the World nada aponta para uma desaceleração no mundo das Savages. Pelo contrário, o magnetismo soberbo de Beth continua a fazer-nos crer que, por sorte, encontramo-nos diante de uma cantora demoníaca com jeitos de torcionária (e não o contrário).

Um palco para Benjamin Clementine
Naquela que terá sido muito provavelmente a noite mais forte do SBSR, espaço ainda para a constatação de vários cultos em fases diversas de crescimento. No caso dos belgas dEUS, e apesar de um concerto basto de intensidade, com pontos altos em clássicos como Suds & Soda ou Instant Street – seria o caminho também de Fell Off the Floor, Man, caso o péssimo som não tivesse sabotado por completo um dos melhores temas do grupo –, cumpriram na entrega de provas factuais de que é ainda demasiado cedo para rubricar a sua certidão de óbito, embora seja também inequívoco que o seu rock angular já tem os grandes motivos de interesse bem lá atrás na recta temporal.

Surpreendente seria a recepção entusiástica de um Meo Arena, na altura a 1/3 da lotação, para receber os The Drums, essa banda de Brooklyn que certamente se apresentará com BI falso, não para consumir cerveja com a nova legislação mas para que possa atestar o seu nascimento em Inglaterra e, de preferência, nos anos 1990. Jonny Pierce fez-se sempre acompanhar dos dose seus fantasmas de estimação, Morrissey e Brett Anderson (Suede), e ficou mais uma vez claro que é o seu segundo álbum, o excelente Portamento, a garantir-lhes os melhores momentos. Money e esse belo refrão de canção de romantismo maltrapilho (“I wanna buy you something / but I don’t have any money”) continuam a ser uma pequena preciosidade de Pierce, na boa companhia de Book of Revelation e I Need a Doctor. Mas fica-se na dúvida se depois do esfriamento com Encyclopedia estaremos já a assistir a uma banda a preparar o seu caminho descendente.

Ao contrário, em Benjamin Clementine só há setas a indicar um caminho ascensional. De London London a Condolence, tudo neste homem é raro – a história solitária de um inglês emigrado para França para tocar nas ruas, a voz soberba que tem justificado repetidas comparações a Nina Simone, a forma como baloiça entre uma espécie de canção de câmara, uma entrega de cantor de blues/gospel, o piano de jazz pingado ou endiabrado a lembrar Fiona Apple e que encontram nele sempre uma exorcização de sofrimentos e pecados responsáveis por cada tema soar a um banho de humanismo. Está na hora de o conhecer num tête-à-tête, numa sala que exponha ainda mais as suas virtudes.

Pelo SBSR passaram ainda as canções trocadas e destrocadas entre Jorge Palma e Sérgio Godinho, numa bonita, simples e eficaz composição, ainda que prejudicada por estar rodeada de tanto rock em ponto de ebulição. Além do rock, no entanto, sexta-feira foi também dia para os White Haus de João Vieira mostrarem que podemos contar com eles para serem menos alemães do que os alemães – sim, o kraut está-lhes no sangue, mas talvez aqui sejam mais importantes as noites nova-iorquinas servidas por ESG, Arthur Russell ou até mesmo Lou Reed – e a maravilha de disco-funk-pop de Kindness, um contagiente concerto de celebração mas que, pobrezinho, acabaria triturado naquele palco, pouco depois, pela actuação demasiado pungente das Savages para que outras memórias se salvassem.

O Super Bock Super Rock termina neste sábado com actuações de Florence and the Machine, FFS (Franz Ferdinand & Sparks), Unknown Mortal Orchestra ou Banda do Mar.