Um centro do mundo (da arquitectura)
O Centro Canadiano de Arquitectura é, acima de tudo, um lugar de investigação. O seu lema é “a arquitectura como questão pública”, bem à imagem de Phyllis Lambert. Visita guiada a este lugar único, que faz a ligação da cultura francófona com a anglófona, mas está aberto a olhar o resto do mundo.
Mais do que um museu, um arquivo ou uma galeria de exposições – e sendo tudo isso –, “o CCA é um centro de investigação, que oferece a sua colecção para criar discursos sobre a arquitectura e o seu lugar na sociedade contemporânea”, diz ao Ípsilon o director do centro, o italiano Mirko Zardini.
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Mais do que um museu, um arquivo ou uma galeria de exposições – e sendo tudo isso –, “o CCA é um centro de investigação, que oferece a sua colecção para criar discursos sobre a arquitectura e o seu lugar na sociedade contemporânea”, diz ao Ípsilon o director do centro, o italiano Mirko Zardini.
Nessa sua vocação interdisciplinar, e por estes meses – desde Maio e até Outubro –, o CCA apresenta na sua galeria principal uma exposição dedicada ao Processo SAAL, A habitação em Portugal entre 1974 e 1976. Trata-se da mostra exportada pelo Museu de Serralves, comissariada por Delfim Sardo, e que foi trazida (e profusamente explicada) a Montréal por este curador e pelos arquitectos Nuno Portas e Nuno Grande.
A exposição, e o programa de actividades que a tem acompanhado, é uma lança da arquitectura portuguesa neste lugar distante, mas que é actualmente um dos centros mais importantes para a afirmação e a investigação nesta disciplina em todo o mundo. O ponta-de-lança – para usar um termo da gíria futebolística – foi, sem surpresa, Álvaro Siza, quando no ano passado anunciou que iria doar ao CCA parte do seu arquivo – um processo que está ainda em curso.
“Os arquivos de Siza permitem-nos pensar a arquitectura de forma diferente”, disse ao PÚBLICO Mirko Zardini, manifestando a satisfação do CCA por poder acrescentar os testemunhos da obra do arquitecto português aos de Matta-Clark, Peter Eisenman, James Stirling, Aldo Rossi e Pierre Jeanneret, entre outros, que integram já o acervo da instituição.
Mas o CCA é, primeiro que tudo, uma criação de Phyllis Lambert. Foi em 1979 que esta arquitecta cidadã do mundo decidiu fundar, na sua cidade natal, um lugar de salvaguarda, mas também (e principalmente) de utilização dos documentos que foi guardando ao longo da sua vida. “Sempre gostei de desenhos antigos e raros de arquitectura, dos séculos XVIII e XIX, que comecei a colecionar na década de 1950, com a ajuda de alguns galeristas. Gosto desses desenhos porque nos revelam a alma dos seus autores”, explicou a arquitecta.
Associou esse projecto à sua veia de activista social, e viu também na criação do CCA um meio de salvar um palacete do séc. XIX – a Casa Shaughnessy (1874) – e simultaneamente de enfrentar o crescimento desordenado da cidade, onde as rodovias e autoestradas começavam a invadir e a destruir património histórico.
Experiência viva
O edifício do CCA, projectado pelo arquitecto canadiano Peter Rose, foi acoplado ao velho solar, e oferece-se agora como um multifuncional centro de documentação, investigação e exposições. Visto de fora, é um exemplar da arquitectura pós-moderna mais funcional, de granito cinzento, por estes dias ostentando um grande cartaz com uma fotografia das manifestações pelo direito à habitação em S. Pedro da Cova, em 1975, a publicitar a exposição do SAAL.
Lá dentro, os seus cinco pisos oferecem-se como um mundo fascinante para a pesquisa e descoberta. Podemos começar pela livraria, e encontrar publicações dedicadas a Álvaro Siza: The Function of Beauty (edição Phaidon), uma monografia do Museu de Serralves e uma edição japonesa com uma selecção dos seus projectos. Ou a obra de Phil Mailer, Portugal: The Impossible Revolution.
Em paralelo com as histórias do SAAL, na galeria mais pequena está a decorrer um ciclo de exposições sobre os arquitectos espanhóis Ábalos & Herreros, cujos arquivos são uma das aquisições mais recentes do CCA. Há depois o auditório, a biblioteca, o centro de documentação, os gabinetes de estudo para os investigadores – o centro acolhe, desde 1997, várias dezenas de estudantes e outros interessados na arquitectura de todo o mundo, incluindo Portugal.
“Aqui está tudo aberto e é gratuito; é preciso apenas que o candidato apresente o seu programa de trabalho e justifique a necessidade de acesso aos documentos”, diz a italiana Giovanna Borasi, curadora-chefe do CCA, na visita em que guiou o Ípsilon por todos os recantos do centro.
Para o visitante desprevenido, e sem programa, o mais surpreendente é a visita aos pisos subterrâneos, onde se encontram os laboratórios de conservação, tratamento e restauro dos documentos – maquetas, livros, desenhos, plantas, fotografias, cartazes, etc… Numa sucessão de salas, os equipamentos vão da simples cola para fixar fotografias ou pequenos sacos de areia para desdobrar plantas arquitectónicas até aos sistemas mais sofisticadas para recuperar ou reproduzir imagens – a colecção do CCA conta já cerca de 60 mil fotografias.
Noutros espaços, diferentes técnicos trabalham sobre a inventariação e recuperação de peças, como, por exemplo, uma maqueta do atelier Ábalos & Herreros para um edifício em Tenerife, que obrigou a corrigir a sua montagem relativamente ao edifício construído na ilha das Canárias.
“O que aqui há de especial é um departamento de conservação em ligação com o design das exposições; temos sempre de responder à vontade do comissário e dos investigadores”, justifica Giovanna Borasi.
Sobre as mesas – com avisos a assinalar “Atenção: objecto de arte”; “Em tratamento” –, ou já acondicionadas em prateleiras ou armários expressamente construídos para o efeito, podemos encontrar aquilo que é uma história da arquitectura em fotografia: uma colecção de 80 daguerreótipos; uma impressão vintage de The Buckeye Tree (1872), na Califórnia, de Carlton E. Watkins; uma caixa com estereogramas de Nova Iorque no final do século XIX; os icónicos edifícios cortados ao meio de Matta-Clark…
Noutras salas ainda, há objectos raros e preciosidades históricas, desde o Tratado de Arquitectura de Vitruvio até várias obras desde o tempo do Renascimento; um livro antigo sobre a Architecture de Ahmedabad, na Índia, à espera de uma caixa para a sua guarda. Mas o cerne da colecção é a arquitectura contemporânea: aí estão os rolos com os planos para o Museu da História da Alemanha, de Aldo Rossi; um desenho de um estádio de futebol de… Le Corbusier; trabalhos de Peter Eisenman, autor de projectos como a Cidade da Cultura, em Santiago de Compostela, ou o Memorial do Holocausto, em Berlim.
“Já começamos a sentir problemas de espaço por causa do sucesso do centro”, diz Giovanna Borasi, acrescentando que a instituição já está a usar um segundo edifício só para guardar maquetas.
André Tavares e Jorge Correia são dois dos vários portugueses que já usufruíram dos serviços do CCA. O primeiro, em 2011 e 2014, com uma bolsa da Fundação Ciência e Tecnologia para investigar sobre a história do livro de arquitectura – trabalho que espera vir a publicar ainda este ano. Jorge Correia, em 2013, a trabalhar no projecto Late 19th-century photography of Arab cities: perception and reception of Islamic architectural and urban features.
O provar o balanço positivo da sua experiência, Jorge Correia lembra ter sido desafiado, no final, a comissariar no centro uma exposição sobre esse tema, que teve por título A fotografia da cidade árabe no século XIX.
Este arquitecto e professor vê o CCA como “uma instituição de referência, quase única”. E salienta a “extrema relevância” do seu acervo bibliográfico das colecções “para a investigação nos domínios da história e teoria da arquitectura”.
Para André Tavares, o centro é sobretudo “um lugar de conhecimento e de partilha”. “Aprendi consultando os arquivos e a biblioteca, mas sobretudo vendo como essa experiência acumulada pode estar viva e ser manuseada para aprendermos sobre o mundo de hoje e inventarmos o que há-de vir”, acrescenta o arquitecto e investigador. E chama ainda a atenção para o facto de Montréal ser uma cidade bilingue, o que “faz do CCA um lugar capaz de conjugar a cultura francófona e anglófona, ultrapassando barreiras que outros lugares têm”. “A ambição e rigor que são apanágio da instituição também fazem com que os programas públicos que promovem não resvalem nem para o populismo de alguns museus, nem para o hermetismo de algumas universidades”, conclui Tavares.
O PÚBLICO viajou a convite do Museu de Serralves e do CCA