"Elena Ferrante? Treze letras, nem mais nem menos"
O texto basta, mantém Elena Ferrante, a escritora italiana que permanece um enigma e fez de Nápoles a grande paisagem da sua literatura. “Não me escondo, não crio mistérios”, afirma em vésperas de nos chegar História do Novo Nome, o segundo volume da tetralogia A Amiga Genial.
A pessoa que transporta sempre um livro e um bloco de notas escolheu ser anónima precisamente desde o primeiro livro que escreveu, Crónicas do Mal de Amor, original de 1992, que a Relógio D’Água publicou em português em 2014. Há cerca de dez anos, quando começou a ser traduzida para inglês e a crítica foi unânime no aplauso, questionou-se como iria conseguir conciliar essa reserva com as solicitações do mundo literário. Manteve-se firme na intenção. Nunca apareceu em público e as poucas entrevistas que deu foram por escrito, sempre mediadas pelos editores italianos, os poucos com acesso à pessoa que está por trás da assinatura literária Elena Ferrante. A excepção terá acontecido na última Primavera, quando a Paris Review publicou uma conversa entre ela, os editores Sandra e Sandro Ferri, e a filha, Eva. A conversa a quatro aconteceu a vários tempos, primeiro num hotel em Nápoles, prolongando-se para o almoço do dia seguinte, e, mais tarde, em Roma. Foi a única onde houve hipótese de réplica, de diálogo. Nas outras, por escrito, tenta-se não repetir perguntas, ir juntando peças a um puzzle que permanece enigmático, o da biografia do autor. A obra – ou o texto, como Ferrante lhe chama – está inteira. Fala quase sempre do medo, da contradição, da experiência e da palavra certa para a passar, além do ritmo, talvez o mais importante. É nisso, acredita, que reside a verdade da escrita, mais do que na verdade dos factos.
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A pessoa que transporta sempre um livro e um bloco de notas escolheu ser anónima precisamente desde o primeiro livro que escreveu, Crónicas do Mal de Amor, original de 1992, que a Relógio D’Água publicou em português em 2014. Há cerca de dez anos, quando começou a ser traduzida para inglês e a crítica foi unânime no aplauso, questionou-se como iria conseguir conciliar essa reserva com as solicitações do mundo literário. Manteve-se firme na intenção. Nunca apareceu em público e as poucas entrevistas que deu foram por escrito, sempre mediadas pelos editores italianos, os poucos com acesso à pessoa que está por trás da assinatura literária Elena Ferrante. A excepção terá acontecido na última Primavera, quando a Paris Review publicou uma conversa entre ela, os editores Sandra e Sandro Ferri, e a filha, Eva. A conversa a quatro aconteceu a vários tempos, primeiro num hotel em Nápoles, prolongando-se para o almoço do dia seguinte, e, mais tarde, em Roma. Foi a única onde houve hipótese de réplica, de diálogo. Nas outras, por escrito, tenta-se não repetir perguntas, ir juntando peças a um puzzle que permanece enigmático, o da biografia do autor. A obra – ou o texto, como Ferrante lhe chama – está inteira. Fala quase sempre do medo, da contradição, da experiência e da palavra certa para a passar, além do ritmo, talvez o mais importante. É nisso, acredita, que reside a verdade da escrita, mais do que na verdade dos factos.
E em relação à tal biografia os factos são escassos. Sabe-se que Elena Ferrante usa o feminino para falar de si, que é mãe, que nasceu e cresceu em Nápoles há uns 60 anos, que tem uma formação clássica, e que começou a publicar em 1992. Crónicas do Mal de Amor, Os Dias do Abandono, A Filha Obscura (reunidas em Portugal no volume Crónicas do Mal de Amor); La Spiaggia di Notte; e a chamada Tetralogia de Nápoles, de que fazem parte os romances A Amiga Genial (Relógio D’Água, 2014), História do Novo Nome (que chega às livrarias portuguesas no próximo dia 20), Storia di chi fugge e di chi resta e Storia della Bambina Perduta. Escreveu ainda Frantumaglia (2003) – o título foi tirado a uma expressão que a mãe usava para se referir às imagens soltas que povoam a cabeça, quase sempre de forma desconfortável –, em que fala sobre o seu acto de escrita e em que esse desconforto é permanente. Escreve quase sempre histórias onde as mulheres, no seu abandono e na sua paixão, na sua quase sempre cruel circunstância, são protagonistas que contam o que se passa com elas – é nesse modo de contar que encontram a sua identidade e revelam o mistério do seu inconsciente.
Nomeada para a última edição do Prémio Strega, o de maior prestígio da literatura italiana, com a quarta e última das suas novelas napolitanas, Storia della Bambina Perduta, afirmou que, caso vencesse, não abdicaria do anonimato. Não ganhou. O prémio foi entregue no dia 2 de Julho a Nicola La Gioia, dois dias depois de estas perguntas terem sido enviadas a Elena Ferrante. As respostas que chegaram confirmam a sua vontade de dar primazia ao texto, tantas vezes sacrificado à imagem do autor e interferindo no modo como chega ao leitor. “O caminho da minha obra é o meu caminho”, diz nesta entrevista. Como nas poucas que concedeu até agora, as perguntas chegaram-lhe através dos editores e as respostas (traduzidas do italiano, tal como os seus livros, por Margarida Periquito) deixam intencionalmente muitos espaços em branco. Deverão ser preenchidos com a leitura da obra e boa dose de fantasia. Essa parece ser a vontade de Elena Ferrante.
Tem-se romanceado muito à volta da sua biografia: ser ou não mulher, ser ou não italiana, ser ou não mãe… O romance que se vai construindo sobre a sua vida anda a par com os seus romances. Neles, muitos leitores tentam ler sinais da autora. Há o que a ficção dá e o que ela sugere acerca de quem a escreve e permanece um mistério. Gostava que comentasse esta ideia, a da biografia ficcionada e a da própria ficção de Elena Ferrante.
O meu trabalho pretende chamar a atenção para a unidade original entre autor e texto e para a auto-suficiência do leitor, que pode deduzir dessa unidade tudo aquilo que for necessário. Eu não invento a minha biografia, não me escondo, não crio mistérios. Estou presente, tanto nos meus romances como nestas respostas às suas perguntas. O único espaço onde o leitor deveria procurar e encontrar o autor é o da sua escrita.
Numa entrevista sobre as razões do seu anonimato, respondeu: “Escrever sabendo que não vou aparecer produz um espaço de absoluta liberdade criativa.” Acha que a sua escrita seria diferente se não tivesse escolhido não se revelar?
Tenho a certeza disso. Divulgar a própria pessoa ao mesmo tempo que o livro, segundo o costume da indústria cultural, é completamente diferente de nos escondermos no texto e de não sairmos dele a não ser graças às capacidades imaginativas dos leitores.
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O nome Elena Ferrante começa e acaba nas páginas de cada um dos seus livros. Veio com a escrita, ela deu-lhe uma identidade. Pode definir-se? Quem é a Elena Ferrante, escritora?
Elena Ferrante? Treze letras, nem mais nem menos. A sua definição está toda contida nelas.
Escolheu estar quase invisível, enquanto a obra fez lentamente um caminho até se tornar impossível não especular acerca do autor. Como é que está a viver este processo?
O caminho das minhas obras é o meu caminho. Os leitores contentam-se com ele, aliás, alguns até me escrevem pedindo que não revele nunca outros caminhos mais privados e, por isso, menos interessantes. Os meios de comunicação é que, por dever de ofício, não se contentam com as obras, querem caras, personagens, protagonistas excêntricos. Mas pode-se passar tranquilamente sem o que os meios de comunicação pretendem.
Em A Amiga Genial, uma das protagonistas, Lenú, persegue a escrita, a forma honesta de escrever. O que entende por honestidade em literatura?
Dizer a verdade, como só a ficção literária pode permitir dizer.
Como e quando a escrita se lhe impôs?
Como? Com doçura. E quando? Quando se deixa de fazer esforço para encontrar as palavras.
Por onde começa tudo na sua literatura?
Não sei. No início são apenas relâmpagos, empurrões, palavras que surgem mostrando imagens mal definidas. É pouco, mas de qualquer modo é ser posto à prova. Geralmente não vou além de meia página, um apontamento. Por vezes escrevo muito, mas sem satisfação, pois as palavras são ainda as palavras toscas do dia-a-dia. Só quando a escrita se retesa como um fio de pesca e depois começa a correr veloz é que sei que o isco era bom e começo a esperar de mim algo de significativo.
Numa entrevista recente definiu-se como contadora de histórias, e nessa definição parece haver algo que vai de algum modo contra uma certa maneira italiana ou centro-europeia de escrever…
Quando digo que sou uma contadora de histórias, identifico-me com uma tradição muito italiana em que escrita e conto são uma coisa só e que é "bonita" porque tem a energia necessária para formar um mundo, e não porque encadeia metáforas de forma obsessiva. A nossa literatura é cheia de possibilidades, algumas ainda por descobrir, basta ler os textos, e quem quiser escrever encontra de certeza aquilo de que precisa. O problema, eventualmente, é o culto da página perfeita, uma característica recorrente que combati durante muito tempo, em primeiro lugar em mim. Hoje deito fora as páginas muito reescritas, pertenço ao número dos que preferem o rascunho à página aperfeiçoada.
As suas histórias têm uma geografia muito precisa. Até que ponto o lugar determina a sua escrita?
Uma história tem um tempo e esse tempo deve ter um espaço preciso em que possa fluir linearmente, ou surgir inesperadamente no presente vinda do passado, arrastando consigo tradições, maneiras de usar a língua, gestos, sentimentos, razões e irracionalidades. Sem um espaço designado com precisão, e no entanto com amplas margens de indeterminação entregues à fantasia do leitor, a história corre o risco de perder consistência e de não fazer atrito.
Nápoles é quase uma personagem principal na sua literatura. Que relação tem com essa cidade, ou como é que essa cidade se apresentou tão determinante na sua escrita?
Nápoles é a minha cidade e não consigo prescindir dela, mesmo quando a detesto. Vivo noutro sítio, mas tenho de lá voltar com frequência, porque só ali tenho a impressão de me redimir e de voltar a escrever com convicção.
As suas personagens femininas são quase sempre mulheres em situações-limite, a viver momentos de paixão ou abandono, desapontadas, extremadas, marcadas por um passado de que não se conseguem livrar. De onde vêm essas vozes?
De mim, das experiências que tiveram importância para mim. E daquilo que me foi dado saber e ver da vida das outras mulheres, e que me deixou ferida, indignada, deprimida, alegre.
Foram essas personagens femininas a deixar cair o pano quanto ao facto da autora poder ser uma mulher, como se fosse impossível a um escritor masculino chegar a esse íntimo feminino que, no seu acaso, é também um alerta para a condição de muitas mulheres. A tal ponto que há críticos que lhe chamam uma autora feminista. Qual é a sua posição em relação a isto?
O feminismo foi muito importante para mim. Aprendi a pesquisar dentro de mim, graças à prática da autoconsciência, e foi o pensamento feminino que me suavizou o olhar. Foi no confronto, por vezes duro, entre mulheres que me pareceu compreender que para escrever não é preciso distanciar os factos, mas sim encurtar as distâncias até ao insuportável. Contudo, não escrevo para dar voz a uma ideologia, escrevo para contar, sem mistificações, aquilo que sou.
Como é a sua rotina de escrita? Tem alguma?
A única coisa importante é a urgência. Se não sentir a urgência de escrever, não há rito propiciatório que me possa ajudar. Prefiro fazer outra coisa, há sempre algo de melhor para fazer.
Dá muita atenção às descrições de ambientes. Pode descrever o lugar onde habitualmente escreve?
Não tenho um lugar específico, instalo-me onde calha. Mas de um modo geral prefiro espaços muito pequenos, ou cantos escondidos num ambiente grande.
Quais são os seus autores de referência, os que a influenciaram e influenciam?
Muitas vezes os escritores atribuem-se antepassados literários de grande relevo, cujo eco, porém, é inconsistente nas suas obras. Por isso, é melhor não referir nomes excelsos, que só assinalam o grau da nossa soberba. Prefiro enunciar um método: uma vez que somos mais influenciados por aquilo que os especialistas dizem dos grandes livros do que pela sua leitura, é preferível ler os textos, quer sejam grandes ou pequenos, para os subtrair ao perímetro em que os encerraram e procurar as páginas que, aqui e agora, nos ajudam a fugir ao óbvio.
Lê o que se escreve sobre os seus livros?
Sim, tudo o que a minha editora me envia. Mas faço-o sistematicamente com atraso, quando os meus livros já se distanciaram bastante e consigo aceitar que estejam, bem ou mal, contidos nas palavras dos outros.
Está proposta para Prémio Strega, o principal prémio das letras italianas. O que é que esta nomeação significa para si?
Nada.
Pode dizer um pouco quem é Elena Ferrante fora da escrita, aquela que possibilitou a literatura?
Uma pessoa que trata da vida de todos os dias transportando sempre um livro e um bloco de notas na mala de mão.
Em Frantumaglia, escreve: “A questão em qualquer história é sempre: é esta a história certa para contar o que se cala silenciosamente no mais profundo de mim, essa coisa viva que, se capturada, se espalha por todas as páginas e é capaz de as animar?” A história nasce do confronto com o exterior?
"História certa" talvez seja uma expressão a que fui levada pela preguiça. Na verdade, nunca tenho na cabeça uma história completa, a ponto de poder avaliar se é certa ou não. Preciso de trabalhar muito nela para perceber até onde me leva. O confronto com o mundo dá-se nessa fase, e com efeito é uma luta corpo-a-corpo com as suas palavras. Preciso de encontrar uma abertura, de ter a impressão de que a vida do dia-a-dia me pode permitir dar às suas frases um pouco mais de sentido. Se isso não acontece, paro. Tenho as gavetas cheias de tentativas falhadas.