Phyllis Lambert: “Se não se discutisse arquitectura, o mundo seria certamente muito mais pobre”
“Cidadã Lambert”, “Joana d’Arc da arquitectura”, “inventora de arquitectos”. É Phyllis Lambert, 88 anos, fundadora do Centro Canadiano de Arquitectura, em Montréal, e Prémio da Bienal de Veneza 2014. Foi a "construtora" do Edifício Seagram na década de 1950, que ajudou a mudar a face de Manhattan.
É evidente o paralelismo com o mítico Citizen Kane, com Orson Welles a impor-se também ao império que ele próprio construiu. Mas também com a figura de Joana d’Arc, a jovem guerreira de França que, no século XV, triunfou num mundo de homens.
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É evidente o paralelismo com o mítico Citizen Kane, com Orson Welles a impor-se também ao império que ele próprio construiu. Mas também com a figura de Joana d’Arc, a jovem guerreira de França que, no século XV, triunfou num mundo de homens.
No ano passado, ao entregar-lhe o Leão de Ouro da Bienal de Veneza, Rem Koolhaas afirmou: “Se os arquitectos criam arquitectura, Phyllis Lambert cria arquitectos”.
Este statment calha bem com a personagem e a carreira desta Citizen Lambert, nascida em Montréal em 1927, cidade onde permanentemente regressou, e onde em 1979 fundou o Centro Canadiano de Arquitectura (CCA). Viveu em Paris, antes de se fixar na Nova Iorque dos anos 50; começou pelas artes, antes da arquitectura, em que viria a formar-se entre o Vassar College de Poughkeepsie, Nova Iorque, e o Instituto de Tecnologia do Illinois, Chicago. A fotografia e a arquitectura – de que é praticante, historiadora, crítica, professora, conferencista –, mas também o activismo social e público preenchem a sua biografia.
No início de Maio, Phyllis Lambert acompanhou atentamente todo o programa de apresentação da exposição sobre o Processo SAAL no CCA. A história que ele encerra tem paralelismo com a sua preocupação com o papel social da arquitectura, em Portugal como no Canadá, nos EUA e noutras partes do mundo. A Álvaro Siza, de quem espera a chegada dos prometidos arquivos a Montréal, vê-o como um nome fundamental para reflectir sobre a questão da cidade e o papel da arquitectura na sociedade.
Nessa semana, Phyllis Lambert concedeu uma longa entrevista ao Ípsilon, que foi mediada por Nuno Grande, arquitecto e professor que esteve em Montréal também a explicar o Processo SAAL aos públicos do CCA, e sem o qual esta conversa não teria sido possível.
No próximo mês de Novembro, Phyllis Lambert vai regressar ao Porto, sendo o primeiro nome confirmado para a segunda edição do Fórum do Futuro, iniciativa comissariada pelo vereador da Cultura, Paulo Cunha e Silva.
Já esteve no Porto e sabemos que irá regressar ainda este ano. Que imagem guarda da cidade?
Estive pouco tempo na cidade. Mas achei-a muito agradável. Foi pouco tempo depois da inauguração da Casa da Música de Rem Koolhaas. Também fui ver a Faculdade de Arquitectura de Álvaro Siza. Mas não tive tempo de ver mais obras. Vou voltar lá no final deste ano [ao Fórum do Futuro, iniciativa da Câmara Municipal do Porto] e então espero poder vê-la melhor, e também Lisboa. Também visitei aquelas estruturas enormes junto ao rio, as Caves do Vinho do Porto…
Gostou da Casa da Música?
É magnífica. É um dos grandes projectos do nosso tempo.
Totalmente diferente da arquitectura da faculdade de Siza…
Sim. Mas por que é que tinha de ser parecida? É todo um outro programa...
O que conhece da obra de Siza?
Começo a conhecê-la melhor e estou contente por ir a Portugal no Outono e poder ir ver ao vivo outros projectos seus. Conheço o seu trabalho através das muitas publicações, de muitas pessoas do CCA, como Mirko Zardini, o director, e Giovanna Borasi, a chief curator, e outras à minha volta que apreciam o seu trabalho. A única coisa que vi, até agora, para além da sua Faculdade de Arquitectura, foi a pequena exposição, particularmente interessante, que fizemos aqui no CCA com os seus desenhos sobre Machu Picchu. Foi quando conheci pessoalmente Álvaro Siza.
Que significado tem para si apresentar no CCA a exposição sobre o Processo SAAL?
Significa muitas coisas. Por um lado, é o início da nossa colaboração com a Fundação de Serralves, e também com a Fundação Calouste Gulbenkian [em torno do acervo de Álvaro Siza]. Estou muito contente com isso, pois entendo esta colaboração como muito interessante, porque estabelece um novo modelo de trabalho à volta de um arquivo de interesse internacional. Além disso, esta exposição interessa-me enormemente, porque o problema da habitação, e da habitação social em particular, é algo que se tenta ainda resolver em todo o mundo. Mas é também sobre um momento histórico em que, depois da reconstrução no pós-guerra, se vivia uma grande insatisfação, um pouco por todo o mundo. Um momento em que os jovens se queriam fazer ouvir, em face das mudanças sociais em curso, e em que se falava do “direito à cidade”, uma questão de grande importância. Nós tivemos os mesmos problemas aqui, em Montreal. De uma forma diferente, naturalmente, mas, no fundo, as mesmas questões. Tivemos de nos bater para evitar a demolição de inúmeras casas do século XIX, que deveriam ser renovadas mas cujos proprietários deixavam entrar em ruína, sem qualquer manutenção. Houve a ideia de as comprar para ali criar cooperativas de habitação. Tratava-se de um projecto de habitação social, que teve grande sucesso. Isso demorou vários anos.
Outra coisa que me agrada nesta exposição, que me toca o coração, são as inúmeras boas ideias que nela estão no sentido de desenvolver a cidade. Porque se trata de algo muito importante, mesmo se pouco foi finalmente concretizado, por causa das mudanças políticas. É preciso encontrar na sociedade os meios que permitam continuar a desenvolver projectos como estes.
Mirko Zardini, director do CCA, disse que a exposição do SAAL não é só história, mas um desafio para o nosso tempo. Como vê o papel da arquitectura no mundo actual?
Hoje em dia, a maioria das pessoas vive em cidades, e é este o meio ambiente onde todos crescemos. Se esse meio for horrível, não teremos as condições, nem a possibilidade, de nos desenvolvermos. Mesmo aqui, nos anos 60, através do Fundo de Investimento de Montreal (FIM), investimos em conjuntos de habitação popular, que não eram grande arquitectura, de todo, mas que faziam parte da memória colectiva da cidade e que não podíamos deixar arruinar. Investimos para ajudar esses bairros a restituir as suas condições de vida. Se os edifícios estiverem em ruína, criam-se as condições para a chegada da criminalidade. Se não há espaço para as crianças estudarem, irem à escola, se não houver parques e instalações escolares, isso é terrível. É por isso que é preciso investir já. Na arquitectura é preciso que as pessoas compreendam como se trabalha com a cidade. Não se trata apenas de construir um edifício, mas assegurar que ele cumpra o seu papel, como escola, ou como habitação social, e que funcione na ligação com os outros edifícios. No fundo, trata-se de construir para as pessoas que os vão habitar, fomentando a sua auto-estima.
Regressemos ao início, à sua primeira relação profissional com a arquitectura, a propósito da construção do edifício-sede da companhia Joseph E. Seagram’s & Sons, na Park Avenue, em Nova Iorque. Tudo começa em 1954, com uma carta que escreve ao seu pai, Samuel Bronfman, presidente da companhia, apontando questões ao processo de escolha do projecto para essa nova sede…
Escrevi-lhe essa carta de Paris, onde vivia então, porque ele me tinha enviado os desenhos de um projecto para o edifício, ao qual me opus imediatamente. Começava a carta com um “Não, não, não...”, e acrescentava que construir um novo edifício no centro de Manhattan era uma tarefa de enorme responsabilidade, não apenas do ponto de vista da sua estrutura, mas sobretudo da sua relação com os outros edifícios envolventes, com a cidade, enfim, com o mundo!
Regressada, nesse ano, a Nova Iorque, resolveu então ajudá-lo na escolha do projecto do edifício?
Fiz uma investigação sobre possíveis arquitectos que durou seis semanas.
No livro que escreveu sobre esse processo [Building Seagram, 2013], conta mesmo que se fizeram listas de arquitectos, incluindo alguns que se tinham oferecido para desenvolver o projecto, como, por exemplo, Frank Lloyd Wright...
É verdade... Mas eu, apesar de não ser arquitecta – era uma artista em Paris –, conhecia bem esse meio, e decidi então falar com Eero Saarinen e Philip Johnson. Chegámos, finalmente, a uma lista dividida entre: a) os que podiam projectar o edifício, mas que não deviam ser considerados porque não eram realmente criativos; b) os que podiam projectar o edifício, mas que não era prudente seleccionar porque nunca tinham desenhado algo com aquela envergadura; c) os que podiam projectar o edifício e que deviam ser considerados porque tinham provas dadas, como Le Corbusier, Mies van der Rohe ou Frank Lloyd Wright.
Nessa selecção, e tendo em conta o seu conhecimento das vanguardas artísticas e arquitectónicas na Europa, inclinava-se mais para os arquitectos do Movimento Moderno europeu em face dos arquitectos modernos norte-americanos?
Não creio que se pudesse falar, então, de um “modernismo norte-americano”, para lá das obras que Frank Lloyd Wright vinha fazendo há já vários anos. A grande mudança estava apenas a começar e, em Nova Iorque, a maioria dos edifícios construídos no pós-guerra eram terríveis, sem qualquer carácter... Havia apenas os recentes edifícios da Lever House [Skidmore, Owings and Merrill, 1952] e a Sede das Nações Unidas [Harrison and Abramovitz, a partir de um estudo de Le Corbusier e Niemeyer, 1953], mas nada mais assinalável. Não era possível fazer uma escolha de arquitectura moderna europeia versus americana. Ainda hoje, a grande “energia” arquitectónica não vem dos EUA, se excluirmos talvez o caso peculiar de Frank Gehry...
A escolha definitiva de Mies van der Rohe para realizar o projecto não foi portanto condicionada por esse desejo de reforçar a presença da vanguarda europeia na cena americana?
Não se tratou de dar preferência a um arquitecto europeu, mas apenas optar por um modelo inovador, por alguém que estava na “linha da frente” do que se podia fazer naquele tempo. As grandes mudanças estavam apenas a começar. Os EUA tinham tido um papel inovador após a Revolução Industrial, muitas décadas antes, mas a arquitectura norte-americana desenvolvia-se, desde então, através de processos puramente comerciais.
Acha então que os EUA beneficiaram com a imigração de arquitectos europeus antes e durante a II Guerra Mundial?
A arquitectura viveu sempre de relações internacionais, do movimento dos arquitectos entre países, mesmo dentro da Europa. Depois da II Guerra Mundial, a indústria americana necessitava de aplicar e expandir novas técnicas e novos materiais – o alumínio, por exemplo –, já não para alimentar o exército, mas em benefício da sociedade civil; e portanto a questão punha-se: quem é que está disposto a trabalhar com estas novas possibilidades materiais e construtivas? Parecia já não fazer sentido continuar a construir edifícios em estrutura de aço cobertos por panos de pedra...
...como era tradição na melhor arquitectura americana, por exemplo, da chamada Escola de Chicago?
Sim, mas também por isso, fez todo o sentido que Mies, vindo da Alemanha, escolhesse Chicago para se fixar. A arquitectura em Chicago, para além de bela, era edificada de forma racional, com preocupações espirituais e até sociais... Ali ninguém discutia essa relação Europa versus América. A questão era antes: que benefício podemos retirar da presença e da visão de um arquitecto progressista como Mies van der Rohe?
Conhecer e privar com Philip Johnson, curador de arquitectura do MoMA, e com o seu longo interesse pelas vanguardas arquitectónicas – pelo menos, desde a exposição que ali organizou, em 1932, sobre o Internacionalismo Moderno –, despertaram, em si, um igual interesse por essas visões progressistas?
Philip Johnson e o MoMA foram fundamentais para a divulgação da arquitectura moderna, num momento em que, e apesar de algumas tentativas frustradas, não existiam museus de arquitectura na Europa. O primeiro director do MoMA, Alfred Barr, que conheci bem, foi o grande instigador da ideia, e ofereceu a Philip Johnson a chefia do Departamento de Arquitectura no museu.
Johnson acabaria por ser co-autor, com Mies van der Rohe, do projecto do Seagram Building. Pode dizer-se que este era um par previsível?
Eu conto-lhe a história... A empresa construtura da obra, a George A. Fuller Company, uma das maiores dos EUA, era dirigida por um homem da total confiança do meu pai, o qual nada sabia sobre construção. Na verdade, foi esse presidente da companhia, Lou Crandall, que me desafiou a participar na equipa, que me incumbiu de procurar o arquitecto e de participar no project management da obra. Mies era já um homem de idade, penso que teria 72 anos, e o George Fuller perguntou-me: ‘E se algo acontece ao arquitecto? Porque não o juntamos a Philip Johnson?’ Perguntei a Mies o que pensava do assunto e, sendo ele um homem muito generoso e grato a Johnson – que o incluíra em duas exposições do MoMA, em 1932 e 1947 –, perguntou-lhe: ‘Vamos fazê-lo juntos?’ O Philip ficou realmente emocionado com a proposta de parceria.
Sabe, o Philip trabalhara longamente sobre o Estilo Internacional e o Design Moderno nas exposições do MoMA, e sonhava em melhorar o conforto dos ambientes interiores nos novos edifícios. Viu no projecto do Seagram Building uma excelente oportunidade de testar as suas ambições. Foi uma óptima opção! Além disso, o Philip trabalhou no projecto de iluminação, juntamente com Richard Kelly, estudando o modo como o edifício seria vivido por dentro e visto de fora, sobretudo em ambiente nocturno. Desenhou ainda o interior do famoso Restaurante Four Seasons, incorporando-o num volume mais baixo na parte poente do conjunto. Mies pediu-lhe para o desenhar, dizendo-lhe que confiava na sua experiência para a escolha de materiais e mobiliário.
No complemento desses materiais refinados, surgem também obras de arte, criteriosamente escolhidas, também por si, onde se contam Pablo Picasso, Jackson Pollock e Mark Rothko, sendo que este último se envolveu num processo polémico, que o levou a retirar as suas pinturas do interior do Four Seasons. Pode descrever-nos a sua versão da história?
Rothko era um grande artista, de grande sensibilidade. Ele ficou grato pelo convite, mas também preocupado. Trabalhou intensamente nas telas, mas quando finalmente percebeu que iriam para um restaurante frequentado por uma elite rica, recusou-se a instalá-las... Eu compreendi-o: ele não queria que as suas obras servissem de fundo a conversas fúteis às refeições. Ele retirou-se definitivamente e devolveu o dinheiro que tinha recebido para as realizar. Parte dessas telas estão hoje na Tate Gallery, em Londres.
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Outra coisa que impressiona no projecto do Seagram Building é a generosidade de espaço oferecido à cidade, através do recuo da construção em relação à Park Avenue. Essa ideia de criar uma espécie de praça para todos os cidadãos, e não apenas para os utilizadores do edifício, tornando-o mais urbano, mais democrático, estava já sugerida na carta que escreve ao seu pai em 1954, muito antes de Mies e Johnson desenharem a solução final. O seu activismo cívico estava já latente nessa mensagem enviada ao seu pai?
Eu não era ainda arquitecta, mas estudara a arquitectura medieval europeia, e a importância dos espaços públicos na cidade...
Mas pode dizer-se que a sua carta era já um briefing para o que Mies acabaria por propor?
Não, não creio. Mies sempre teve muita atenção ao modo como o edifício se implanta, na sua relação com o solo e com os espaços envolventes. Quando ele constrói, em Chicago, os edifícios do Illinois Institute of Technology [1950-56], mas sobretudo os apartamentos de Lake Shore Drive [1951], dispõe os volumes gerando uma praça em travertino entre eles... Esse jogo de volumes e vazios qualificados foi algo que ele sempre explorou, algo que sempre esteve entre as suas preocupações...
O processo de projecto e de construção do Seagram Building não foi pacífico. No seu livro fala mesmo em situações de quase desistência, quer da sua parte, quer da parte do próprio Mies van der Rohe. Como viveu essas situações?
Mies nem sempre foi bem compreendido pelas diversas partes envolvidas no processo. Alguns arquitectos americanos consideravam-no mesmo infantil, outros duvidavam das suas capacidades... Eu defendi-o, inúmeras vezes, perante o comité de construção formado no âmbito da administração da Seagram. A minha tarefa era a de garantir que ele conseguiria construir o edifício que tinha projectado, pois eu sabia que ele realizara obas magníficas anteriormente. Lembro-me que, no final do Verão de 1955, voltei de férias e tive de enfrentar aquele comité de quase 50 homens... Há inclusive fotografias minhas, muito jovem, sendo a única mulher no meio de todos eles.
Falemos agora da recepção crítica do Seagram Building. Finalizado em 1958-59, o edifício atravessa depois a década de 1960, na qual muitos arquitectos e críticos disferem um ataque cerrado à arquitectura moderna. Lembro, por exemplo, o arquitecto e crítico americano Robert Venturi, o qual, ironizando a partir de um epíteto de Mies – “Less is more”(Menos é mais) –, afirmava “Less is a bore” (Menos é aborrecido)…
Venturi escreveu um livro denominado Complexidade e Contradição em Arquitectura em 1965 ou 1966, muito depois da inauguração do Seagram Building...
E como reagiu então à crítica que olhava para Mies como um arquitecto “aborrecido”?
Não reagi! Simplesmente não reagi! À data da sua inauguração, o Seagram foi aclamado por todo o mundo, em capas de revistas e livros, sendo mesmo considerado por muitos críticos como o mais brilhante edifício do seu tempo.
No entanto, a arquitectura norte-americana viveria as décadas seguintes marcada pelo debate sobre o pós-modernismo. Também Philip Johnson se envolve nesse processo, mostrando ser afinal um arquitecto eclético – veja-se o seu projecto para o AT&T Building, de 1984, também em Nova Iorque. Como viveu essa mudança no panorama norte-americano?
Depois de terminado o Seagram Building, fui tirar o curso no IIT College of Architecture, em Chicago, recriado e dirigido por Mies van der Rohe [entre 1938 e 1958]. Eu própria fiz, em 1963, um edifício muito “miesiano”, em Montreal [o Saidye Bronfman Centre for the Arts]. Todo esse debate [pós-moderno] foi uma discussão em torno de “estilos” que durou tanto quanto um piscar de olhos. Anos depois, o exemplo de Mies regressava em força, como se percebe hoje.
E o trajecto eclético de Philip Johnson?
Sabe como era o Philip... Ele não o faria se outros não o tivessem feito.
É possível dizer que Philip Johnson foi para si uma referência, não apenas como curador, mas também como alguém interessado em cuidar de documentos de arquitectura?
Não acho que ele se interessasse muito por documentos de arquitectura, apenas por objectos de arquitectura, e sobretudo por expô-los. Não percebo porque se insiste sempre na ideia de que ele foi influente nesse propósito...
Mas não foi Johnson o primeiro a levar a arquitectura para dentro do espaço do museu?
Deve-se a Alfred Barr, o primeiro director do MoMA, a ideia de criar o Departamento de Arquitectura na instituição, e de envolver Philip Johnson no processo. É muito importante relembrar isto.
Como começa então o seu interesse pelos documentos históricos de arquitectura, e pelo processo de os estudar e conservar?
Eu estudei História de Arte, tinha amigos historiadores de arte, e sempre gostei de desenhos antigos e raros de arquitectura, dos séculos XVIII e XIX, que comecei a coleccionar na década de 1950, com a ajuda de alguns galeristas. Gosto desses desenhos porque nos revelam a alma dos seus autores... Simultaneamente comecei a fotografar arquitectura e a coleccionar fotografias do Seagram Building, e depois voltei para Montreal para impedir a demolição de alguns edifícios históricos... Todos esses interesses acabaram por confluir na criação do Canadian Center for Architecture [CCA].
A sua ideia de criar o CCA, nesse momento e neste lugar, constituiu um gesto de activismo cívico?
Sim. Em 1979, quando o CCA se estava a formar, realizou-se uma importante conferência no âmbito da Confederação Internacional de Museus de Arquitectura (ICAM), juntando personalidades da Europa, dos Estados Unidos e do Canadá, e eu fiz parte do Comité Executivo do evento. Falava-se então da importância de criar museus de arquitectura. A ideia não vinha directamente do exemplo do MoMA, o grande modelo para todos nós era o Royal Institute of British Architects (RIBA).
A criação do CCA foi também um manifesto contra a modernização acelerada e acrítica que Montreal sofria na década de 1970, com a construção de novas auto-estradas e arranha-céus. Foi a sua forma de se declarar politicamente contra a destruição do tecido urbano tradicional?
Sim, sem dúvida. A destruição era terrível. Desde 1973 que fotografava essa destruição e impressionava-me o modo como os típicos “grey stone buildings” estavam a desaparecer do centro de Montreal. Quando me restabeleci na cidade, resolvi criar, com outro sócio, a minha própria empresa de promoção urbana para salvar e reabilitar alguns desses edifícios. Para mim, defender, simultaneamente, a arquitectura das vanguardas e o património histórico faz parte do mesmo gosto pela arquitectura.
Esse ímpeto faz lembrar o activismo de Jane Jacobs contra a destruição do centro de Nova Iorque, na década de 1950, precisamente na época em que a Phyllis Lambert estava envolvida na construção do Seagram Building...
Sim, mas no início não gostava particularmente do que a Jane Jacobs dizia sobre o assunto... Achava que ela “deitava fora o bebé juntamente com a água do banho”. Era preciso perceber bem a sociedade em que nos inseríamos, para poder actuar. No entanto, acho que os seus pressupostos políticos estavam certos.
Podemos então afirmar que a Phyllis Lambert se tornou na Jane Jacobs de Montreal?
Não, não, nem pensar! Como disse, não estive sempre de acordo com ela. Para mim sempre me interessou mais a Jane Jacobs que escreveu o livro The Economy of Cities [1969], sobre o modo como as cidades e os cidadãos se organizam. Admirava-a muito, mas ela não teve sempre razão. Parecia mais interessada em parar os processos de transformação urbana do que em procurar resolvê-los de outro modo...
No seu próprio caso, não existe, portanto, qualquer contradição entre a defesa da modernização do downtown de Manhattan, na década de 1950, e a defesa da manutenção do tecido histórico do centro de Montreal na década de 1970...
Não. Eu vi como a modernização de Chicago tinha simultaneamente beneficiado e apagado partes importantes da cidade, e durante o meu curso de arquitectura envolvi-me em processos de activismo urbano nessa mesma cidade... Não tinha de o fazer, mas era um tema que me apaixonava. Perguntava-me: como transformar, por exemplo, um bairro pobre de população dominantemente negra trabalhando directamente com os seus habitantes?
É possível então concluir que o seu activismo foi sempre, digamos, “pró-arquitectónico”, ao contrário de muitas das posições resistentes de Jane Jacobs?
Sim, é justo concluir isso.
Acreditar na qualidade da arquitectura pode ser também um modo de fazer activismo social?
Sem dúvida, como bem prova a exposição sobre o Processo SAAL, em Portugal, que está agora aqui no CCA. É curioso, porque também aqui, em Montreal, como já referi, houve promotores, grupos e associações cooperativas que ajudaram os habitantes mais carenciados a renovar os seus bairros.
A propósito do CCA, como é que a instituição equilibra essa relação ou esse diálogo entre o tecido criativo local, de Montreal, e a sua ambição de se constituir como um centro de arquitectura internacional?
Como afirmei antes, para mim a arquitectura foi sempre um fenómeno internacional. Resultou sempre da troca de experiências, viagens, ideias que não pertenciam a um único lugar. Quando, na Renascença, se afirma que “o homem é o centro de todas as coisas”, e já não Deus, estabelece-se uma nova relação entre criadores, entre arquitectos, e o mesmo podemos dizer sobre as ideias que conduziram à Revolução Industrial. São ideias de mudança que se partilham. Portanto, porque havia eu de me ocupar apenas da criação local, de Montreal, ou do Canadá? A nossa colecção mostra como existem problemas arquitectónicos comuns, ainda que resolvidos de maneiras distintas, em diferentes contextos.
Qual a importância para o CCA de receber uma grande parte dos arquivos de Álvaro Siza?
A colecção iniciou-se com espólios de arquitectos já desaparecidos, mas percebemos que seria também interessante receber arquivos de arquitectos ainda activos, que pensam, hoje, diferentes modos de intervir e melhorar a vida nas cidades. Por isso, aqui convergem os projectos e as ideias de Peter Eisenman, Aldo Rossi, James Stirling, John Hejduk, e mesmo de Le Corbusier, ainda que este pertença a outro tempo da arquitectura. Temos também espólios de arquitectos mais jovens, como Iñaki Abalos & Juan Herreros, e nessa pluralidade inscreve-se também o trabalho de Siza. O lema do CCA é: “A arquitectura enquanto questão pública”, pensando também na relação dos públicos com as exposições, ou seja, na questão pedagógica. Os espólios antigos mostram-nos problemáticas de outros tempos. Trabalhar e expor arquivos de arquitectos ainda vivos e activos torna essa pedagogia muito mais interessante. O espólio de Álvaro Siza complementa e enriquece muito essa perspectiva.
O CCA é um museu assente na pesquisa da arquitectura, o que nos interessa são as ideias que os arquitectos desenvolvem através do seu pensamento e das suas obras. Deste modo, a nossa colecção acolhe o trabalho de arquitectos que produziram e elaboraram ideias, que reflectiram sobre temas ligados à cidade e definiram um discurso pessoal sobre a arquitectura. Álvaro Siza é um destes arquitectos, sobretudo porque o seu modo de fazer arquitectura influenciou e, ainda hoje, influencia diversas gerações e culturas muito distintas. Estou certas que muitas pessoas, de todas as partes do mundo, estarão interessadas em visitar o CCA para estudar o seu acervo.
Rem Koolhaas, o comissário da Bienal de Arquitectura de Veneza de 2014, entregou-lhe o Leão de Ouro, galardão máximo do evento, afirmando: “Se os arquitectos criam arquitectura, Phyllis Lambert cria arquitectos”. Como reagiu a esta descrição?
[Risos]... Fiquei muito feliz pela atribuição desse galardão, porque, para mim, a arquitectura não envolve apenas a construção de edifícios, mas também o trabalho de pessoas que promovem a compreensão da arquitectura enquanto espaço de vida... Fazer o project management do Seagram Building, com o significado que ele teve naquele tempo, ou trabalhar no CCA, na defesa dos espólios de diferentes criadores, são também formas de influenciar o urbanismo e a arquitectura. São outros modos de “ser arquitecto”.
Na frase de Koolhaas está também implícita a criação de um “sistema de arquitectos”, a que vulgarmente se chama star-system ou star-architects, que Phyllis Lambert bem conhece. Como vê esse sistema?
Esse “sistema” promove, é certo, a ideia de “estrelato”, mas tem a vantagem de trazer a arquitectura para o centro do debate mediático, da cultura popular, levando as pessoas a perceber como ela nos influencia a todos. Se não se falasse de arquitectura, se não se discutisse arquitectura, o mundo seria certamente muito mais pobre...
Como vê a atribuição dos Prémios Pritzker no seio desse “sistema”?
Não estou envolvida na atribuição dos Prémios Pritzker. O meu trabalho é aqui no CCA. No entanto, é importante existir um grande galardão para a arquitectura, tal como existe, por exemplo, para a literatura ou para os promotores da paz... Os arquitectos também trabalham para a paz, também trabalhamos para a formação cultural das pessoas. Por isso, estou de acordo com esse prémio.
Em tempos de crise, como os que vivemos na Europa, regressam as reacções contra esse star-system autoral e contra o que vulgarmente se chama de “arquitectura-espectáculo” por oposição às arquitecturas mais contextuais, mais comprometidas com as necessidades sociais. Como vê essa dicotomia hoje alimentada por muitos críticos e jornalistas de arquitectura?
Essa dicotomia não faz sentido. Trabalhar nos bairros pobres pode ser também um trabalho de autor, tal como trabalhar em contextos degradados ou esquecidos. Veja-se, por exemplo, a obra que Rem Koolhaas acabou de fazer em Milão [reabilitação de um quarteirão industrial para a Fundação Prada, 2015]. É um trabalho de compromisso com o tecido da cidade, muito interessante. Mesmo quando realiza trabalhos mais exuberantes como, por exemplo, na China, Koolhaas coloca sempre questões interessantes. A sua arquitectura lança desafios ao tecido social das cidades: veja a Casa da Música no Porto, a Biblioteca de Seattle ou a Embaixada da Holanda em Berlim. São edifícios que dialogam e provocam os contextos urbanos onde se inserem.