A música e a dor na cabeça de Brian Wilson
A Força de um Génio coloca-nos perante dois Brian Wilson: o jovem genial criador de Pet Sounds, nos anos 1960, e o homem torturado, derrotado, doente, da década de 1980.
Nele, ouvem-se canções pop imaculadas como God only knows, Don’t talk (put your head on my shoulder), Wouldn’t it be nice ou Waiting for the day. À época, muitos viram-no como prenúncio do futuro da pop, mas Pet Sounds não é simplesmente uma obra indispensável da década de 1960. Qualquer que seja o tempo em que o ouçamos, destacar-se-á como guia, feito de luz e escuridão, de dor e alegria, do crepúsculo da inocência, perante as dores da idade adulta que se anuncia: “Let’s not talk about tomorrow/ don’t talk, put your head on my shoulder”.
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Nele, ouvem-se canções pop imaculadas como God only knows, Don’t talk (put your head on my shoulder), Wouldn’t it be nice ou Waiting for the day. À época, muitos viram-no como prenúncio do futuro da pop, mas Pet Sounds não é simplesmente uma obra indispensável da década de 1960. Qualquer que seja o tempo em que o ouçamos, destacar-se-á como guia, feito de luz e escuridão, de dor e alegria, do crepúsculo da inocência, perante as dores da idade adulta que se anuncia: “Let’s not talk about tomorrow/ don’t talk, put your head on my shoulder”.
Para o seu criador, Brian Wilson, Pet Sounds representou o zénite, antes da queda provocada por um cocktail explosivo de drogas, colapso psicológico, traumas de infância e abusos sentimentais. Love & Mercy – A Força de um Génio, que chegou esta semana às salas portuguesas, é o filme sobre Pet Sounds e sobre o longo colapso posterior. É o filme que nos põe dentro da cabeça de Brian Wilson e que se afasta dela para vermos o seu corpo catatónico, perdido, ausente de si mesmo: “Sozinho, assustado, apavorado”, escreve ele num bilhete que é o primeiro sinal do negrume que se esconde por trás da excentricidade.
Estamos lá dentro. Olhamos fascinados para tudo o que se desenrola dentro daquelas quatro paredes. Um rebuliço criativo de uma alegria juvenil que é tão intensa quanto é adulta, magistralmente precisa, a música que vemos nascer. Vemos o jovem maestro, olhar ingénuo e cabelo como capacete a emoldurar o rosto redondo. Vive alheado do mundo que existe além do dos sons que, milagrosamente, se harmonizam na sua cabeça. Dirige um grupo de veteranos e talentosíssimos músicos de sessão, a Wrecking Crew, que gravara com Frank Sinatra, Elvis Presley, Sam Cooke, Dean Martin ou Phil Spector, mas que encontrava em Wilson uma mente brilhante desconhecedora de ortodoxias.
Vemos o que nunca julgámos possível. Estamos na sala 3 dos Westerns Recordings Studios. O ano é 1966, o jovem maestro chama-se Brian Wilson, compositor dos Beach Boys, e aquilo que ali nasce, e que vemos como nunca julgáramos possível, é a criação de Pet Sounds, um dos mais influentes, tocantes e geniais álbuns que a música pop nos legou.
Claro que não é Brian Wilson que vemos, antes Paul Dano, actor de Uma Família à Beira de Um Ataque de Nervos ou de Haverá Sangue. Mas a suspensão da descrença é tal que, a partir de agora, a nossos olhos Dano será para sempre Brian Wilson. Essa é parte da história de Love & Mercy – A Força de um Génio, filme biográfico que conta de forma peculiar o percurso de glória, queda e redenção do herói trágico dos Beach Boys. A outra parte, neste filme com título retirado à primeira canção do primeiro álbum a solo do biografado, editado em 1988, encontramo-la nos tiques nervosos e no olhar ausente de John Cusack (Balas Sobre a Broadway, Alta-Fidelidade), o actor que dá vida a um Brian Wilson afogado em medicamentos e controlado por um terapeuta abusivo, Eugene Landy, interpretado de forma histriónica e cruel por Paul Giamatti.
Esse é o Brian Wilson que não ficou preservado no imaginário popular, o Brian Wilson que não parece o Beach Boy genial de outrora, antes um homem frágil, consumido pelos seus demónios, que procurará fuga nos braços de Melinda Ledbetter (Elizabeth Banks), com quem se casou em 1995 e que é ainda hoje sua companheira. Por tudo isso, o papel de Cusack não se colará à sua pele como o de Paul Dano. Cusack é o contraponto, em modo tragédia romântica com final feliz, do documentário ficcionado que nos leva à Califórnia dos anos 1960, aos Beach Boys, à viagem pela cabeça de Brian Wilson. “Às vezes pergunto-me de onde isto vem”, ouvimo-lo questionar-se nas primeiras cenas. “Se não sou eu. Se é exterior a mim”, continua. “E se perder o juízo e não o recuperar?”, lança por fim, introduzindo a questão que, de certa forma, é o mote de todo o filme.
Na sua redoma
Love & Mercy pode ter o seu protagonista interpretado por dois actores diferentes, em dois contextos distintos, mas não é a versão Wilson de I’m Not There, o filme em que Todd Haynes pôs Cate Blanchett, Heath Ledger ou Christian Bale no corpo de Dylan, procurando extrair das várias máscaras do bardo americano uma imagem mais nítida que a própria biografia conseguiria obter. Love & Mercy é, digamos, uma versão realista do surreal I’m Not There. Curiosamente, o guião, originalmente escrito por Michael Alan Lerner, ganhou a forma que chega agora aos cinemas por intervenção de Oren Moverman, o argumentista de… I’m Not There.
Mas Love & Mercy foi realizado por Bill Pohlad. Mais conhecido pelo seu trabalho enquanto produtor de O Segredo de Brokeback Mountain, A Árvore da Vida ou 12 Anos Escravo (enquanto realizador, este é apenas o seu segundo filme, sucedendo a Old Explorers, de 1990), Pohlad decidiu colocar-se atrás das câmaras perante a insistência dos argumentistas, que o consideraram ideal para a tarefa. Conhecedor profundo da obra dos Beach Boys, em particular de Pet Sounds e do álbum maldito que imediatamente (não) se lhe seguiu, Smile (o colapso de Wilson é paralelo às sessões de gravação, que acompanhamos no filme), acedeu.
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Inicialmente, a ideia seria dividir o filme num tríptico que incluiria também o período em que, após a morte do pai abusivo, em 1973, desconfiado dos seus talentos e afastado dos Beach Boys, Wilson passou, diz a lenda, alguns anos enterrado numa capa. Pohlad pensara em Philip Seymour Hoffman para o papel. A ideia foi porém posta de parte para se fixar nesse espelho entre o génio trabalhando a todo o vapor, ainda que dominado por um pai violento e sinistro e em luta com o primo, o vocalista dos Beach Boys, Mike Love, que não compreendia, e o homem derrotado e doente entregue às mãos de um terapeuta charlatão que o afogava em medicamentos, que lhe sugava a vida e o dinheiro.
Qualquer fã minimamente interessado e conhecedor dos Beach Boys ficará deslumbrado pela admirável reconstituição histórica, reconhecendo a sessão de fotos que originou a capa de Surfin’ Safari, logo a início, ou, mais à frente, a reprodução, quase frame a frame, da gravação do vídeo promocional de Sloop John B. Qualquer interessado em música pop (ou em música, ponto) achará fascinante acompanhar o frenesim do processo de gravação, a beleza celestial das intrincadas harmonias de vozes que vemos nascer ou o ímpeto criador de Wilson: tocando piano preparado, como o fazia John Cage, levando cães para o estúdio, pedindo a um pianista para repetir uma inesperada sequência de notas. “Foi um engano”, defende-se o músico. “Se repetires o erro a cada quatro compassos, deixa de o ser”, responde Wilson.
As sequências das gravações foram filmadas como se de um documentário se tratasse, e pressente-se essa ausência de planeamento rígido. Paul Dano terá passado dias e dias a mergulhar nos registos das sessões de gravação originais, capturando-lhes o espírito e a dinâmica. No momento da rodagem, foram convocados músicos experientes, foram-lhes dadas as pautas e vestidas as roupas de época. Depois, deixou-se que Dano, como dizia e fazia Wilson, “tocasse o estúdio”. São esses os momentos mais fascinantes de Love & Mercy e certamente aqueles que perdurarão de forma mais duradoura na memória dos espectadores. Mas não são eles o filme.
Na sua narrativa em paralelo, ambos os Brian Wilson, o dos anos 1960 e o dos anos 1980, parecem caminhar, sem escapatória possível, para um clímax. No primeiro vemos as tensões com Mike Love e com o pai crescerem. Assistimos ao acumular dos sinais de um colapso anunciado. No segundo, assistimos ao lento desfazer da terrível teia em que se encontrava enredado, a caminho do regresso a uma vida normal e independente. Em ambos, temos Brian Wilson na sua redoma. As personagens de conflito, com excepção da sua maior figura protectora, a futura mulher Melinda, são aquelas que ganham textura de verdadeiras personagens (o pai Murry, o primo Mike Love, o terapeuta Landy). Os restantes, como os irmãos Carl e Dennis Wilson, como a primeira mulher, Marilyn, ou Van Dyke Parks, o seu braço direito no frustrado processo de gravação de Smile, surgem como figurantes para assegurar verosimilhança. No contexto de Love & Mercy, faz sentido que assim seja. Pohlad filmou a história de um homem cujo génio cai em desgraça, a vida de um homem frágil e doente incapaz de aguentar a pressão que lhe colocam nos ombros.
Na última década e meia, Brian Wilson, admirado desde os tempos áureos dos Beach Boys, ganhou novo lugar de destaque no imaginário melómano. A sua influência começou a ser reclamada por inúmeras bandas contemporâneas – uma delas, os Wondermints, gravariam com ele, em 2004, a versão século XXI de Smile; outra delas, os Animal Collective, e em particular Panda Bear, parecem presentes na banda-sonora, editada a partir dos arquivos de Brian Wilson, que o inglês Atticus Ross criou para o filme.
Na última década e meia, Brian Wilson regressou aos discos e aos palcos mais assiduamente e, ainda que nenhum dos álbuns editados desde então tenha sido particularmente memorável (o último, No Pier Pressure, saiu em Abril), a verdade é que a sua simples presença, vivo e criativo, parece ser causa de celebração. Pelo que nos legou lá atrás no tempo. Pelo que aconteceu depois disso. Love & Mercy será, então, um derradeiro gesto para a mitificação definitiva. Brian Wilson vive e sobreviveu. Obrigado por tudo.