Analisar a poesia em exame nacional ou como deturpar um poema
O ser da poesia nada tem que ver, em Sophia, com o que os cenários de resposta do Exame Nacional propõem. Logo, a questão é grave.
De facto, quer para quem faz os exames, quer para quem, com responsabilidades oficiais – caso da presidente da APP – sabe que, em contexto de exame nacional de Português, o texto poético tem de ser avaliado, os poetas podem mesmo, como diz Guerreiro, dar “cabo da cabeça [dos examinadores] com tantas metáforas”. Creio que, para além do que António Guerreiro objectivamente afirma (“onde no poema se lê “ser” os examinadores lêem imediatamente e sem hesitações “ser humano”. Para eles “ser”, substantivado, não pode ser senão isso. Que pensarão eles que é Ser e Tempo, a principal obra de Heidegger? Um tratado de antropologia? Mas mesmo que desconheçam tudo acerca do ser enquanto objecto da filosofia pelo menos desde Parménides, que nunca tenham ouvido falar de essência e de ente e que não saibam o que é a ontologia, não podem, sem erro e violência, interpretar um poema de Sophia de maneira a torná-lo completamente estranho, e até antagónico, aos princípios da poética nele implícita e construir uma parte da prova com base nessa interpretação, pedindo aos alunos um exercício que só pode ser considerado correcto se deturpar completamente o poema.”), há espaço para nos questionarmos sobre o que pode um professor de Português fazer, ao longo do ano lectivo, quanto à leccionação do texto lírico. E o que pode fazer é, por razões várias, mas que merecem debate, manifestamente pouco.
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De facto, quer para quem faz os exames, quer para quem, com responsabilidades oficiais – caso da presidente da APP – sabe que, em contexto de exame nacional de Português, o texto poético tem de ser avaliado, os poetas podem mesmo, como diz Guerreiro, dar “cabo da cabeça [dos examinadores] com tantas metáforas”. Creio que, para além do que António Guerreiro objectivamente afirma (“onde no poema se lê “ser” os examinadores lêem imediatamente e sem hesitações “ser humano”. Para eles “ser”, substantivado, não pode ser senão isso. Que pensarão eles que é Ser e Tempo, a principal obra de Heidegger? Um tratado de antropologia? Mas mesmo que desconheçam tudo acerca do ser enquanto objecto da filosofia pelo menos desde Parménides, que nunca tenham ouvido falar de essência e de ente e que não saibam o que é a ontologia, não podem, sem erro e violência, interpretar um poema de Sophia de maneira a torná-lo completamente estranho, e até antagónico, aos princípios da poética nele implícita e construir uma parte da prova com base nessa interpretação, pedindo aos alunos um exercício que só pode ser considerado correcto se deturpar completamente o poema.”), há espaço para nos questionarmos sobre o que pode um professor de Português fazer, ao longo do ano lectivo, quanto à leccionação do texto lírico. E o que pode fazer é, por razões várias, mas que merecem debate, manifestamente pouco.
O problema reside, a meu ver, numa questão de didáctica e de pedagogia do texto literário. É impossível facultar aos alunos, com leitura metódica efectiva, todos os poemas seja de que poeta for. As razões são de ordem prática: ao elaborar-se um programa escolar selecionam-se textos segundo um critério de qualidade e, assim sendo, que outro poema de Sophia mereceria ser analisado em Exame? Por acaso “Arte Poética II” não deveria ser texto obrigatório a constar nos manuais de Português do 10.º ano? Poema sobre a poesia, aí se explica por que razão a poesia é uma “arte do ser” e, como bem viu Guerreiro, o ser da poesia nada tem que ver, em Sophia, com o que os cenários de resposta do Exame Nacional propõem. Logo, a questão é grave: segundo os critérios, os alunos terão de dar uma resposta errada para terem certo este item do exame. Se os examinadores lessem o artigo de António Guerreiro chegariam a uma conclusão simples: qualquer que seja a resposta dada pelos alunos terá de ter cotação máxima no conteúdo, uma vez que a própria proposta de cenário é um erro crasso por parte dos que conceberam as questões e os respectivos cenários. E a questão, que lateralmente Guerreiro convoca, é mesmo a de dar, para o Exame Nacional desta disciplina, noções de poética dos autores que constam do programa. Noções de poética, isto é, as coordenadas gerais de determinada obra de dado autor, em função do contexto de produção e da comunidade interliterária a que esse autor pertence. A esta luz pode o professor escolher textos que não estão nos manuais – pode e deve fazer das aulas exercícios de leitura contrastiva/comparativa, facultando aos alunos alguma crítica literária, sem cuja leitura os alunos não conseguem apropriar-se do registo científico que, à saída do Ensino Secundário, deveriam dominar.
Em função de uma “pedagogia da admiração” (assim defende Helena Buescu) essas coordenadas de leitura conduziriam, seja em face de que poema for, a um comentário centrado na linguagem do texto em presença, e não em lugares-comuns e leituras superficiais, que é justamente o que os cenários de resposta são. A leitura do texto poético exige, de facto, “grande concentração”, como sabiamente diz Edviges, mas essa concentração deriva de um saber literário que, na relação pedagógica, se transfere do professor para o aluno, consolidando – através da escrita – a capacidade da leitura inferencial. Isso exige questionários que não corrompam os textos literários, algo que, no limite, implicaria que os fazedores dos exames soubessem que a ideia de ser em Sophia não autoriza as perguntas propostas.
Já em 2012, António Guerreiro afirmava o seguinte: “Trata-se sempre de perguntas que não convidam o aluno a ler e a interpretar, mas a repetir leituras e interpretações que lhe foram fornecidas. [...] Algum examinando que se desloque ligeiramente em relação ao "cenário de resposta" pode provocar cataclismos em cadeia: em primeiro lugar, afasta-se dos "critérios específicos de classificação [...]" o que significa fugir do horizonte dos "descritores do nível de desempenho no domínio específico da língua”“. Assim se desautorizam os professores quanto à sua liberdade para corrigir, em função da análise que os estudantes fazem, a expressão escrita e a capacidade inferencial de quem vai a Exame. E assim o acto de ensinar se tem vindo a transformar em corrupção do que, idealmente, o ensino deveria ser – nomeadamente o ensino do Português –, a saber: acto crítico, de verdadeiro rigor, não porque se queira fazer um exame infalível numa disciplina que, porque lida com a linguagem, não pode ser idêntica às matemáticas ou químicas, mas de rigor porque não se pode propor como cenário de resposta correcto o que o poema, neste caso de Sophia, jamais diz. Isso é falta de rigor, Senhores Examinadores. Por muito que mascarem com níveis de desempenho o absurdo dos cenários de resposta que propõem, esses cenários é que são propostas de correcção verdadeiramente subjectivas, feitas, afinal de contas, por quem nunca se deu ao trabalho de ler, para saber o “como diz” da poesia, Ser e Tempo, de Heidegger… E aqui, pergunte-se, como podem os professores de Português aceitar semelhantes dislates e idiotices por parte do IAVE?
Professor e crítico literário