Uma longa batalha sobre a breve vida de um despacho
Ao longo de meses, travou-se em bastidores um braço-de-ferro em torno de uma lei agora revogada. SEC, DGPC e os directores de Serralves e do Chiado falam ao PÚBLICO.
São 550 obras, 400 das quais de artistas portugueses, muitos dos quais referências maiores da arte nacional – dezenas de nomes como Vieira da Silva, Paula Rego, Júlio Pomar, René Bertholo, Lourdes Castro, Palolo, Julião Sarmento, Helena Almeida ou Fernando Calhau. Ao longo da última semana, em Lisboa, tem-se valorizado a importância que essas presenças teriam no reforço dos acervos do Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado. Tem-se também desvalorizado o que importarão a uma instituição com as características programáticas de Serralves, um museu de vocação internacional. Mas no Porto há outra perspectiva: antes sequer do diálogo que faz com o resto da colecção, adquirida tendo-o em conta, esse núcleo “representa o reconhecimento do Estado de que o Museu de Serralves tem uma missão nacional a cumprir”, diz ainda Suzanne Cotter.
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São 550 obras, 400 das quais de artistas portugueses, muitos dos quais referências maiores da arte nacional – dezenas de nomes como Vieira da Silva, Paula Rego, Júlio Pomar, René Bertholo, Lourdes Castro, Palolo, Julião Sarmento, Helena Almeida ou Fernando Calhau. Ao longo da última semana, em Lisboa, tem-se valorizado a importância que essas presenças teriam no reforço dos acervos do Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado. Tem-se também desvalorizado o que importarão a uma instituição com as características programáticas de Serralves, um museu de vocação internacional. Mas no Porto há outra perspectiva: antes sequer do diálogo que faz com o resto da colecção, adquirida tendo-o em conta, esse núcleo “representa o reconhecimento do Estado de que o Museu de Serralves tem uma missão nacional a cumprir”, diz ainda Suzanne Cotter.
Cotter recebeu o PÚBLICO no sábado, quando passavam três dias sobre a demissão do até então director do Museu do Chiado. Uma bomba a rebentar nas mãos da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) e da Secretaria de Estado da Cultura (SEC) a apenas uma semana da inauguração da nova ala do museu lisboeta, aguardada desde 1994.
Recusando-se a acatar um conjunto de ordens directas da tutela, ao bater com a porta, David Santos abriu um vazio de poder num momento chave. E deixou em suspenso a montagem da exposição inaugural. Mas não só. A sua demissão pôs a nu os contornos de uma batalha de bastidores. Um braço-de-ferro mantido em surdina ao longo de meses e motivado por leituras discordantes da letra e espírito de um despacho que visava resolver, por fim, após décadas de indefinição, o destino da totalidade da Colecção SEC.
A Colecção SEC é mais do que o núcleo de Serralves. São mais de mil obras de arte adquiridas pelo Estado a partir de 1975 e até hoje dispersas por diversas instituições e organismos públicos – Chiado e Serralves, mas também o Centro Português de Fotografia e a Câmara Municipal de Aveiro, embaixadas e gabinetes. Um conjunto total até hoje mal estudado e deficitariamente inventariado, com muitas obras em paradeiro incerto.
Assinado pelo secretário de Estado da Cultura a 16 de Setembro de 2013 e publicado a 5 de Fevereiro de 2014, o despacho 1849-A/2014 determinou a afectação da totalidade da colecção à DGPC – em vez de à Direcção-Geral das Artes, que a recebeu de organismos entretanto extintos e não tinha competência para a gerir. Seria pacífico. Mas o mesmo despacho determinava ainda a incorporação da totalidade da Colecção SEC nos acervos do Museu do Chiado – uma ideia que foi sendo trabalhada por sucessivos Governos desde 2006 e que o actual titular da pasta da Cultura transformou em letra de lei.
“Independentemente do processo, o essencial é que eu trabalhei com base na legalidade. Actuei e programei com base num despacho da SEC”, disse esta segunda-feira ao PÚBLICO David Santos, nas suas primeiras declarações públicas após a demissão. O historiador de arte refere-se à proposta que no ano passado apresentou à tutela de inaugurar a nova ala do museu com uma exposição que assinalasse a decisão.
Face ao despacho da SEC, David Santos propôs que a mostra inaugural da nova ala do Chiado se intitulasse Narrativa de uma colecção – o legado da Secretaria de Estado da Cultura ao MNAC-MC. Um título que se manteve até em Abril último lhe chegarem da DGPC indicações informais para alteração de materiais.
Foi a primeira de uma série de cedências da parte do agora ex-director: aceitou mudar o título para Narrativa de uma colecção – Arte Portuguesa na Colecção SEC (1960-1990).
A alteração escamoteava a ideia de entrega da colecção ao Chiado. Mas a tutela pediria mais: a rasura dessa ideia de todos os materiais de divulgação. Face à recusa do director do museu, a 3 de Julho terá surgido a ameaça da revogação do despacho de 2014 pela SEC. Uma ameaça que terá sido efectivada três dias depois, na forma de novo despacho, a aguardar publicação.
Questionada pelo PÚBLICO, a SEC fez na altura uma declaração críptica sobre o caso. Ontem, respondeu a novas perguntas. Entre elas, porque decidiu revogar uma decisão própria com pouco mais de um ano. Jorge Barreto Xavier “considerou que a apresentação institucional da Colecção SEC não estava a ser feita de forma correcta pelo Museu do Chiado”, lê-se no email enviado ao PÚBLICO. Como o argumento para a apresentação era o despacho e “não querendo o SEC que este fosse utilizado contra os seus próprios critérios de leitura institucional […] decidiu revogar”, lê-se ainda.
Originalmente, no despacho, haveria um “propósito de estabilidade relacional entre o Museu do Chiado e a Fundação de Serralves”, lê-se ainda no email – uma alusão à alínea que determina o respeito pelas obrigações protocolares a que a colecção estava já comprometida. Mas a alegada visão de estabilidade ruiu rapidamente. Abriu-se, antes, aquilo que a SEC descreve como uma “disputa gestionária”.
Face a esta resposta, o PÚBLICO voltou a interpelar a SEC procurando saber qual a necessidade de revogar o despacho uma vez esclarecido em bastidores qual o espírito que a tutela lhe pretendia imprimir – isto sabendo que, para precaver situações futuras, poderia sempre ser publicada uma clarificação, uma espécie de adenda. De novo por escrito, a SEC fez saber que não prestaria esclarecimentos adicionais. Não esclareceu também porque não procurou ouvir o Museu de Serralves. “O gabinete do secretário de Estado demonstrou sempre abertura para ouvir […] as várias estruturas públicas […] envolvidas”, lê-se ambiguamente no email.
Mas foi precisamente de Serralves que chegaram à SEC as primeiras notas de mal-estar. Suzanne Cotter diz que logo que o despacho foi publicado “foi questionado pelo presidente da Fundação”, o ex-ministro da Economia Luís Braga da Cruz. Mas a directora de Serralves explica também que, nessa altura, “ficou claro que a responsabilidade de Serralves face ao depósito se mantinha”. Ou seja, “Serralves era responsável pelas obras”.
O primeiro grande embate surgiu oito meses depois, em meados de Outubro de 2014. Foi quando obras do depósito de Serralves emprestadas à Fundação Calouste Gulbenkian surgiram expostas sem menção ao museu portuense nas suas tabelas, apontando, em vez disso, o Chiado. Foi um dos motivos por que, já este ano, no final de Fevereiro, Braga da Cruz acabaria por escrever à tutela, recordando os termos do acordo de depósito da Colecção SEC em Serralves – um depósito por 30 anos, válido pelo menos até 2027 e renovável por períodos de cinco anos, a partir daí.
Na sua carta, Braga da Cruz não menciona a exposição da Gulbenkian. Atem-se aos conteúdos de uma reunião ocorrida a 5 de Fevereiro entre as direcções do Chiado e de Serralves e em que estiveram em discussão os termos do empréstimo que o Chiado pedia a Serralves para a mostra inaugural do museu lisboeta: 114 obras por 16 meses – quase o triplo dos seis meses a que Serralves está protocolarmente obrigado.
Braga da Cruz considerou que tal seria gravoso, manifestou a sua intenção de não considerar o pedido do Chiado e pediu intervenção da tutela máxima: Barreto Xavier.
Como consequência da carta de Braga da Cruz, o PÚBLICO sabe que Barreto Xavier terá procurado aconselhar-se junto da DGPC e que, poucos dias depois, esta o informou que o prazo alargado se justificava pela relevância institucional da exposição e que a antiga denominação da parte da colecção em depósito em Serralves tinha deixado de fazer sentido devido à afectação dos acervos ao Museu do Chiado.
Ou seja, até ao princípio de Março a tutela estava de acordo com a linha de actuação de David Santos em relação à Colecção SEC. Motivo pelo qual este terá feito nova cedência junto dos seus superiores: assinar a nota de crédito das peças de Serralves aceitando a permanência nas tabelas da menção ao depósito em Serralves. Seria a forma acordada entre a DGPC e o Chiado de agilizar a situação.
A mudança no interior da tutela chegaria depois. Ontem, em resposta ao PÚBLICO, a DGPC fez saber que “foi passada mensagem” ao director do Chiado “que era essencial que fossem garantidas as boas relações com a Fundação de Serralves […], estratégicas para o próprio futuro do Museu de Arte Contemporânea-Museu do Chiado”. A DGPC não esclarece em que momento tal mensagem foi passada. Mas afirma que só quando a própria DGPC foi confrontada com o despacho de revogação do SEC deu instruções de alteração de textos. “Como não poderia deixar de ser”, uma vez que “faziam referência a uma situação que havia sido alterada”.
Sem que sobre tal seja questionada, a DGPC inclui depois no seu email um inesperado esclarecimento: “É totalmente falso que a direcção da DGPC tenha solicitado a revogação do despacho ao senhor SEC.”
É novo fio narrativo que embate na falta de esclarecimentos sobre a razão última da revogação.
Num texto de opinião na edição de ontem do PÚBLICO, a historiadora de arte Raquel Henriques da Silva diz que Braga da Cruz passou por cima de Barreto Xavier fazendo esse pedido directamente ao primeiro-ministro. Diz também que Passos Coelho terá ordenado obediência ao SEC – momento em que este teria então decidido revogar a sua própria decisão datada de há pouco mais de um ano.
Na semana passada, ao PÚBLICO, Braga da Cruz não respondeu a questões sobre contactos directos com o Governo. Mas foi frontal ao dizer que “Serralves não gostou que à colecção de Serralves se chamasse colecção do Museu do Chiado.” Na mesma altura, à Lusa optou pelo vernáculo: “Não gostamos que nos venham calcar os calos.”
Suzanne Cotter desvaloriza: diz que uma vez obtido acordo quanto ao prazo de empréstimo e à identificação de peças as preocupações centrais de Serralves estavam garantidas. “Ficámos absolutamente descansados.”
Para a directora do museu do Porto é “contraproducente alimentar qualquer ideia de nós contra eles”. “Sobretudo num momento em que as condições de trabalho são extremamente frágeis e em que frequentemente se tentam instrumentalizar politicamente a arte e a cultura”. Na perspectiva de Cotter não está sequer em causa uma controvérsia. “Parece-me que há é uma série absolutamente natural de questões que as pessoas se começaram a colocar na sequência de um evento muito infeliz e que levou a uma grande perda: a de David Santos à frente do Museu do Chiado.”
Sendo essa perda aparentemente irreversível, para a directora do Museu de Serralves a única coisa pertinente, agora, é discutir qual o trabalho a fazer daqui em diante: “Gostava de ver qualquer coisa construtiva a sair daqui. Não apenas o 'isto é meu isto é teu'. Talvez esta situação levante uma oportunidade. No fim do dia, a preocupação das nossas instituições tem de ser garantir o melhor cuidado possível às obras.”
No que toca à Colecção SEC, é uma questão que reúne poucos consensos, polarizando perspectivas tanto sobre as condições e visibilidade que cada museu lhes pode dar como sobre a própria missão das duas instituições. Mais consensual é o protesto público contra a forma como a SEC geriu todo o processo que culminou na demissão de David Santos.
Às 19h30 desta terça-feira, o manifesto de repúdio lançado no domingo por agentes do sector da arte contemporânea e dirigido à presidente da Assembleia da Republica e ao primeiro-ministro reunia 650 assinaturas, um número elevado para um caso semelhante. Mas mais do que os números contam os nomes: entre curadores e artistas, galeristas, historiadores e críticos de arte, funcionários de museus, estão solidariamente reunidos em torno do tema muitos dos mais relevantes agentes do sector. E pretendem manifestar-se na inauguração das novas instalações do Museu do Chiado, num gesto público comum em áreas como o teatro e a dança, mas de contornos raros no sector das artes visuais.
O PÚBLICO sabe também que os técnicos superiores do Museu do Chiado decidiram colectivamente não estar na inauguração da exposição. Um voto de protesto contra a actuação de Barreto Xavier e de solidariedade com o ex-director em que recusarão qualquer presença em eventos relativos à inauguração da Rua Capelo.
Com ou sem protestos, com a revogação do despacho de Fevereiro de 2014, o destino a dar à Colecção SEC poderá voltar agora ao mesmo ponto de indefinição em que estava antes.