Carta para quando a criança souber ler

Sê feroz, acredites no que que acreditares (mesmo que seja o meu oposto) acredita orgulhosamente e declara-o ao jantar. Arruina-me a digestão que somos todos tigres de papel, não me dês o desgosto duma filha tépida, não admitas quem do nosso amor duvide

Foto
Kai Pfaffenbach/Reuters

Cria minha,

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Cria minha,

claro que é por seres nossa, mas caguei: és tão única, e mágica como todas as outras, só é mais evidente porque só nós é que te conhecemos. A tua jovem tia também tinha uma t-shirt em que mandámos estampar “Não é por ser deles... mas eu sou linda!”, era verdade para ela, é verdade para ti.

Já sabia que o belo que dói, o insuportável, o medonho, o sagrado, o malcheiroso e o sublime se podiam concentrar num só ponto (o Baudelaire, o Goya e o Beethoven são amigos da casa), mas em menos dum metro e quinze quilos, por mais que acrescidos a ramelas e macacos do nariz... nunca tinha visto.

A graça, o mau-feitio e a pele de papel são da tua mãe; o nariz pequenitates e a gargalhada desbragada da tia Raquel; a compostura e os primeiros 20 segundos de timidez da tia Marta; a queda para os botões do tio João; o amor à praia da avó Tété; a sobrancelha e a falsa seriedade da avó Lena; a sonsice e a escatologia do tio Hugo; o perdão fácil do avô João; a malandrice gozona do avô Rui; os olhos claros e astigmáticos, o seres torta para além do necessário e a alegria da música deste teu paizinho; no resto és a titi Inês. Desenhamos-te como um composto de antepassados porque é assim que os pobres, sem genealogia, se propagam no tempo.

Antes de ti só havia o amor. Eu e a tua mãe cruzámo-nos numa sala escura a ler papéis na parede: ela armada em dura, eu meio desgrenhado, cara de bebé. Fizemo-nos amigos, radicais, um matava outro esfolava, expulsos juntos pelo professor de Economia Aplicada, sempre sentadinhos com ar de sonsos na barricada, sem esforço, sempre colados a brigar, a chamarmo-nos nomes feios, a deitar a língua de fora um ao outro, a discordar sobre tudo o que não é essencial.

Depois ela foi a primeira a fazer-me rir após a morte do teu bisavô, gargalhei no anfiteatro (expulso sozinho dessa vez) e soube que a ia carregar o resto da existência. Numa esplanada longe percebemos como ia ser, fotografámos o momento cada um com sua máquina, a tua mãe primorosamente a preto-e-branco, grande plano ao cabelo preso na nuca, eu de boina à contraluz, ar preocupado; ainda nos podes ver na coluna da sala, cinco molduras acima da televisão.

Andámos e andámos e cá viemos para casa. Tínhamos um colchão e duas cadeiras de lona, um tijolo para a música, a tv em cima do caixote da tv e pilhas de livros roubados aos teus avós. Muito frio rapámos no primeiro Inverno, a tua mãe varria de sobretudo e eu colava papelinhos nas paredes. Veio a bonança e a borrasca, vieram os gatos e vieste tu, veio França e o regresso, e foi tudo intensamente desejado e ainda mais intensamente vivido. E tu mais do que tudo.

Sê feroz, acredites no que que acreditares (mesmo que seja o meu oposto) acredita orgulhosamente e declara-o ao jantar. Arruina-me a digestão que somos todos tigres de papel, não me dês o desgosto duma filha tépida, não admitas quem do nosso amor duvide.

Frui a família, a da genética e a que achares no mundo. Honra-a sendo tu mesma, lembra-te que quem não te quer não te merece. O tempo peneira tudo e o amor brilha no meio da gravilha como ouro em prato de garimpeiro.

Sê gentil mais do que bem-educada. Boa-educação é para meninas mas firmeza com os fracos é coisa de tirano. Calar e morder a língua às vezes é preciso, vais saber quando é preciso gritar, e nessa altura: grita!

Não mistures cerveja com vinho, não te metas com os bichos quando eles estão a comer, não fujas à polícia a não ser que tenhas uma hipótese muito certa de te safares, a ressaca limpa-se com água e se um tipo te agarrar a mal: joelhada nos tomates.

Finalmente, não tenhas medo do mergulho na dor, amar é um risco tão mais saboroso quão consciente. Dar o flanco à poesia é o único sal que mordemos no fim, e crê que amar é sofrer. Amar é sempre sofrer... e vale sempre a pena.

Com um beijo do teu pai,