Borrachas e erros por apagar
Aprender em Londres é quase sempre uma coisa catita. Vejam naquilo que toda a gente reparou em Euclides Tsakalotos, o sucessor de Varoufakis na pasta das Finanças gregas: estudou em Oxford. Mas só estudar em Londres não chega. Veja-se o que sucedeu a outro senhor que por lá estudou, por sinal um reputado cientista cognitivo, Guy Claxton. Deu-lhe para atacar as borrachas! Segundo ele, essas pequenas companheiras de todas as infâncias devem ser banidas. Apagadas para sempre. E porquê? Porque, diz ele do alto da sua sabedoria cimentada no King’s College, elas promovem “uma cultura da vergonha e do erro”. E também da mentira. Pois quem apaga e reescreve estará a mentir aos outros e a si próprio, como se dissesse: acertei à primeira, não emendei nada, sou genial! Ora este raciocínio é, no mínimo, idiota. Uma borracha, como o botão “delete” de computadores e similares, não serve só para apagar erros. Serve também para apurar a escrita ou o traço. Se no King’s College ensinam a “acertar à primeira”, pobre King’s College… É que o leque dos que “não acertam à primeira” enche toda a história das artes e do pensamento. A criação é, naturalmente, um processo de evolução onde o autor procura sempre o melhor traço, a melhor frase, o melhor som. O que fica para trás, preterido nessa escolha, é “vítima” da borracha, do pincel, do escopro, do ouvido. Não tem nada que ver com “culpabilização” nem com “coisas do diabo”, como sugere Claxton, mas sim com a mais normal das actividades humanas: o aperfeiçoamento. Se isso se aprende desde logo nas escolas, tanto melhor. Louvada seja, pois, a borracha. Apaguemos, antes, a sugestão de Claxton.
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Aprender em Londres é quase sempre uma coisa catita. Vejam naquilo que toda a gente reparou em Euclides Tsakalotos, o sucessor de Varoufakis na pasta das Finanças gregas: estudou em Oxford. Mas só estudar em Londres não chega. Veja-se o que sucedeu a outro senhor que por lá estudou, por sinal um reputado cientista cognitivo, Guy Claxton. Deu-lhe para atacar as borrachas! Segundo ele, essas pequenas companheiras de todas as infâncias devem ser banidas. Apagadas para sempre. E porquê? Porque, diz ele do alto da sua sabedoria cimentada no King’s College, elas promovem “uma cultura da vergonha e do erro”. E também da mentira. Pois quem apaga e reescreve estará a mentir aos outros e a si próprio, como se dissesse: acertei à primeira, não emendei nada, sou genial! Ora este raciocínio é, no mínimo, idiota. Uma borracha, como o botão “delete” de computadores e similares, não serve só para apagar erros. Serve também para apurar a escrita ou o traço. Se no King’s College ensinam a “acertar à primeira”, pobre King’s College… É que o leque dos que “não acertam à primeira” enche toda a história das artes e do pensamento. A criação é, naturalmente, um processo de evolução onde o autor procura sempre o melhor traço, a melhor frase, o melhor som. O que fica para trás, preterido nessa escolha, é “vítima” da borracha, do pincel, do escopro, do ouvido. Não tem nada que ver com “culpabilização” nem com “coisas do diabo”, como sugere Claxton, mas sim com a mais normal das actividades humanas: o aperfeiçoamento. Se isso se aprende desde logo nas escolas, tanto melhor. Louvada seja, pois, a borracha. Apaguemos, antes, a sugestão de Claxton.
Mas há, em todas as épocas e áreas, muitos erros que ficam por apagar. Há um, divertido, que pode ler-se no catálogo MENAS, o certo do errado, o errado do certo, editado pelo Museu da Língua Portuguesa de São Paulo, Brasil. A dada altura, o artista plástico e escritor Nuno Ramos conta esta história, já velha, que atribui ao sambista Paulinho da Viola. Diria este que Cartola, um dos maiores sambistas da história do Brasil, pôs de parte um dos seus sambas por ter uma rima errada. Não usou a borracha, usou o silêncio. O samba era bonito, mas errar não fazia parte dos seus planos. Qual era o erro? O final do samba Fiz por você o que pude: “Mas fiz uma transfusão/ Eis que Jesus me premeia/ Surge outro compositor/ Jovem de grande valor/ Com o mesmo sangue na veia.” Nuno Ramos comenta: “Está errado, mas é para rimar (…). Mas quando soube que estava errado, o Cartola parou de cantar. Neste caso é uma pena.” Pois é. É uma pena. E é pena maior que o Museu da Língua estampe tal história sem, ao menos, explicar o “erro”. É que, na verdade, Cartola não errou. “Premeia” é correcto no português de Portugal e incorrecto no português do Brasil (não, não mudou com o acordo ortográfico). A tal ponto que os dicionários merecedores desse nome explicam assim no verbo “premiar”: Presente do indicativo: premeio, premeias, premeia, premiamos (â), premiais, premeiam; variante brasileira: premio, premias, premiam. Como se sabe, por cá, “o troféu premeia o artista” e “o polícia premia (no sentido de comprimir, apertar) o gatilho”. Só que, no Brasil, a forma “premia” serve para essas duas frases: “premia o artista”, “premia o gatilho”.
Lição a tirar daqui? O insustentável peso da ignorância pura. Cartola podia, como pôde, recorrer à grafia portuguesa, tal como alguns portugueses recorrem à grafia brasileira para compor a gosto ideias ou frases. Não é erro. É o uso de uma outra variante válida no mesmo idioma, o português. Isto já tinha tentado explicar o professor Pasquale Cipro Neto no jornal Folha de São Paulo, a 6 de Novembro de 2008, a propósito desta mesmíssima história (a de Cartola), escrevendo: “Não custa saber e entender que as línguas apresentam variações de uso, época, situação, região, etc.”
Mas pelos vistos custa. E custa até ao Museu da Língua de São Paulo, que deixou estampar tal história sem explicação condigna. No entanto, na contracapa do citado catálogo, lê-se, em letras garrafais: “Quero ser um poliglota na minha própria língua.” Quer mesmo? Ou é apenas um pensamento vago para uma qualquer borracha apagar?