Os Sleaford Mods continuam a dizer não
James Williamson grita a vida que o rodeia com uma verve e um humor desarmantes. Andrew Fearn cria música tão minimal quanto eficiente. Key Markets é o novo álbum da banda que este sábado se estreia em Portugal no NOS Alive.
“This daylight robbery is now so fucking hateful/ completely exempted from the vast majority/ in chains”, dispara Jason Williamson em Face to faces, uma das novas canções. Canta em cima da produção minimal criada por Andrew Fearn, que recorre a pouco mais do que baixo, bateria e sons esparsos para criar o chão duro (aspereza punk, ataque hip-hop) em que as palavras se deitam e a partir do qual se erguerão, firmes, surpreendentes, perante nós.
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“This daylight robbery is now so fucking hateful/ completely exempted from the vast majority/ in chains”, dispara Jason Williamson em Face to faces, uma das novas canções. Canta em cima da produção minimal criada por Andrew Fearn, que recorre a pouco mais do que baixo, bateria e sons esparsos para criar o chão duro (aspereza punk, ataque hip-hop) em que as palavras se deitam e a partir do qual se erguerão, firmes, surpreendentes, perante nós.
No próximo sábado, dia 11, os Sleaford Mods estreiam-se em Portugal, integrados no cartaz do NOS Alive. Tocam a uma hora precoce, às 18h30, antecedendo no palco Heineken a actuação dos Dead Combo. Quando o duo iniciar o seu concerto, no Passeio Marítimo de Algés já se terão ouvido os Muse, cabeças de cartaz do primeiro dia, já se terão ouvido os Mumford & Sons e os Prodigy, destaques desta noite de sexta, e ainda teremos pela frente os históricos Jesus & Mary Chain, os aparentemente eternos Mogwai, as revelações Sam Smith ou Chet Faker. Ainda assim, arriscamos dizer que a música mais relevante a passar naquele dia pelos palcos montados em Algés será protagonizada por dois homens que agem nos antípodas do habitual espectáculo pop rock. Mais, que abominam o habitual espectáculo pop rock. E abominam também a espiral descontrolada do capitalismo tardio em que vivemos, os conservadores de James Cameron, no poder em Inglaterra, e os xenófobos do UKIP, felizmente sem poder, e o vazio da alternativa dos trabalhistas, e as tretas que um homem ou uma mulher têm de aturar em empregos frustantes, extenuantes e escandalosamente mal pagos, bem como a inércia que contamina tantos dos que os rodeiam: “You’re trapped/ me too/ Alienation?/ No one’s bothered”, soletram, ironia paredes-meias com desespero, no primeiro single do novo álbum, No one’s bothered.
O sotaque pode ser o cerrado das East Midlands inglesas, tal como são indiscutivelmente inglesas as expressões, as referências e o calão que irrompe a cada dois versos. A imprensa inglesa tem defendido que Key Markets pode levá-los aos dez mais da tabela de vendas britânicas e o concerto que deram no recente festival de Glastonbury, filmado pela BBC, mantinha-se no topo dos mais vistos. Surpreendente? Talvez não. Numa entrevista recente ao The Guardian, Williamson explicava assim o contexto da sua música: “A verdade é que não existe futuro para muitas das pessoas aqui, por isso algumas delas lixam tudo ao cair nas drogas ou no crime, mas a maioria consegue aguentar-se. Trabalham em empregos de merda toda a vida e gozam uns com os outros para passar o tempo. É essa a sua vida, é essa a sua realidade. É essa experiência que quero articular e é esse humor que guardo comigo. Além disso, quem mais está a escrever e a cantar sobre isto?”.
Debaixo do brilho
Mas os Sleaford Mods, apesar de tão notoriamente ingleses, não se contêm nas ilhas. Concordando ou não, qualquer habitante do mundo ocidental compreende aquilo de que fala James Williamson, o homem que, já trintão, pôs para trás de si duas décadas a tentar criar música de guitarra em punho para pôr em cena as diatribes que lhe saltavam do cérebro para as páginas de um caderno. Andrew Fearn, copo de cerveja na mão, carrega no enter do laptop, a música arranca, e o produtor nascido em 1971, quarentão portanto, abanará a cabeça ao som da canção e das palavras que Williamson, igualmente quarentão, nascido em 1970, arranca a si próprio com uma intensidade à beira do delírio que, neste preciso momento da história, é inspirador e contagiante.
O som não mudou radicalmente em relação aos anteriores Austerity Dogs e Divide and Exit: o segredo está nos detalhes, no baixo sintetizado de Silly me, P-funk para tempos de austeridade, na sugestão dub e na guitarra sinistra de Rupert trousers. O tom também não mudou – como poderia se o mundo se mantém o mesmo? “Que pena o voto no ‘não’ não vir acompanhado de um efeito Cinderela sobre todos os leitõezinhos neo-liberais, transformando-os em poças de carne queimada e desmembrada à meia-noite”, twittou Williamson às 22h de domingo, 5 de Julho, o dia do referendo grego.
Um novo álbum é menos um novo álbum do que a continuação desta conversa que temos de ter. O mundo não pára, isso é certo, e os Sleaford Mods continuam a vê-lo na sua perpétua mudança – como já explicámos, não gostam do que vêem. Key Markets, gravado entre o Verão e o Outono de 2014 e com edição marcada para o próximo dia 24 de Julho, não muda o foco. “Em certos momentos é bastante abstracto, mas ainda lida em grande parte com a desorientação da existência moderna”, declarou Williamson em Junho. “Ainda aborda assassinatos de carácter, as ilusões de grandeza e a inutilidade das políticas do governo. Um clássico. Que se fodam."
Os Sleaford Mods mostram o que se mantém (cada vez menos) escondido sob o brilho intenso da sociedade do espectáculo e da finança erguida a um altar. Os Sleaford Mods dizem não. É importante ouvi-los.