O que existe no avesso da palavra?
A partir de dezenas de Livros de Artista, que Lourdes Castro começou a fazer nos anos 50, uma exposição na Gulbenkian percorre o seu trabalho através de obras habitadas pelo livro, a palavra ou a linguagem. Poesia, cozinha, moda, uma cor, uma linha – “tudo tem interesse”.
Lourdes Castro olha agora para esse avesso – “gosto de ver o avesso, acho-o bonito, tudo pode ter interesse” – e inicia uma nova página do seu livro, em que borda as linhas desse avesso. A palavra, que já não era palavra, muda outra vez, deslaça-se um pouco mais. E Lourdes volta a virar a página e descobre o avesso do avesso. E borda-o. Podia continuar assim até ao infinito. A palavra recompõe-se noutras formas, enrola-se sobre ela mesma, perde-se no espaço. É o avesso do avesso do avesso do avesso.
Os livros bordados, da série Avessos Encadeados, fazem parte da exposição Todos os Livros, uma iniciativa da Biblioteca de Arte da Gulbenkian com obras de Lourdes Castro (Madeira, 1930) e curadoria de Paulo Pires do Vale, que estará até 26 de Outubro na Galeria de Exposições Temporárias do Museu Gulbenkian.
São cerca de 50 livros, que Lourdes assume como Livros de Artista. Pires do Vale explica: “Trata-se de livros nos quais existe uma intencionalidade da artista em criar uma obra que tem uma unidade.” Os conhecidos Álbuns de Família, nos quais Lourdes junta tudo o que encontra relacionado com aquele que tem sido o seu grande tema, as sombras, não foram aqui incluídos em parte porque ainda são uma obra aberta, em construção.
Foi no final da década de 50 do século XX que Lourdes Castro começou a fazer livros. “Nessa altura, a ideia de que o artista poderia tornar um livro uma obra de arte em si era ainda pouco habitual”, escreve, num texto para o catálogo (que se pretende definitivo sobre os livros de Lourdes Castro), Johanna Drucker, especialista em Livros de Artista.
Mas Lourdes diz que não houve nada de planeado. “Temos papel na mão, tesoura… é o que está à nossa volta. Depois um dia pega-se, começa-se a dobrar, faz-se e vai-se por aí fora. Mas não fiz nada que não houvesse já no mundo”. É tão simples como aprender uma língua. “Começas por uma palavra. E depois ou cai ou segue contigo. Se segue contigo, vais desenvolvendo esse caminho, que no fundo são vários caminhos. Há sempre o principal e depois os outros que se juntam, os materiais que entram, a poesia, um texto de que gosto e que quero guardar para a vida.”
Muitos dos livros partem precisamente de poemas. “Escrevo à mão para guardar, para memorizar. Há coisas que é no ler que entram em ti, que lês tantas vezes, tantas vezes, que as sabes de cor”. Mas quando a artista os copia à mão, os poemas transformam-se. Já não são só Herberto Helder, Rilke, Paul Eluard ou Rimbaud – são também Lourdes Castro. “Quando escreves é outra linguagem e tens que cuidar dessa linguagem o melhor que podes. E nessa ocasião transforma-se noutra coisa. Já não é só o poema, o livro entrou em mim e já estou lá dentro”. Mas, acrescenta sorrindo, “estou em boa companhia”.
Noutros livros o texto é apenas mais um elemento gráfico. “Há alguns em que um texto pronto já me servia, cortava-o por onde queria”. Usou várias vezes um pequeno Caderno de Conversação Português-Francês do século XIX cujos diálogos educadíssimos, num português hoje arcaico, gravou com um pirogravador, em coloridos livros em plexiglas brancos ou rosa fluorescente.
Compulsão arquivística
Os materiais que Lourdes estava a usar nas suas obras maiores entravam também nos livros que ia fazendo, por isso esta viagem por “todos os livros” é uma viagem pela obra de Lourdes Castro. “O que quisemos foi mostrar não apenas os livros mas obras onde a presença do livro, da palavra ou da linguagem se torna essencial”, explica o curador Paulo Pires do Vale.
Logo à entrada está um trabalho que vem do tempo em que Lourdes era aluna das Belas Artes, uma pintura de uma amiga recostada a ler e, ao lado, uma frase: Que lês Maria Alice?”.
Depois entramos no mundo dos livros, começando por Um Livro de Modas, de 1956, no qual junta recortes de revistas de moda, amostras de tecido, alfinetes ou botões. À semelhança deste, outros livros desta exposição surgem ligados a esse desejo de acumulação relacionado com um tema, que pode ser a moda ou a cozinha, como no divertidíssimo Livro de Cozinha (1961) que, numa das páginas, sobre um cesto de frutas e legumes, tem até, coladas, moscas verdadeiras.
“O que é curioso na obra de Lourdes”, diz Paulo Pires do Vale, “é que há uma compulsão arquivística, um lado excessivo e caótico que se revela nestas colagens e acumulações. Mas ao mesmo tempo há uma procura do essencial que se revela na linha de uma sombra”. E, afirma o curador, os livros acompanham esse caminho no sentido da depuração.
Lourdes concorda. “É que os objectos encheram-me a casa”, brinca, para logo de seguida explicar que “um dia olhas para a sombra e a sombra vai mais além”. Recorda os ensinamentos do budismo e em particular a Sutra do Coração. “Atravessas o rio e vais de jangada, mas quando chegas ao outro lado já não acartas mais a jangada. É isso o ir para além”.
Esse caminho para a depuração está na exposição, que inclui, por exemplo, dois dos famosos lençóis bordados, com amigos de Lourdes a ler, representados apenas pelas linhas dos corpos deitados e do livro que seguram nas mãos. Ou o trabalho de Lourdes com a transparência. “Com o plexiglas pude desenvolver a transparência”, afirma, a propósito de um livro em que o texto aparece gravado em páginas transparentes sobrepostas, o que faz com que as palavras das linhas de cima se leiam claramente e as outras se desvaneçam aos nossos olhos.
Mas, quando estamos quase a chegar ao fim, encontramos aquilo que Paulo Pires do Vale descreve como “uma exposição dentro da exposição” e estamos novamente no universo arquivístico. Chama-se Un Autre Livre Rouge (por causa do Livro Vermelho de Mao) e é um trabalho iniciado em 1973 por Lourdes e Manuel Zimbro (Lisboa, 1944 – Madeira, 2003), que durante algum tempo recolheram tudo o que se relaciona com a cor encarnada.
O livro, conta a artista, foi sempre pensado para ser exposto, mas até hoje não tinha sido mostrado em público. São dois volumes, embora aqui se mostre apenas um, no qual cravos vermelhos do 25 de Abril se misturam com cartazes das paredes de Paris, as referências à história de arte se cruzam com imagens das festas do Colete Encarnado, um postal do Benfica ou um menu de um jantar em que tudo era encarnado.
Este podia ser, como os Avessos, um trabalho infinito. Mas houve um momento em que Lourdes e Manuel pararam. “É como um vestido – se o cortas pelo joelho já não o fazes comprido”, diz a artista. “Vais de um sítio para outro, já não levas as coisas, e há outro assunto que te interessa. Pareceu-nos que o essencial já tinha sido dito.” E se não foi exposto antes é porque não tinha que ser. Muitos outros trabalhos de Lourdes demoraram anos até serem mostrados. “Não tenho pressa. Faço, está feito, está ali. Logo a seguir há outra necessidade que me ocupa.”
Presente em Un Autre Livre Rouge, como em muitos outros desta exposição, está o humor – um dos melhores exemplos é uma página de um dos livros na qual Lourdes apresenta o seu nome: com uma imagem da Virgem e outra de Fidel Castro, explica que é Lourdes como a Nossa Senhora [de Lourdes] e Castro como o líder cubano. Humor? Sim, diz, “porque acho que é bom, la joie, porque tenho, porque gosto de me divertir, deve ser isso”.
O resto, o resto é o “aprender a ir mais para além”, é o “estar atento”, é o “conseguir dizer-se o que se tem a dizer e ser o mais preciso possível”, é o “sermos exigentes connosco próprios”. A acumulação de coisas é só mais uma forma de estarmos atentos (quando procuramos o vermelho é ele vem ter connosco, como acontece com a sombra – “tens tanta sombra nos teus olhos que vês logo onde está a palavra sombra”). Seja no excesso ou a linha, no muito ou no essencial, no direito ou no avesso, não se trata de uma busca, diz Lourdes. É simplesmente “experimentar, estar, respirar”.
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Lourdes Castro olha agora para esse avesso – “gosto de ver o avesso, acho-o bonito, tudo pode ter interesse” – e inicia uma nova página do seu livro, em que borda as linhas desse avesso. A palavra, que já não era palavra, muda outra vez, deslaça-se um pouco mais. E Lourdes volta a virar a página e descobre o avesso do avesso. E borda-o. Podia continuar assim até ao infinito. A palavra recompõe-se noutras formas, enrola-se sobre ela mesma, perde-se no espaço. É o avesso do avesso do avesso do avesso.
Os livros bordados, da série Avessos Encadeados, fazem parte da exposição Todos os Livros, uma iniciativa da Biblioteca de Arte da Gulbenkian com obras de Lourdes Castro (Madeira, 1930) e curadoria de Paulo Pires do Vale, que estará até 26 de Outubro na Galeria de Exposições Temporárias do Museu Gulbenkian.
São cerca de 50 livros, que Lourdes assume como Livros de Artista. Pires do Vale explica: “Trata-se de livros nos quais existe uma intencionalidade da artista em criar uma obra que tem uma unidade.” Os conhecidos Álbuns de Família, nos quais Lourdes junta tudo o que encontra relacionado com aquele que tem sido o seu grande tema, as sombras, não foram aqui incluídos em parte porque ainda são uma obra aberta, em construção.
Foi no final da década de 50 do século XX que Lourdes Castro começou a fazer livros. “Nessa altura, a ideia de que o artista poderia tornar um livro uma obra de arte em si era ainda pouco habitual”, escreve, num texto para o catálogo (que se pretende definitivo sobre os livros de Lourdes Castro), Johanna Drucker, especialista em Livros de Artista.
Mas Lourdes diz que não houve nada de planeado. “Temos papel na mão, tesoura… é o que está à nossa volta. Depois um dia pega-se, começa-se a dobrar, faz-se e vai-se por aí fora. Mas não fiz nada que não houvesse já no mundo”. É tão simples como aprender uma língua. “Começas por uma palavra. E depois ou cai ou segue contigo. Se segue contigo, vais desenvolvendo esse caminho, que no fundo são vários caminhos. Há sempre o principal e depois os outros que se juntam, os materiais que entram, a poesia, um texto de que gosto e que quero guardar para a vida.”
Muitos dos livros partem precisamente de poemas. “Escrevo à mão para guardar, para memorizar. Há coisas que é no ler que entram em ti, que lês tantas vezes, tantas vezes, que as sabes de cor”. Mas quando a artista os copia à mão, os poemas transformam-se. Já não são só Herberto Helder, Rilke, Paul Eluard ou Rimbaud – são também Lourdes Castro. “Quando escreves é outra linguagem e tens que cuidar dessa linguagem o melhor que podes. E nessa ocasião transforma-se noutra coisa. Já não é só o poema, o livro entrou em mim e já estou lá dentro”. Mas, acrescenta sorrindo, “estou em boa companhia”.
Noutros livros o texto é apenas mais um elemento gráfico. “Há alguns em que um texto pronto já me servia, cortava-o por onde queria”. Usou várias vezes um pequeno Caderno de Conversação Português-Francês do século XIX cujos diálogos educadíssimos, num português hoje arcaico, gravou com um pirogravador, em coloridos livros em plexiglas brancos ou rosa fluorescente.
Compulsão arquivística
Os materiais que Lourdes estava a usar nas suas obras maiores entravam também nos livros que ia fazendo, por isso esta viagem por “todos os livros” é uma viagem pela obra de Lourdes Castro. “O que quisemos foi mostrar não apenas os livros mas obras onde a presença do livro, da palavra ou da linguagem se torna essencial”, explica o curador Paulo Pires do Vale.
Logo à entrada está um trabalho que vem do tempo em que Lourdes era aluna das Belas Artes, uma pintura de uma amiga recostada a ler e, ao lado, uma frase: Que lês Maria Alice?”.
Depois entramos no mundo dos livros, começando por Um Livro de Modas, de 1956, no qual junta recortes de revistas de moda, amostras de tecido, alfinetes ou botões. À semelhança deste, outros livros desta exposição surgem ligados a esse desejo de acumulação relacionado com um tema, que pode ser a moda ou a cozinha, como no divertidíssimo Livro de Cozinha (1961) que, numa das páginas, sobre um cesto de frutas e legumes, tem até, coladas, moscas verdadeiras.
“O que é curioso na obra de Lourdes”, diz Paulo Pires do Vale, “é que há uma compulsão arquivística, um lado excessivo e caótico que se revela nestas colagens e acumulações. Mas ao mesmo tempo há uma procura do essencial que se revela na linha de uma sombra”. E, afirma o curador, os livros acompanham esse caminho no sentido da depuração.
Lourdes concorda. “É que os objectos encheram-me a casa”, brinca, para logo de seguida explicar que “um dia olhas para a sombra e a sombra vai mais além”. Recorda os ensinamentos do budismo e em particular a Sutra do Coração. “Atravessas o rio e vais de jangada, mas quando chegas ao outro lado já não acartas mais a jangada. É isso o ir para além”.
Esse caminho para a depuração está na exposição, que inclui, por exemplo, dois dos famosos lençóis bordados, com amigos de Lourdes a ler, representados apenas pelas linhas dos corpos deitados e do livro que seguram nas mãos. Ou o trabalho de Lourdes com a transparência. “Com o plexiglas pude desenvolver a transparência”, afirma, a propósito de um livro em que o texto aparece gravado em páginas transparentes sobrepostas, o que faz com que as palavras das linhas de cima se leiam claramente e as outras se desvaneçam aos nossos olhos.
Mas, quando estamos quase a chegar ao fim, encontramos aquilo que Paulo Pires do Vale descreve como “uma exposição dentro da exposição” e estamos novamente no universo arquivístico. Chama-se Un Autre Livre Rouge (por causa do Livro Vermelho de Mao) e é um trabalho iniciado em 1973 por Lourdes e Manuel Zimbro (Lisboa, 1944 – Madeira, 2003), que durante algum tempo recolheram tudo o que se relaciona com a cor encarnada.
O livro, conta a artista, foi sempre pensado para ser exposto, mas até hoje não tinha sido mostrado em público. São dois volumes, embora aqui se mostre apenas um, no qual cravos vermelhos do 25 de Abril se misturam com cartazes das paredes de Paris, as referências à história de arte se cruzam com imagens das festas do Colete Encarnado, um postal do Benfica ou um menu de um jantar em que tudo era encarnado.
Este podia ser, como os Avessos, um trabalho infinito. Mas houve um momento em que Lourdes e Manuel pararam. “É como um vestido – se o cortas pelo joelho já não o fazes comprido”, diz a artista. “Vais de um sítio para outro, já não levas as coisas, e há outro assunto que te interessa. Pareceu-nos que o essencial já tinha sido dito.” E se não foi exposto antes é porque não tinha que ser. Muitos outros trabalhos de Lourdes demoraram anos até serem mostrados. “Não tenho pressa. Faço, está feito, está ali. Logo a seguir há outra necessidade que me ocupa.”
Presente em Un Autre Livre Rouge, como em muitos outros desta exposição, está o humor – um dos melhores exemplos é uma página de um dos livros na qual Lourdes apresenta o seu nome: com uma imagem da Virgem e outra de Fidel Castro, explica que é Lourdes como a Nossa Senhora [de Lourdes] e Castro como o líder cubano. Humor? Sim, diz, “porque acho que é bom, la joie, porque tenho, porque gosto de me divertir, deve ser isso”.
O resto, o resto é o “aprender a ir mais para além”, é o “estar atento”, é o “conseguir dizer-se o que se tem a dizer e ser o mais preciso possível”, é o “sermos exigentes connosco próprios”. A acumulação de coisas é só mais uma forma de estarmos atentos (quando procuramos o vermelho é ele vem ter connosco, como acontece com a sombra – “tens tanta sombra nos teus olhos que vês logo onde está a palavra sombra”). Seja no excesso ou a linha, no muito ou no essencial, no direito ou no avesso, não se trata de uma busca, diz Lourdes. É simplesmente “experimentar, estar, respirar”.