Prematuros presidenciáveis: um "rolo eleitoral"?
O posicionamento quanto ao AO (a favor ou contra), ou a ausência de posicionamento claro, permite fazer importantes deduções.
Quem comparecer ao sufrágio, porém, terá de guardar para si esta perplexidade que é de todos mas não prolifica, contrariamente às candidaturas. Sobre coisa alguma nós, recatados votantes, poderemos ali pronunciar-nos, sob pena de o voto ser nulo e ir, tal como os votos brancos, parar ao lixo percentual efectivo. O único pronunciamento será o da demorada escolha de um nome, e só um. Encontrar um candidato para marcar a cruz exigirá leitura atenta e prolongada, visto que a ordem dos nomes no "rolo eleitoral", tal como sucedia no tradicional boletim, será determinada por sorteio, não podendo o acto de votar ser facilitado pelo recurso à ordem alfabética.
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Quem comparecer ao sufrágio, porém, terá de guardar para si esta perplexidade que é de todos mas não prolifica, contrariamente às candidaturas. Sobre coisa alguma nós, recatados votantes, poderemos ali pronunciar-nos, sob pena de o voto ser nulo e ir, tal como os votos brancos, parar ao lixo percentual efectivo. O único pronunciamento será o da demorada escolha de um nome, e só um. Encontrar um candidato para marcar a cruz exigirá leitura atenta e prolongada, visto que a ordem dos nomes no "rolo eleitoral", tal como sucedia no tradicional boletim, será determinada por sorteio, não podendo o acto de votar ser facilitado pelo recurso à ordem alfabética.
Antevejo, assim, não uma maior afluência às assembleias de voto, mas um penoso tempo de espera. Filas que não escoam, gente imóvel, serão metáforas de um País aguardando por si mesmo, persistindo numa via inglória dita democrática onde democracia não se descortina já, submersa na propaganda partidária e na desistência cidadã como resposta (im)possível.
O grupo "Em aCção contra o Acordo Ortográfico" do Facebook já excede bem os 60 mil membros. Este é, há muito, o mais relevante grupo português desta rede social; por algoritmos baseados em vários critérios, tornou-se o primeiro grupo sugerido a qualquer português que abra um novo perfil no Facebook. Lá, tenho sido instada a averiguar como cada novo "presidenciável" se posiciona quanto ao autodenominado "acordo ortográfico" (AO), quiçá por vir fazendo alguma crítica política nas páginas do PÚBLICO.
Será este assunto de algum modo redutor, para com ele "afunilar" o largo espectro de intenções de um possível futuro Presidente da República? Não, não é. Pelo contrário, creio que esta constitui uma concludente "prova dos nove".
É evidente que o posicionamento quanto ao AO (a favor ou contra), ou a ausência de posicionamento claro, permite fazer importantes deduções. Em primeiro lugar, sobre a solidez da formação intelectual, sobre a valorização de um património que, para tantos, tantos de nós, é sagrado e está bem acima de conveniências circunstanciais. (Pergunta-se: Que valor tem, para estas pessoas, a preservação da identidade do nosso povo, ou o conceito de soberania do mais antigo Estado-Nação da Europa? Quem não valoriza isto, certamente só tem uma auto-estima circunstancial, baseada em poder e/ou estatuto social e/ou cargos e/ou dinheiro e/ou influência e/ou mediatismo. E não tem valores sólidos, estruturais e estruturantes, que valham mais do que estes "valores mundanos"...!) Em segundo lugar, sobre a complacência do candidato (ou candidato a candidato) perante interesses instalados, em particular os dos potenciais apoios partidários.
Na declaração específica que produziu sobre o AO, Henrique Neto opta claramente por uma "solução revisionista". (Há revisão possível do que não tem ponta por onde se lhe pegue?) Enquadra esta opção na cedência imediata, leia-se "agachamento", diante dos interesses editoriais envolvidos, sendo estes precisamente os que mais lucraram e lucram (designadamente através dos manuais escolares, dos dicionários, das gramáticas e dos contratos com o Estado para "atualização" do acervo das bibliotecas escolares) com o atentado linguístico perpetrado contra as crianças e jovens no nosso sistema de ensino. Explica, porém, que o faz com condições: ser nomeada uma comissão de peritos blá-blá, haver uma moratória blá-blá-blá, unanimidade na C.P.L.P. (ninguém se esqueça de consultar a Guiné Equatorial!), entrada em vigor simultânea, patati, patatá... (Atenção, se alguma coisa correr mal, a culpa terá sido de terceiros...!)
Traduzindo do "politiquês" para Português, disse "nim", nem "não", nem "sim", como quem murmura "não gosto nada, mas deitar para o lixo é complicado..." De papel na mão, no vídeo sobre o AO, Henrique Neto começa por falar do "património insubstituível que não pode correr riscos experimentalistas" (sic), todavia depois exibe grande competência na arte de "chutar para canto" a que os politiqueiros nos habituaram, mostra maior vocação para malabarismos demagogos do que para enfrentar lobbies quando esteja em causa o interesse nacional. Acaso crê que o assunto não requer um compromisso sério e sólido? Assim não...
Sampaio da Nóvoa, esse, não suscita dúvidas: é "acordista" assumido, de longa data. Os "acordistas" da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), tantos deles lucrando tanto com o AO, resignaram-se a uma posição minoritária no seio da instituição, o que levou a Direcção da FLUL em 2012, pela voz de António Feijó, a anunciar oficialmente assumida lá a "liberdade ortográfica" como extensão de uma liberdade intelectual da Academia mantida imune a tentativas de dirigismo político ou estatal. Enquanto isso, e em contraponto, Sampaio da Nóvoa, à época Reitor da Universidade de Lisboa, tinha achado por bem impor o "acordês" na Reitoria.
Já Paulo Morais, quanto a mim, está mesmo como peixe na água nos debates do canal televisivo do Correio da Manhã com Marinho Pinto. Questiona a ética dos deputados, mas não quer ser deputado, sonha com um lugar de "Rainha de Inglaterra" e, entretanto, passeia o seu discurso anti-corrupção.
Em Fevereiro passado, interpelei-o sobre o AO numa conversa pessoal: "Então não vê que o acordo ortográfico é corrupção da Língua imposta aos cidadãos pelo poder político?" Educadamente, respondeu-me com alguma atrapalhação: "Confesso que não sei muito sobre esse assunto...".
Disse-me que, por não saber, não usa o AO na escrita, mas que os colaboradores lhe convertiam os escritos para "acordês", ao que ele nunca se tinha oposto. Depois de eu sublinhar, com factos concretos, que o AO serve interesses políticos e económicos, quando frisei que, além de inconstitucional, se trata uma violação dos direitos humanos, voltei a intuir que a sensibilidade para a questão iria manter-se nula, mas vi-o convencido da necessidade de ter opinião nesta matéria.
O facto de assistirmos hoje à persistente "mixordização" (grafia aleatória) dos conteúdos de Paulo Morais na Internet, ainda que tenha aflorado o tema em tom crítico mas de modo superficial, é sinal de que a desvalorização prevaleceu, poupando-se o candidato a aprofundar um dossier que considera irrelevante. Assim, continua a seguir o Correio da Manhã, jornal que adoptou um "acordês" / "livro de estilo" (ou de falta de estilo) muito próprio, mixordeiro.
Tal não espanta quem, por exemplo, o ouviu aludir à "luxúria" (sic) de Sócrates em Paris, não querendo por certo referir-se a excessos na sua intimidade, mas sim ao estilo de vida sumptuoso.
Paulo Morais não é sensível ao AO, mas será sensível a todas as outras corrupções? Quererá Paulo Morais perguntar a Marinho Pinto, num desses debates a dois na CM-TV, por que razão não devolveu ele à Ordem dos Advogados o "subsídio de reintegração" que recebeu ao sair de Bastonário rumo ao Parlamento Europeu? Este subsídio, inequívoca e explicitamente, destina-se a compensar um advogado, ao regressar à sua prática profissional, da perda de clientes sofrida em consequência do exercício das funções de Bastonário. Terá ficado, portanto, na posse de dinheiro pertencente a todos os seus colegas advogados, que recebera indevidamente.
Quem quisesse trabalhar para corrigir os males deste regime, acho eu, fá-lo-ia através do poder legislativo (na Assembleia da República, tentando ser eleito deputado para poder fazer propostas legislativas que expusessem e bloqueassem os conhecidos "alçapões") ou do poder executivo (tentando coligar-se para poder exercer pressão no seio de um Governo). Ora, Paulo Morais não quer nada disto, como os factos demonstram. Na minha óptica, e lastimo dizê-lo, transformou-se numa pulguinha a veranear ufanamente na garupa do monstro da corrupção. É certo que lhe causa (ao monstro) alguma comichão, mas nada mais... Vendo bem, Paulo Morais depende dele para prosseguir na via menos incómoda das denúncias e dos diagnósticos.
Portugal merece ter um Presidente da República consistente, sério, com uma sólida formação intelectual e que respeite e faça respeitar os valores fundamentais, a soberania nacional e a Constituição. Por todos estes motivos, creio, será lógico que uma pessoa com este perfil acabaria (ou acabará), de vez, com o "monstro estupidográfico", pois o Presidente da República por si mesmo tem poderes para tanto (em articulação com o Ministério dos Negócios Estrangeiros, nos canais diplomáticos adequados).
Para desvincular Portugal deste linguicida tratado internacional, desde logo atolado num somatório de ilegalidades, flagrantemente inconstitucional, basta portanto haver alguém com um perfil minimamente aceitável que possamos eleger para a chefia do Estado.
Obviamente, os candidatos que surgem de uma resposta oportunista ao desespero e ao vazio resultantes da "mumificação" da função presidencial, na última década, ou que emanam – de uma maneira ou de outra – do sistema partidocrático inquinado que nos vem (des)governando, não preenchem os requisitos mínimos.
Embora seja, quiçá mundialmente, uma espécie em vias de extinção, suponho que também por cá haverá "estadistas", ou pessoas compatíveis com esta definição. Por pudor, não se anunciam, muito menos se pré-anunciam. As candidaturas já assumidas padecem todas, a meu ver, de uma prematuridade confrangedora – em plena pré-campanha para as eleições legislativas –, a qual permite per se tirar ilações sobre o perfil (ou a falta de perfil) destas pessoas. Em causa estão "jogadas de antecipação" auto-definidoras.
Quando a alma ameaça desencarnar do corpo agonizante deste País, esvaído, humilhado, desagregado, é possível calar e esperar? Até quando? Desfar-se-á por si mesmo, este regime putrefacto que apenas serve a necrófagos?
Médica, escritora e activista cívica