Gomorra: a ficção nua
A série é baseada no romance homónimo de Roberto Saviano que, desde a sua publicação, em 2006, vive sob escolta policial permanente depois de ter sido sentenciado à morte pela Camorra
Volto ao tema das séries. Porque são a imersão sem filtros na realidade que nos avassala. A ficção posta a nu de uma realidade cheia de pruridos. Porque já se chegou ao ponto de ser preciso fingir que se diz mentira, para se dizer a verdade. Porque são tudo ao contrário do protótipo enfadonho dos telejornais que nos impingem “a realidade” pela goela adentro. Porque são a ficção despida à sua realidade. Porque, como diz um amigo meu, e com razão: “Vão estudar semiótica, pá!”.
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Volto ao tema das séries. Porque são a imersão sem filtros na realidade que nos avassala. A ficção posta a nu de uma realidade cheia de pruridos. Porque já se chegou ao ponto de ser preciso fingir que se diz mentira, para se dizer a verdade. Porque são tudo ao contrário do protótipo enfadonho dos telejornais que nos impingem “a realidade” pela goela adentro. Porque são a ficção despida à sua realidade. Porque, como diz um amigo meu, e com razão: “Vão estudar semiótica, pá!”.
Cinco tópicos sobre Gomorra. Sucintos, por atacado e à queima-roupa. A série foi recentemente exibida entre nós em horário nobre e na televisão pública. Não vale só falar mal. Temos a péssima tradição muito provinciana e ignorante de deitar abaixo sem construir. Na crítica especializada, na academia, na política, no jornalismo, nos costumes. Há quem dê a vida por isso. Para construir em vez de destruir.
A série é baseada no romance homónimo de Roberto Saviano que, desde a sua publicação, em 2006, vive sob escolta policial permanente depois de ter sido sentenciado à morte pela Camorra. Vale a pena ler aqui o seu testemunho impressivo. Fazendo a intertextualidade com o relato bíblico do Livro dos Génesis, Gomorra é a narração de vários anos de investigação do jornalista e escritor infiltrado na máfia de Nápoles, denunciando, num gesto obstinado e duro de bravura, o underworld bárbaro de uma sociedade em ‘estado de sítio’. Como o próprio afirmou recentemente num vídeo para a 13.ª FLIP em Paraty, onde não pôde estar presente por motivos de segurança, e retomando o fio à meada sobre algo que referi aqui, a literatura mais não é do que correr o risco de dar o nome às coisas. É a frontalidade da linguagem.
Tema: o narcotráfico italiano. Sobejamente analisado, não por acaso, em filmes como O Padrinho (1972), Gomorra (2008) ou séries como O Polvo e Os Sopranos. Só para não falar nos rios de tinta e sangue que a máfia italiana tem feito correr por esse mundo fora. Porquê? Pela sua natureza psicanalítica. Porque sendo sobre as eternas organizações de poder, a escalada mundial do crime organizado, as dissimuladas e perecíveis teias com que se tecem os enredos humanos, a violência, a justiça e a morte, é também sobre a complexidade inescapável de uma lei sem lei. Temas cuja sofisticação e universalidade são, por si só, inesgotáveis.
Fazendo jus ao tema, Gomorra é a ficção em bruto. Técnica e heroicamente em "estado de sítio", numa realização portentosa que combina planos vertiginosos, fotografia descarnada, cenários devastadores, interpretações fulminantes e uma banda-sonora pulsante. Não é ficção. É a vida posta a nu na sua ficcionalidade. Mas o mais tocante em Gomorra é o que esta nos diz sobre a condenação à vida. Sobre a realidade passinhos de lã virada ao avesso na sua brutal magistralidade. De como vivemos entre a omnipotência da crueldade e a singular rendição à vida. De como é preciso submergir do blá, blá, blá e ver o que está diante. Mesmo que seja a humanidade em ruínas. É preciso ter a coragem de a olhar de frente. Olhos nos olhos.