Uma tonalidade afectiva

Reunida num volume, a poesia de Rui Pires Cabral exibe uma impressionante unidade “musical”

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A poesia de Rui Pires Cabral constrói uma topologia afectiva, onde fulguram os instantes — e os lugares — da experiência pessoal

Sete livros publicados de 1994 a 2009, dois conjuntos de poemas avulsos, inéditos ou dispersos em várias publicações, que vão de 1996 a 2014: tudo reunido num único volume com um título singelo — Morada — que reclama, no entanto, uma complexa elaboração interpretativa. Comecemos então por aí: a poesia de Rui Pires Cabral fornece uma variada topografia (desde logo, nos títulos dos poemas, que nos fornecem uma extensa lista de cidades e lugares), construindo uma topologia afectiva, onde fulguram os instantes da experiência pessoal. A “morada” identifica-se não com um lugar fixo, não com o enraizamento, mas com um regime de nomadismo. Toda a morada é aqui uma “incerta morada”, objecto de uma procura e não o lugar próprio de onde se parte. Esta poesia tem assim o sentido de uma quête existencial. E a organizar a dispersão geográfica está uma unidade de sentimentos e emoções, uma modalidade do sentir que imerge nas coisas, funde-se nelas, e restitui os lugares como estados de alma, paisagens interiores. Não à maneira romântica, em que “a paisagem é um estado de alma” (como escreveu Amiel), mas segundo uma forma muito moderna de converter a cidade em feudo exclusivo de uma subjectividade que absorve os atributos do objectivo. A cidade é interiorizada e absorvida por um conflito, um desejo ou uma inquietação que ganham a tonalidade da perda e da falta, o que concede a estes poemas uma forte tensão elegíaca. Há um poema do livro Oráculos de Cabeceira (2009) onde esta questão é tematizada com grande lucidez auto-interpretativa. Citemo-lo integralmente, porque ele é também um exemplo de excelência da poesia de Rui Pires Cabral: “As cidades doem, estão dentro de nós/ mantidas por laços de fumo e desejo,/ têm muros úteis e portas escondidas/ que dão para a noite, como certos livros,/ e há amores que vivem a horas tardias// e outros que se cortam no fio da trama,/ queimam paus de incenso para abrir/ caminhos, remover obstáculos, há curvas/ e arcos, ecos desolados, quartos de ninguém./ As cidades cansam, estão nos nossos// dias, têm mil janelas de azul virtual/ que nunca sossegam e nunca terminam/ e há corpos que ensinam a temer a morte,/ sombras que circulam nas redes do escuro/ e homens que ferem para não chorar” (p. 283). Uma característica a merecer destaque: esta poesia urbana não está do lado da frase da prosa, como acontece na maior parte da poesia moderna que fez da cidade tema e cenário, mas do lado de um sentir que ganha a forma da empatia e faz emergir um discreto lirismo.

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Sete livros publicados de 1994 a 2009, dois conjuntos de poemas avulsos, inéditos ou dispersos em várias publicações, que vão de 1996 a 2014: tudo reunido num único volume com um título singelo — Morada — que reclama, no entanto, uma complexa elaboração interpretativa. Comecemos então por aí: a poesia de Rui Pires Cabral fornece uma variada topografia (desde logo, nos títulos dos poemas, que nos fornecem uma extensa lista de cidades e lugares), construindo uma topologia afectiva, onde fulguram os instantes da experiência pessoal. A “morada” identifica-se não com um lugar fixo, não com o enraizamento, mas com um regime de nomadismo. Toda a morada é aqui uma “incerta morada”, objecto de uma procura e não o lugar próprio de onde se parte. Esta poesia tem assim o sentido de uma quête existencial. E a organizar a dispersão geográfica está uma unidade de sentimentos e emoções, uma modalidade do sentir que imerge nas coisas, funde-se nelas, e restitui os lugares como estados de alma, paisagens interiores. Não à maneira romântica, em que “a paisagem é um estado de alma” (como escreveu Amiel), mas segundo uma forma muito moderna de converter a cidade em feudo exclusivo de uma subjectividade que absorve os atributos do objectivo. A cidade é interiorizada e absorvida por um conflito, um desejo ou uma inquietação que ganham a tonalidade da perda e da falta, o que concede a estes poemas uma forte tensão elegíaca. Há um poema do livro Oráculos de Cabeceira (2009) onde esta questão é tematizada com grande lucidez auto-interpretativa. Citemo-lo integralmente, porque ele é também um exemplo de excelência da poesia de Rui Pires Cabral: “As cidades doem, estão dentro de nós/ mantidas por laços de fumo e desejo,/ têm muros úteis e portas escondidas/ que dão para a noite, como certos livros,/ e há amores que vivem a horas tardias// e outros que se cortam no fio da trama,/ queimam paus de incenso para abrir/ caminhos, remover obstáculos, há curvas/ e arcos, ecos desolados, quartos de ninguém./ As cidades cansam, estão nos nossos// dias, têm mil janelas de azul virtual/ que nunca sossegam e nunca terminam/ e há corpos que ensinam a temer a morte,/ sombras que circulam nas redes do escuro/ e homens que ferem para não chorar” (p. 283). Uma característica a merecer destaque: esta poesia urbana não está do lado da frase da prosa, como acontece na maior parte da poesia moderna que fez da cidade tema e cenário, mas do lado de um sentir que ganha a forma da empatia e faz emergir um discreto lirismo.

Entendamo-nos sobre o que significa, neste caso, essa palavra “empatia”, tão elástica na sua extensão semântica: significa uma partilha das emoções e um movimento de identificação com o outro que exige sentir-se a si mesmo. Ora, a poesia de Rui Pires Cabral tem um forte acento empático que se revela, por exemplo, na invocação de um “tu”, no facto de ter uma estrutura de endereço: “Agora dormes e acordas/ cada vez mais longe. Não sei porquê./ Julgo que tens sido fiel a uma certa noção/ de sofrimento. Os teus dias já nascem obrigados/ à noite que fundaste, São os corredores/ de uma misteriosa predestinação. Mas// e se o tempo fosse um erro teu, um erro/ de percepção? Anda daí. Estas avenidas/ não têm verdadeiramente outro propósito,/ foram escritas por capricho no grande livro de Deus (...)” (p. 139). Há, nesta poesia, uma questão importante que pode ser dita desta maneira: ela compreende e assevera a presença de um “tu” cúmplice. Não propriamente um interlocutor, que daria aos poemas um carácter dialógico, mas alguém quem se partilham sentimentos e caminhos, de tal modo que há um “nós” constantemente a emergir, mesmo quando não é explícito.

A modalidade do sentir a que chamámos empatia, associada a um insistente modo de enunciação que faz existir um “tu”, como se os poemas fossem, muitas vezes, uma fala íntima a dois, dá uma musicalidade muito especial a esta poesia. Não se trata da musicalização através da rima e dos aspectos prosódicos, mas daquela espécie de harmonia musical em que o emotivo se torna um fenómeno acústico, uma entoação. O sentido moderno de “estado de alma”, tendo adquirido um aspecto existencial, desenvolveu-se a partir de um sentido eminentemente musical que, na história literária, pode ser reconstruído como história semântica de uma ideia. A poesia de Rui Pires Cabral é, de todo os poetas da sua geração, talvez a mais musical. Mas a sua musicalidade advém de um entoação, de uma tonalidade afectiva, e não da incidência nos aspectos fonéticos e rítmicos do verso. E a música que deles se desprende é uma música triste. Na poesia de Rui Pires Cabral, a melancolia, a nostalgia, e até aquilo a que Baudelaire chamouspleen são tonalidades afectivas muito mais fáceis de identificar do que aquela, muito mais difícil de caracterizar, que identificamos como tristeza. A sua poesia é triste, isto é, marcada pelo desencantamento, por um sentimento de desolação que não chega a ser desesperado: é uma tonalidade que tudo impregna, uma ferida que permanece constante e que se exprime como um sussurro ou quase uma ladainha. E este modo de sentir determina uma dicção (e, portanto, uma entoação) que se mantém com uma enorme homogeneidade dos primeiros aos últimos poemas. Podemos encontrar alguns momentos em que a “música” é mais apurada, mas pouco significativas, ou quase inexistentes, são as mudanças de tom. Porém, jamais esta poesia se torna fatigante e repetitiva. Tudo aquilo em que ela toca, por mais comum e familiar que seja, ganha uma qualidade de estranheza. Há uma resistência das coisas e dos lugares à apropriação, não há nenhuma morada própria nem apropriável, e todos os lugares são de passagem, de memória e de perda.