Vila do Conde no cinema ou a memória de uma cidade
Quatro novos filmes do programa de produções do Curtas exploram os recantos da memória pessoal e colectiva.
Mas não se esperaria dos resultados da colheita de 2015 – três curtas exibidas em estreia no festival nas noites de segunda e terça, mais uma quarta produzida no âmbito de uma residência na galeria de arte multimedia Solar – tanta coerência por entre projectos artisticamente muito diferentes.
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Mas não se esperaria dos resultados da colheita de 2015 – três curtas exibidas em estreia no festival nas noites de segunda e terça, mais uma quarta produzida no âmbito de uma residência na galeria de arte multimedia Solar – tanta coerência por entre projectos artisticamente muito diferentes.
A esse nível, pode mesmo dizer-se que as produções Curtas de 2015 conseguem funcionar tanto individualmente, com títulos que são reconhecivelmente filmes “dos seus autores” - Lois Patiño, Manuel Mozos, Miguel Clara Vasconcelos e Sandro Aguilar - como colectivamente, enquanto obras que trabalham o tema da memória e da sua relação sempre fluida com o tempo.
Não há melhor exemplo do que A Glória de Fazer Cinema em Portugal, delicioso exercício que prolonga o interesse de Mozos na documentação do cinema português e que, no seu dispositivo de “visita guiada” a casas, arquivos, imagens de época, e na sua dedicatória final a Manoel de Oliveira e João Marques, se coloca na linhagem do seu belíssimo filme sobre João Bénard da Costa (do qual faria uma excelente primeira parte). A diferença é que esta curta, que parte de uma carta verídica onde o nativo da cidade José Régio manifestava o seu desejo de experimentar a sétima arte, se revela aos poucos ser uma impecavelmente enganadora ficção, um jogo de espelhos e realidades alternativas à volta do que podia ter sido mas não foi, onde o amor ao cinema nunca se separa de um humor respeitoso e afectuoso.
Nos antípodas da estética linear de Mozos estão Sandro Aguilar e o espanhol Lois Patiño, que exploram uma dimensão formal espectral, fantasmagórica, quase ritualizada relacionada com a região norte. Undisclosed Recipients recria a experiência de ir a um festival de música (no caso, Paredes de Coura) como um son et lumière de rituais conviviais (o campismo, o concerto, o cigarro) sobrepostos num tudo-ao-mesmo-tempo-agora desenhado como uma memória difusa de alguém prestes a adormecer. Filme mais epidérmico do que é habitual no realizador, dificilmente conquistará os não-iniciados, mas captura na perfeição a experiência comunal do festival. Mas Patiño leva a fantasmagoria ainda mais longe ao propor, em Noite sem Distância, uma hipnotizante sessão espírita recriando uma noite de contrabando na fronteira entre a Galiza e Portugal, onde a imagem trabalhada em reversão de cores sublinha a dimensão de aparição espectral, de assombração que ressurge para nos recordar do que já foi e já não é.
Se estes três filmes foram “encomendas” do Curtas onde os realizadores, trabalhando com equipas de estudantes do programa de formação do festival, tiveram carta branca para escolher um tema nortenho, a génese de Vila do Conde Espraiada, de Miguel Clara Vasconcelos, nasceu de uma abordagem ao festival do próprio realizador, vencedor do concurso nacional 2014 com O Triângulo Dourado. Parte de um projecto multidisciplinar mais alargado que irá igualmente abranger uma instalação na galeria Solar, o novo filme retém a ideia de filme-em-viagem e a estética home movie da curta 2014, mas trabalha-a e expande-a de maneira notável para um subtil e sedutor exercício (lá está) de memória. Recorrendo a found footage desenterrada de arquivos municipais e pessoais de residentes de Vila do Conde e à sua própria experiência residindo na cidade durante a adolescência, Clara Vasconcelos constrói uma espécie de autobiografia ficcionada que recria com uma ressonância emocional insuspeita o que significa crescer e transportar as memórias que fizeram de nós quem somos, inseparáveis do lugar onde essas experiências tiveram lugar. Que, no caso, é Vila do Conde, ontem como hoje.
As produções Curtas repetem no Teatro Municipal Vila do Conde, sempre às 21h45, quinta (Sandro Aguilar e Lois Patiño) e sábado (Manuel Mozos e Miguel Clara Vasconcelos)