John Cleese: há vida antes dos Monty Python

Ora, como eu dizia... é a história de John Cleese. Ou seja: do Python antes de ser Python, ainda que já o fosse sem o saber.

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NCJ Archive/ Mirrorpix/ Corbis

Na verdade, o último capítulo de Ora, como eu dizia..., editado no Reino Unido no ano passado, é sobre o regresso dos Monty Python aos palcos naquele que foi um dos grandes acontecimentos de 2014: basta lembrar que os dez espectáculos na O2 Arena, em Londres, esgotaram mais depressa do que um qualquer concerto dos Rolling Stones, e que os bilhetes para a primeira data, então, desapareceram em 44 segundos. Mas percebe-se claramente que esta foi já uma história acrescentada ao livro. “Houve lugar a actividade pythonesca imprevista”, escreve Cleese, justificando assim o acrescento à história da sua vida. “Ignorá-lo [a reunião do grupo] podia ser interpretado como mesquinhez.”

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Na verdade, o último capítulo de Ora, como eu dizia..., editado no Reino Unido no ano passado, é sobre o regresso dos Monty Python aos palcos naquele que foi um dos grandes acontecimentos de 2014: basta lembrar que os dez espectáculos na O2 Arena, em Londres, esgotaram mais depressa do que um qualquer concerto dos Rolling Stones, e que os bilhetes para a primeira data, então, desapareceram em 44 segundos. Mas percebe-se claramente que esta foi já uma história acrescentada ao livro. “Houve lugar a actividade pythonesca imprevista”, escreve Cleese, justificando assim o acrescento à história da sua vida. “Ignorá-lo [a reunião do grupo] podia ser interpretado como mesquinhez.”

John Cleese não ignora, mas também não perde muito tempo à volta disso. Diz que foi tudo muito bom sem demonstrar um entusiasmo extraordinário. Às tantas, confessa até que no meio de todo o rodopio de Monty Python Live (mostly), o nome dado ao espectáculo, deu por si a pensar que não se sentia “nem um bocadinho excitado”. Não está a menosprezar o que aconteceu, muito menos a desvalorizar a excitação dos milhares de pessoas de todo o mundo que nesses dez dias os foram ver (nós inclusive), apenas a constatar que tudo o que é bom acaba. Os Python acabaram, e ainda bem que John Cleese, Eric Idle, Terry Gilliam, Michael Palin e Terry Jones puderam ter uma despedida digna, mesmo que algumas décadas depois. Ainda bem também que pôde homenagear-se decentemente Graham Chapman, que morreu em 1989 com um cancro. “Talvez deva atear-me à escrita a partir de agora”, conclui, deixando-nos a certeza de que outros livros se seguirão a Ora, como eu dizia..., até porque muito mais há ainda para contar.

Daquilo que nos conta já neste primeiro livro, vamos assumir assim, dois factos saltam à vista: a memória impressionante de Cleese – que era Cheese antes de o seu pai ter decidido mudar o apelido para evitar possíveis motivos de gozo –, capaz de detalhar cada conversa e cada acontecimento da sua vida, e a constatação de que ele é o protagonista de tantos dos seus sketches.

Sobrevivência
Tinha oito anos, uns pais com quem mantinha uma relação desarmónica, e já tinha mudado de casa oito vezes. “Do ponto de vista da criatividade fui duplamente abençoado”, nota. “Muitos dos maiores génios do mundo, tanto artísticos como científicos, resultaram de uma verdadeira privação maternal, e sou obrigado a concluir que se, ao menos, a minha mãe tivesse sido só um bocadinho mais instável do ponto de vista emocional, eu poderia ter sido COLOSSAL.”

É neste tom jocoso que Cleese escreve a sua história. Não faz dela um drama, antes uma comédia, como seria de esperar. Sobre a mãe, para quem tudo era sempre muito complicado, uma chatice, uma dor de cabeça, uma maçada, escreve uma das passagens mais divertidas do livro, quando decide enumerar tudo aquilo que a perturbava e/ou a assustava: “Ressonar muito alto, aviões a baixa altitude, sinos de igreja, carros dos bombeiros, autocarros e camiões, trovões, gritaria, automóveis grandes, a maioria dos automóveis de tamanho médio, automóveis pequenos e ruidosos”, e assim continua a lista durante mais umas quantas linhas. A mãe queixava-se tanto da vida que um dia em brincadeira Cleese disse-lhe: “Conheço um homenzinho que vive em Fulham e, se ainda te sentires assim para a semana, e se quiseres, posso falar com ele… mas só se quiseres… e ele pode vir a Weston e matar-te."

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Rune Hellestad/Corbis

Começavam assim a ganhar forma algumas histórias que mais tarde nos fizeram, e ainda fazem, rir. Cleese, que era um miúdo envergonhado, começava nesta altura a perceber que podia e sabia ser engraçado, e que ter piada era uma forma de se destacar na vida familiar e escolar. Uma “técnica de sobrevivência” que usou para ganhar confiança enquanto crescia.

Em Cambrigde, onde estudava Direito, entrou quase por acaso para o Footlights, uma companhia de teatro amadora, não imaginando que a sua vida a partir daí nunca mais seria a mesma. Conheceu Graham Chapman e juntos começaram a trabalhar com nomes como Tim Brooke-Taylor ou Bill Oddie. Os espectáculos que apresentavam eram feitos de pequenos sketches. No final do ano, a companhia apresentava um espectáculo especial: chamou-lhe Cambridge Circus. Estávamos em 1963 e rapidamente o “circo” saiu dos palcos de Cambridge para Machester ou Londres e até para a Nova Zelândia e os Estados Unidos.

O humor contundente de Cleese e a loucura de Chapman soavam a novidade. Um apresentador da BBC que prepara com muito cuidado uma entrevista a um mergulhador e que à última da hora percebe que afinal o entrevistado é um vendedor de seguros ("Quando andou a vender seguros, alguma vez foi atacado por um grande peixe, tubarões, por exemplo?") ou um tratador de um jardim zoológico que perde todos os animais são duas histórias que hoje só não nos parecem demasiado engraçadas porque entretanto surgiram os Monty Python e elevaram o humor para outro patamar.

David Frost, que na altura era quem brilhava no humor britânico, descobriu estes sketches, utilizou alguns e chamou Cleese para trabalhar consigo, primeiro na rádio e depois na televisão, sempre na gigante BBC. Cleese manteve Chapman sempre a seu lado e o desejo de absurdo e a vontade de quebrar todas as regras do humor televisivo levaram-nos a desafiar Idle, Gilliam, Palin e Jones, que tinham então um programa de humor para crianças, Do Not Adjust Your Set, a iniciarem o seu próprio projecto. Abriram então uma nova página na história do humor, não só britânico como universal. Nasciam os Monty Python e com eles uma série de disparates, tipo uma loja de queijos que não vende um único queijo ou um dono de uma loja de animais que não só vende um papagaio morto como se recusa a reconhecer que o animal não vive mais. Cleese, que acredita também que o humor pode ser feito sem palavras – foi ele o Ministro dos Andares Patetas –, entra nas duas histórias.

Politicamente incorrecto
A importância de John Cleese e amigos percebe-se quando se fala sobre ele a uma das referências do humor em Portugal. Herman José existe, ou existiu da maneira que existiu na televisão portuguesa, porque os Monty Python existiram. “Eles formataram o humor, marcaram-me completamente e consequentemente marcaram todas as pessoas que os viram através de mim”, diz ao Ípsilon o humorista e apresentador, com a certeza de que os britânicos, e portanto o próprio, estiveram muito à frente do seu tempo.

Cleese escreve às tantas que fazer boa comédia é difícil, lamentando a quantidade de maus comediantes que hoje existe. Herman José diz que é por isso que o que é bom permanece. E daí ainda hoje nos rirmos com os Python, como nos rimos com os sketches do humorista português. Ou dos Gato Fedorento, que se lhes seguiram, com o mesmo traço absurdo de humor.

Mas porque não surge mais nada assim? “Agora instalou-se uma espécie de censura velada que torna as coisas também muito complicadas. Nós na altura, apesar de tudo, não tínhamos isso. Instalou-se a necessidade do politicamente correcto”, diz Herman, para quem nas décadas de 1960/70/80 havia uma maior liberdade. “Lembro de coisas que fiz que hoje se calhar não fazia. Por exemplo, na última edição da Roda da Sorte destruí o estúdio a tiros de espingarda. Hoje em dia, era vítima de queixas de não sei quantas associações de defesa dos cenários ou de pais incomodados com a violência e tinha problemas”, explica. “As instituições e as coisas levam-se muito a sério e isso causa uma pressão que torna a coisa pouco agradável.”

Em Ora, como eu dizia..., Cleese não chega à aventura dos Python pelo cinema, a trilogia imaculada: Monty Python e o Cálice Sagrado (1975); A Vida de Brian (1979); O Sentido da Vida (1983). Se chegasse, talvez mencionasse os pontos de Herman José. Basta lembrar o ruído que A Vida de Brian causou por ter sido tão mal interpretado: os católicos indignados acharam que aquilo era a história de Cristo mal contada quando era na verdade sobre estes mesmos católicos que seguem cegamente a religião. Cleese já disse em várias ocasiões que hoje seria difícil fazer um filme assim.

Conversa para outro livro, onde saberemos provavelmente mais sobre Fawlty Towers ou Um Peixe Chamado Vanda, dois grandes projectos sonantes do Python para lá dos Python.